Neopositivismos e o azedo suco da Laranja Mecânica (Parte 1)

25/05/2015

 Por Augusto Jobim do Amaral - 25/05/2015

Parte 1

A história é mundialmente conhecida. Eternizada que foi pela película de Stanley Kubrick (1971), Laranja Mecânica (A clockwork orange, 1962) de Anthony Burgess conta a trajetória do jovem Alex, adolescente adorador de música clássica e membro de uma gangue de jovens cedentos por atos de violência, que após ser preso pela polícia é submetido à “Técnica Ludovico”. Esta terapia de condicionamento comportamental patrocinada pelo Estado possui a única finalidade de reabilitá-lo social e principalmente sob o aspecto psicológico, eliminando os impulsos violentos da conduta desviante. O processo de lavagem cerebral e sua legitimadade, enfim, é o cerne da reflexão ética proposta.*

A magnífica ilustração do gênio Angeli e a passagem final (sétimo capítulo) da segunda parte da fenomenal “A clockwork orange” já permite conduzirmo-nos diretamente rumo ao interior da Laranja. O livro de Anthony Burgess (nascido John Burgess Wilson), escrito em 1961 e publicado no ano seguinte, desde então está dentre os marcos culturais do século XX e é fonte inesgotável de enormes discussões filosóficas e de profundas ousadias estéticas.

Exatamente por nunca ter perdido a atualidade é que ampara uma rigorosa plataforma (re)atualizável de reflexões. Aliada às outras três mais importantes distopias do século passado – o Admirável mundo novo (1932) de Aldous Huxley; 1984 (1949) de George Orwell; e Fahrenheit (1953) de Ray Bradbury – a obra deste poeta, dramaturgo, compositor, linguista, tradutor e crítico literário de Manchester irrompe, e muito, para além da mera discussão sobre capacidade de discernimento e liberdade de escolha.

O convite para mergulhar na “Técnica Ludovico” (referência dupla a Ludovico, o vilão italiano da tragédia do século XVII The white devil, escrita por John Webster e obviamente a Ludwig van Beethoven, paixão maior do nosso anti-herói)  proposta por este fábula assustadoramente real – ambientada numa suposta sociedade futura (em que pese o próprio Burgess alertar que tanto a cidade quanto a época “poderia[m] ser qualquer uma, mas é, essencialmente, o hoje”)[1] – não pode ser vista sem a carga quase insuportável de estranhamento que a acompanha. O nadsat inventado pelo autor é o sinal. Porta de entrada para a imersão no seu universo e de seus druguis, linguagem mesclada de gírias das gangues inglesas dos 50´s/70´s (os teddy-boys do rockabilly, os mods do jazz e R&B e os rockers com suas motocicletas e roupas de couro) e termos eslavos, o dialeto bem poderia servir de reflexo para os estudos criminológicos das ditas subculturas criminais com seus valores identitários e modos de expressão peculiares, todavia a mistura linguística convida mais profundamente a uma sensação de mal-estar: o narrador onisciente carrega o leitor para dentro do tempo sombrio que escreve. A rhyming slang (gíria rimada), associação da maneira de falar típica da classe operária britânica (com um certo vocabulário de repetição infantil) que dá o tom da história, juntamente com uma espécie de fala “pseudoelizabetana”, ou seja, arremedo mal acabado de uma língua shakespeareana que lembra o middle english sem o rigor gramatical,[2] tudo isto impõe-se não como mero enfeite, tampouco uma simples indicação sinistra do poder subliminar de um superEstado.

O linguajar foi criado, como escreve Burgess, para servir de “cartilha sobre lavagem cerebral (...) contra a frouxidão, o pensamento preguiçoso e a confiança excessiva no Estado.”[3] A transliteração para o russo nadsat do inglês teen, que virou língua no livro, trará incômodo ao leitor precisamente por servir a envolvê-lo na mesma lógica totalitária que seduz pelo poder de corrigir os outros. Tornar-se estranho, deslo(u)cado – frente a uma maquinaria ideologicamente boa que detém a prerrogativa de dar significado ao “certo e errado” – é assumir viver a vida por decreto: seja bom! A violência explícita normalizada apenas poderá assustar o incauto que não conseguir antever este fato senão como alavanca para o “ato de maldade definitivo” estatal: a desumanização de Alex, tornado um grosseiro mecânico condicionado incapaz de qualquer resistência. Para o Alex, plenamente civilizado após a miraculosa conversão, a rigor, não haverá mais linguagem possível, apenas protocolos a serem respeitados, a mais sublime ordem de um horror desvitalizado. Burgess genialmente joga com isto: desloca a aparência dos atos gratuitos de violência juvenil para manipular e deixar cristalino a face louca da normalidade violenta estatal, dando visibilidade à loucura médico-jurídico-científica e sua nobre missão civilizatória.

Por outra parte, quando o leitor depara-se com a perturbadora história já o faz com uma certa falta de capacidade plena de entendimento. O dialeto da narrativa em primeira pessoa realiza a álibi para a comunhão com a “estranheidade” do herói. Entretanto, o idioma articulado permite que se divida, de alguma maneira, com Alex um condição muito mais profunda: aquela de não-pertencimento, de sofrimento comum – como se operasse pelo texto uma outra espécie excêntrica de “lavagem cerebral”. Desde sempre, é já aliar-se ao desconforto do protagonista de estar presente sempre fora de lugar, diante de um poder que, ardilosamente, oblitera o mandamento escravizador violento em costume inefável. Numa civilização tecnificada, asséptica em seu procedimentos racionalizantes, nada mais normal que a profusão de “pessoas sem mundo”, ou melhor, sujeitos totalitariamente institucionalizados, resultado de esferas que exalam “um cheiro de desinfetante de vigilância policial”.[4]

Assustadora atualidade política, há que se dizer, que não deixa de evocar a preferência em geral assumida, por exemplo, pelas democracias contemporâneas condicionadas pelo mantra da ordem e da repressão – em épocas de rançosos “protestos sem protesto”, da opção pela paz muda e cadavérica dos cemitérios e pelo medo hipócrita que sustenta um estado (policial) de coisas com insuportável violência. Um mundo “inofensivo” e espetacular que Alex com seu show perverso explícito parece realçar como metáfora negativa de uma neutralidade mórbida posta como regular disciplina, nada chocante em suas bem argumentadas e astutas técnicas de submissão.


Veja a Parte 2 dia 1º/06 às 07h!


 

Notas e Referências: 

* Texto extraído do artigo publicado na obra “Literatura e Pensamento Científico: discussões sobre ciência, política e violência nas obras literárias”. GAUER, G.J.C.; GAUER, R.M.C (coord.); FRANÇA, L.A. (org.). Curitiba: iEA Academia, 2014, pp. 157-169.

[1] BURGESS, Anthony. “A Condição Mecânica”. In: Laranja Mecânica, p. 299-300.

[2] FERNANDES, Fábio. “Nota sobre a nova tradução brasileira”. In: Laranja Mecânica, pp. 23-29.

[3] BURGESS, Anthony. “Geleia Mecânica”. In: Laranja Mecânica, p. 320.

[4] BURGESS, Anthony. “De uma entrevista inédita com Anthony Burgess”. In: Laranja Mecânica, p. 332.


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Augusto Jobim do Amaral é Doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Ciência Política, História das Ideias e Estudos Internacionais Comparativos) pela Universidade de Coimbra (Portugal); Doutor, Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela PUCRS; Professor da Faculdade de Direito da PUCRS.                                                                                                                                                                                                                                                            


Imagem Ilustrativa do Post: Ilustração de Angeli para a nova edição do livro Laranja Mecânica // Com alterações

Disponível em: http://www.saraivaconteudo.com.br/Materias/Post/48957


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