NEOLIBERALISMO E MERCADO DE CONSUMO: QUANDO O TRABALHO É CAPTURADO COMO SUBPRODUTO DE UMA RACIONALIDADE AUTOEMPRESÁRIA

04/10/2019

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Conforme escreve o filósofo sul coreano Byung Chul Han (2015, p. 127) “O hipercapitalismo dissolve totalmente a existência humana numa rede de relações comerciais”. Para dar continuidade a essa reflexão proposta por Han em “A sociedade do cansaço”, partiremos a expor, brevemente, o funcionamento dessa racionalidade de concorrência, que está alinhavada aos princípios do mercado, e que também interfere nas formas que passamos a naturalizar as relações de autoexploração dos corpos e das mentes das pessoas.

A proposta oferecida ao leitor hoje é a de pensar a racionalidade neoliberal na sociedade contemporânea, em especial, na sua repercussão nos campos do trabalho e do consumo. A intenção aqui é a de abalar criticamente essa forma de racionalidade, orientada pela produtividade, pela concorrência e tendo o consumo como produto final de emergências contemporâneas. Analisaremos, aqui, o surgimento exponencial de uma nova definição de consumo neoliberal, não apenas como uma forma de denominar etiquetas identitárias e evocativas, mas sim, como uma nomenclatura comum que gera compatibilidades e consciências autorreflexivas entre as pessoas e as relações, entre as relações e seus objetos.

O projeto neoliberal é ambicioso. Cria incoerências e pressões para promover supostas facilidades burocráticas no campo econômico e político dos Estados, iniciando o despertar de novos sentimentos compartilhados de insegurança profissional às incertezas de ordem pessoal (STANDING, 2013, p.13). A crise capitalista é o indício dessa racionalidade neoliberal operando, estruturando (subjetivamente e objetivamente) sujeitos e relações com o mundo do trabalho, e, por sua vez, materializando uma ordem de consumo simbólico [e permanente] da vida social (consumo-de-si e do outro pela demanda por desempenho).

Neste sentido, a cultura do consumismo, compreendida como política porta-voz dos interesses neoliberais é, naturalmente, expansivista e incorpora em suas abstrações discursivas a ideia de que tudo possa ser transformado (em) pelo capital. Também produz outra dimensão reduzida de indivíduo e cultura autofágicos. Algo que corresponde à incorporação singular, muito precoce no desenvolvimento de uma vida entusiasmada pelo poder da ação motivacional. Ou seja, relações em que os indivíduos se alimentam dos sentimentos de desempenho, da competição, do rendimento, e, principalmente, das diferenças entre uns e outros. O momento seguinte pretende conquistar todos os horizontes da vida, para que permaneçam sendo organizadas da mesma maneira, orientadas pelo método de gerenciamento de si enquanto empresas. É a materialização dos indivíduos como um mero “capital humano” (BROWN, 2018, p.6) que transforma e deixa-se transformar em experiências de monetarização da vida. Seja em relação ao consumo, à educação, à capacitação, e, porque não, às escolhas que fazemos ao selecionar parceiros via aplicativos? Algoritmos configurados para orientar práticas de “investimentos” pessoais vantajosos, ainda que nossas apostas sobre o futuro sejam oscilantes, estamos abrindo mão da soberania de nós mesmos.

Diante de tal confusão, o cenário mercatório atual favorece a demanda por resultados imediatistas e, está cada vez mais autocentrado em anteposições individuais. Prontamente, os reflexos dessas tendências sociais baseiam-se nestas mesmas demandas capitalistas por produtos e serviços compatíveis que mercantilizam experiências satisfatórias de sucesso. Trago como exemplo as inúmeras técnicas de treinamento life Coaching, vistas como oportunidade de nicho profissional para muitos. Aqui se pretende estipular uma relação entre dois tipos de trabalho autônomos inventados, devido à superexposição das necessidades modernas em busca de experiências pessoais de sucesso e superação: o “Life Coaching” e o “Influenciador digital”. Enquanto o treinamento do “life Coaching” vende a possibilidade de aprimoramento de habilidades pessoais e profissionais, o influenciador digital vende a possibilidade de aprimoramento do indivíduo através da formação de opiniões digitais, que também buscam mudanças comportamentais e na mentalidade dos seus seguidores.

O “faça-você-mesmo” conquista tantos seguidores, que passa a formatar novas realidades de trabalho livre nos mercados virtuais da internet. Esses chamados “influenciadores digitais” atuam profissionalmente encorajando preferências de consumo, direcionando conteúdos e produtos nas redes sociais. Noutras palavras, o clima abrange a internet e torna tanto life coachings quanto influenciadores digitais, um produto em si, expondo uma fórmula simplificadora de desenvolvimento de supostas habilidades. Essas atividades não se baseiam em métodos científicos, pois já estão validadas pelas experiências de sucesso pessoal de seus criadores, por vezes, questionáveis.

Outra profissão que ganha destaque tecnológico é a função desembrenhada pelos “avaliadores digitais”. Na prática, tratam-se de pessoas encarregadas de encaminhar feedbacks avaliando produtos, empresas fornecedoras e seus serviços pela internet. A intenção é influenciar no comportamento dos consumidores, aumentar o engajamento do produto com o público, ampliar divulgações, além de encorajar os consumidores mais indecisos. As empresas chegam a remunerar pela quantidade de reviews ou pela qualidade do parecer via feedback. O problema maior é que não há como saber se de fato a maioria dos pareceres digitais, principalmente os positivos, sejam de fato verdadeiros.

Algo semelhante nasce à margem da disputa por identidade visual e prestígio nas redes, à prática da compra de seguidores no youtube e instragram por “digitais influencer”. O problema é quando a compra de seguidores faz surgir um mercado lucrativo de falsos seguidores e de marcas interessadas em apostar nesses perfis. A proposta dos sites de relacionamento, que antes era a de comunicar afetos, agora carrega duras ambições profissionais de concorrência. Esse comportamento prejudicial das redes é reforçado, periodicamente, por sintomas narcísicos, e já recruta preocupações das próprias redes em criar estratégias para desencorajar os efeitos métricos da vaidade de alguns de seus usuários. Caso as relações de positividade fabricadas como produto pelo influencer sejam descobertas pelo público que os consome gratuitamente, podem vir a acentuar ainda mais o isolacionismo, a rejeição e o esgotamento dessas relações profissionais que lidam com o consumo (baseado na ideia da imagem como vitrine do desejo no outro). Para essas relações narcísicas, o seguidor e o influencer estão tão deslumbrados com a imagem que não conseguem enxergar um ao outro. As Interferências dessas relações nas redes já estão prejudicando os sentimentos de autoestima de muitos usuários.

Nessas relações de busca por autenticidade versus autoexploração, o que se compra é promessa de sucesso profissional e pessoal. O que se celebra é o tempo do esforço diminuído dos diplomas e o alívio do método curto para alcançar o desejo. E o que se pretende confirmar é o investimento na iniciativa de “positividade” (HAN, 2015, p.5), que está a movimentar ambições repetitivas e afastar autocríticas na vida destes consumidores. O proveito é a plenitude da experiência de sucesso individual. Por outro lado, a margem de falseabilidade que o produto do “treinamento life Coaching” nos apresenta, costuma ser explicado por contradições de ordem pessoal (que trazem resistência à ideia de sucesso), ou culpa a falta de agir próprio em busca dos sonhos. É dessa forma que a modernidade apresenta-se como o significante do paradigma máximo do novo capitalismo neoliberal (DAMACENO, 2011, p.3).

Nesse aspecto, é possível encarar o discurso da hipertecnologia também como facilitadora de novos processos de desenvolvimento, orientados pelo prefixo da autossuficiência e da praticidade desses novos métodos disponíveis. Nesse sentido, recuperamos a partir de Pierre Bordieu (1960) à ideia de “proprietarismo do capital simbólico”. Passemos a considerar nossas habilidades calculáveis na forma de “capitais representacionais”, seja em âmbito financeiro social e cultural. Se todos os capitais tentem naturalmente à acumulação, isso materializa uma ordem de consumo simbólico, que é alimentada por certas gramáticas de concorrência, de consumo e reconhecimento de si (pertencimento) dentro grupos sociais na sociedade. O resultado do superaquecimento das respostas emocionais dos sujeitos expostos ao livre comércio que provoca o trauma, a doença e a aniquilação. “Não há poder que não crie uma ‘vida psíquica’ através das marcas que deixam nos corpos”. (SAFATLE, 2015, p.194). Isso acontece quando “ser feliz deixa de ser uma aspiração para ser uma obrigação do homem ‘pós-moderno’. Obrigação que se constitui por um projeto individual e privatizado” (DAMACENO, 2011, p.3) de autorrealização.  

 

Notas e Referências

BROWN, Wendy Cidadania Sacrificial, neoliberalismo, capital humano e políticas da austeridade.  Tradução Juliane Bianchi Leão. Revista Constellations, Volume 23, No 1, 2016. Acesso em: <https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/1467-8675.12166>

DAMACENO, Bianca. A sociedade contemporânea e seus meios de competência: uma crítica ao Coaching à luz da teoria psicanalítica. Trivium vol.3, nº. 2 Rio de Janeiro jul./dez. 2011.

HAN, Byung-Chul. A Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

SAFATLE, Vladimir. O círculo dos Afetos: Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Cosac Naify, 1ª Ed. 2015.

STANDING, Guy. O precariado: a nova classe perigosa, 1ª ed.; 1. reimp, - Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

 

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