"Neonaturalismo": possibilidade e limites da experiência neurojurídica (Parte 2)

19/04/2015

Por Atahualpa Fernandez - 19/04/2015

Leia a Parte 1 aqui

Haga lo que haga un hombre, antes debe hacerlo con la mente, cuya maquinaria es el cerebro. La mente sólo puede hacer aquello para lo que el cerebro esté capacitado, así que todo hombre debe descubrir qué tipo de cerebro posee antes de poder comprender su propio comportamiento.”

G. Luce & J. Segal

Parte 2

O atual esforço mundial realizado sobre as neurociências, por outro lado, não deixa de gerar alguns problemas. Como soe ocorrer quando uma área de trabalho e investigação altera súbita e radicalmente sua face, ao igual que um campo imantado de fascinação, acaba por provocar um pouco de desconcerto e desorientação: proliferam novos conceitos, métodos, fatos e argumentos a tal ponto que, de um lado, tornam por momentos difíceis – senão impossível – manter um panorama global, coerente e bem informado; do outro, tornam fluxos, débeis e vulneráveis os critérios de avaliação gerais que permitem julgar coerentemente ditos conceitos, métodos, fatos e argumentos. O resultado de tais inconvenientes pode ver-se, por exemplo, na desmedida produção de uma massa indigesta de investigações (“neurocientíficas”) desconectadas e publicadas em todos os níveis e pelos diferentes discursos (descritivos, explicativos e/ou prescritivos) que estas acabam por gerar sobre a atividade mental e o funcionamento do cérebro.

Por outro lado, desde Charles Darwin sabemos que o homem é um produto da história da evolução por seleção natural. Os momentos biológicos e culturais se encontram estritamente entrelaçados no processo que conduziu ao ser humano. O homem é um ser natural e cultural, dotado de uma “natureza cultivada” (para usar a expressão de K. A. Appiah). Quando o homem começou a dar nome e significado às coisas do mundo em uma linguagem reciprocamente utilizável, surgiu o pensamento, discurso ou mente. Somente neste terreno é possível falar de normas e proibições.  Somente então se abriu o campo de atuação da comunidade humana no qual os direitos e os deveres desempenham um papel significativo; quer dizer, somente a partir da capacidade de dar-se respostas a si mesmo e aos outros que o homem se converteu em um ser responsável.

Por isso não resulta surpreendente e nem mesmo definitivo o fato de que agora, por meio da boa neurociência, se descubram correlatos e condicionamentos biológicos da conduta humana e dos juízos morais. A circunstância de que as concepções de valor, fixadas na moral (e no direito), são em parte de procedência natural e em parte de origem convencional, é algo indiscutível. Já Aristóteles o assinalou: as preferências morais surgem ou por força natural ou contra a natureza. E é mais próprio da natureza humana assumir estas últimas. Em consequência, não deveríamos teorizar ou filosofar sobre o direito (ou a moral) para chegar a saber o que é a justiça ou a virtude, senão para chegar a ser homens virtuosos e justos, capacidades que surgem da atividade cerebral, cuja estrutura e função estão diretamente influenciadas por nossa experiência individual e interpessoal.

Em todos os experimentos já realizados os cientistas se encontram ante um amálgama de biologia e cultura, mas os métodos que empregam, ademais de limitados, somente exploram a faceta biológica. Até os procedimentos últimos de neuroimagem funcional se limitam a detectar câmbios na atividade neuronal ou na circulação sanguínea cerebral. Para a indagação das influências culturais ou a aclaração da relevância cultural dos acontecimentos biológicos, não existe, até o momento, nenhum procedimento científico-natural. Nas palavras de John Dupré, a mente humana se desenvolve baixo contínuas influências que interatuam desde o exterior e desde o interior. Ainda resulta muito difícil especificar relações diretas entre os descobrimentos das neurociências (ou os elementos do genoma) e os diferentes aspectos da mente. E o intento de fazê-lo pode vir a conformar um caminho desviado e inútil para a compreensão da mente humana.

Daí que parece ingênuo e precipitado pensar que um conhecimento exaustivo dos correlatos neuronais dos seres humanos nos proporcione automaticamente uma completa compreensão acerca da complexidade de todas nossas experiências subjetivas, de nossos juízos morais, de nossas condutas ou de nossa condição humana. Ainda que algum dia cheguemos a compreender profundamente nossa natureza, todos os processos neuronais que subjazem à empatia humana, ao altruísmo, ao egoísmo, ao conhecimento, à memória, ao aprendizado, ao livre-arbítrio, ao sentido de justiça ou à responsabilidade moral, continuará intacta nossa “perspectiva interna”, essencialmente relacional.

A despeito do intento dos neurocientistas, na busca das raízes biológicas da moral e da justiça, em fazer visível a “sede da moral” mediante procedimentos de neuroimagem, quando nos encontramos diante de um cenário real e submerso em algum dilema moral, os métodos científico-naturais não bastam por si só para decidir o que é nobre, virtuoso, bom e justo. Não parece definitivamente razoável supor que a intuição “respecto de lo que corresponde hacer en un caso imaginário fabricado en laboratórios proviene del mismo mecanismo [neuronal] que nos impulsaría a actuar en la vida real” (K. A. Appiah). O correlato neuronal de nossas condutas e intuições morais é apenas um ponto de partida de nossos compromissos plurais, já que os contextos socioculturais e a forma como interagem as relações interpessoais e o cérebro configuram nossa psique básica de diferentes maneiras em diferentes épocas e lugares.

Isso implica que sem informação complementar e transversal procedente das demais ciências “ponte” e outras áreas das ciências humanas e sociais seguirá aberto o significado dos mapas, cenários ou imagens cerebrais obtidos. É um equívoco supor que há alguma coisa de especial e exclusivo nas neurociências. Os métodos neurocientíficos não bastam por si só para decidir sobre a natureza de nossa capacidade para construir juízos com os quais categorizamos a ação e omissão humana como boa ou má, justa ou injusta, permissível, obrigatória ou proibida (sobra dizer que os resultados obtidos pelas investigações neurocientíficas não se autinterpretam, senão que é preciso interpretá-los). Também os geneticistas, antropólogos, biólogos, psicólogos, juristas, paleontólogos, primatólogos, etc., na medida em que se ocupam séria e empiricamente da natureza humana, estão cambiando a concepção que temos do mundo e de nossa própria natureza.

Pensar que unicamente os “neuros” têm algo mais importante que dizer é um erro que pode conduzir a graves despropósitos ou mal-entendidos. É necessário desenhar uma imagem de ser humano que se ajuste a uma visão do mundo na qual nossas intuições e nossos comportamentos não sejam somente produtos da cognição e emoção que emergem de nosso cérebro, senão também respostas às exigências normativas, culturais e interpessoais. E isso pela simplória razão de que a construção de uma vida é uma atividade, um logro por meio da qual deveríamos esperar aprender mais de nossas experiências que dos experimentos neurobiológicos e/ou filosóficos.

Sem as instruções aportadas por outras áreas de conhecimento dedicadas a proporcionar uma explicação científica acerca das peculiaridades da natureza humana e as contribuições (em primeira pessoa) aportadas pelos próprios voluntários participantes nos experimentos (F. Varela et al.), os dados obtidos das imagens cerebrais carecem de valor informativo (e principalmente prescritivo-normativo). Sem uma interpretação interdisciplinar (uma radical interdisciplinaridade) das diferenças dos sinais obtidos nos registros das ressonâncias magnéticas ou de outro tipo, os descobrimentos empíricos da investigação cerebral não são outra coisa que imagens coloridas[2].

Ademais, não há que olvidar que a revolução provocada pela neuroplasticidade tem implicações no que se refere aos mapas cerebrais, isto é, de que estes não são imutáveis dentro de um só cérebro e nem tão pouco universais, senão que, sendo o cérebro um sistema dinâmico, plástico e não-linear, os “mapas” podem variar constantemente dependendo do que fazemos ao largo de nossas vidas. Tal como explicou G. Boring, “o mapa de um dia deixaria de ser válido ao seguinte”[3].

Em síntese, não há nenhuma dúvida de que os novos desenvolvimentos na área da neurociência são muito instigantes, extremamente inovadores e em certa medida distantes e perturbadores. Com uma condição: que em um terreno tão delicado como o da investigação neurocientífica haverá de tomá-los em conta com muita prudência. Por este motivo, o diálogo que se começa a estabelecer entre neurocientistas, cientistas cognitivos, primatólogos, filósofos, juristas, etc., tomados com seriedade e compromisso ético, promete ser ainda mais estimulante, revolucionário e promissor.

Já se ouvem propostas interdisciplinares consistentes entre aqueles que estão conduzindo as investigações neurocientíficas e os filósofos e operadores do direito que estão procurando aplicar os resultados dessas investigações em suas respectivas áreas de conhecimento, partindo da premissa de que a informação sobre o cérebro e sobre o modo como este funciona não é apenas meramente interessante, senão que é e constitui um elemento essencial dos fundamentos sobre os quais deveríamos basear as nossas decisões individuais, políticas, morais e jurídicas. O cérebro tem importância porque a nossa existência tem importância.

E uma vez assumida as atuais deficiências e limitações da investigação neurobiológica, todos esses novos conhecimentos seguramente permitirão uma melhor compreensão da mente e do cérebro e trarão consigo a promessa de cruciais aplicações práticas no âmbito da compreensão do fenômeno jurídico, de sua interpretação e aplicação prático-concreta: constituirão uma oportunidade para refinar nossos valores e juízos ético-jurídicos, assim como estabelecer ou reinventar novos parâmetros que, se ignorados, deixam sem cimentos (i) o edifício teórico e metodológico da ciência jurídica, (ii) a concepção do ser humano como causa e fim do direito, e consequentemente, (iii) a tarefa do jurista-intérprete de dar “vida hermenêutica” ao direito positivo. Uma (neo) naturalização do direito criada e concebida a partir da construção conjunta de alternativas reais e factíveis, devidamente consolidada sobre bases mais firmes e consistentes, e cujo projeto está orientado, entre outras coisas, a “mostrar cómo nuestra habilidad para comprender normas, las razones sobre ellas y la actividad basada en ellas, es una habilidad basada en el cerebro que puede ser explorada usando métodos científicos” (P. Churchland)[4].

Desde um ponto de vista científico, assumir a importância desse câmbio de paradigma gerado pelos estudos procedentes das neurociências e das demais ciências dedicadas à compreensão da natureza humana não somente representa uma enorme diferença na imagem que temos do mundo e de nós mesmos (rebaixando uma vez mais o orgulho dos juristas que nos fizeram - e ainda nos fazem - crer em tantas falsidades), senão que também nos proporciona uma maneira mais frutífera e fascinante de cultivar o direito do que essa espécie de filosofia ou dogmática jurídica “no vazio” em que todos nos acostumamos a comprazer-nos nos velhos tempos[5].

Um programa neonaturalista do exercício dos juízos e da conduta humana que permitirá dar passos a uma melhor compreensão  das condições de possibilidade e os limites do fenômeno jurídico, sugerindo novas exigências ontológicas e metodológicas e buscando sempre chegar a soluções e implicações justas, psicologicamente aceitáveis e neurobiologicamente realistas.


Notas e Referências:

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[3] Nada no cérebro está localizado em um lugar concreto, “se trata más bien de interacciones entre sus distintas partes” (D. Swaab).  “La localización de una función es sencilla en el caso de los reflejos básicos subconscientes como, por ejemplo, el acto de vomitar, y es bastante sencilla en el caso de los estadios iniciales de la sensación (conocemos el lugar de la corteza al que primero llegan las señales de la visión, del oído, del olfato y demás sentidos). Pero la localización de una función es mucho más difícil si se trata de fenómenos más complejos, como la memoria de hechos y acontecimientos, y es en realidad muy difícil cuando se trata de funciones superiores, como la toma de decisiones. En algunos casos es complicado porque la localización de una función en el cerebro no permanece fija en el tiempo: los recuerdos sobre sucesos pasados parecen almacenarse en el hipocampo y algunas regiones adyacentes inmediatas durante uno o dos años, pero luego son exportados a otras ubicaciones en la corteza. La toma de decisiones, en general, es una función tan amplia y requiere de la convergencia de tanta información que puede ser descompuesta en tareas más sencillas y distribuida por toda una serie de lugares situados en la corteza”. (D. Linden)

[4] Agora, poderão os resultados das investigações neurocientíficas sobre a natureza humana virem a servir de fonte de informação e/ou renovação dos postulados tradicionais da filosofia e da ciência do direito? Duvido por três razões. A primeira é que os juristas distam muito de estar preparados para que os dados científicos guiem suas teorias e práticas jurídicas: a ideia da “excepcionalidade” humana continua tão presente nas ciências sociais e jurídicas  que os acadêmicos não somente não suportam a novidade e a profundidade científica, senão que também partem da premissa, pelo menos em sua grande maioria, de que o ser humano é “tão extraordinário” que a vida mental humana transcende por completo o conhecimento científico (ou ao menos que se acha fora do alcance da boa neurociência). A segunda razão pela qual existe resistência de que a ciência contemporânea afete ao direito tem que ver com a ameaça percebida à nossa “imaculada” noção de racionalidade que, para muitos, encontra-se estrita e incondicionalmente vinculada ao problema da interpretação e aplicação jurídica. A terceira e última reside na aversão dos juristas em comprometerem-se com a evidência de que as ciências e as humanidades, embora continuem tendo suas próprias e separadas preocupações, são geradas por meio de um elemento material comum: o cérebro humano.

[5] Ainda que a resistência para dar por sentado que as respostas a certas perguntas de uma disciplina possam vir de outros campos de investigação seja uma constante, podemos pelo menos aduzir novas razões para sustentar ou refutar explicações que até agora permanecem no limbo da filosofia e da ciência do direito. Citando a Steven Pinker: “Cuando leo a Descartes, Spinoza, Hobbes, Locke, Hume, Rousseau, Leibniz, Kant, Smith, me asalta a menudo la tentación de viajar hacia atrás en el tiempo para ofrecerles alguna pieza de ciencia fresca del siglo XXI que pudiera llenar algún hiato en sus argumentos o servirles para dar un rodeo y salvar algún obstáculo atravesado en su camino. ¿Qué no habrían dado estos Faustos por disponer de ese conocimiento? ¿Qué no podrían haber logrado, muñidos y pertrechados con el mismo? No es necesario fantasear con ese escenario, porque nosotros vivimos en él. Tenemos las obras de los grandes pensadores y sus herederos, y disponemos del conocimiento científico con el que ellos ni siquiera se habrían avilantado a soñar. La nuestra es una época extraordinaria para la comprensión de la condición humana. Problemas intelectuales que proceden de la antigüedad resultan ahora iluminados por los fogonazos procedentes de las ciencias de la mente, del cerebro, de los genes y de la evolución”.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


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