Nem só de bumba meu boi e arroz de cuxá vive o dono do mar: considerações críticas sobre o novo regramento da audiência de custodia no Maranhão - Por Bruno Taufner Zanotti e Cleopas Isaías Santos

16/07/2016

Sabe-se que o Maranhão foi a primeira Unidade da Federação a regulamentar a audiência de custódia no Brasil, em novembro de 2014, através dos Provimentos nºs 14, 21,23 e 24. A crise carcerária pela qual passava o Estado, aliada à inaugural iniciativa justificam, de certo modo, as diversas tentativas de acerto.

O tema já foi debatido e rebatido, por diversos atores e jogadores, em variados âmbitos, inclusive pelo tríplice discurso jurídico (legislativo, doutrinário e jurisprudencial), encontrando-se relativamente pacificado o seu regramento após a Resolução nº 213/2015 do CNJ.

O Maranhão resolveu sair na frente novamente e regulamentou a matéria, atendendo (mal, diga-se de passagem!) a exigência feita pela referida Resolução do CNJ.

No dia 28 de junho deste ano, na plenitude das festas juninas, entre São João e São Pedro, o Tribunal de Justiça, através de sua Corregedoria-Geral, editou o Provimento nº 11/2016, o qual contraria, a um só tempo, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, dos quais o Brasil é signatário; a decisão na ADPF 347; a própria Resolução nº 213 do CNJ; e o PLS 554/2011, aprovado no último dia 13 pelo Senado.

Segundo o art. 3º do atual regramento maranhense sobre o tema, por exemplo, a audiência de custódia só será obrigatória, por enquanto, nos Municípios com mais de 100 mil habitantes. E poderá ser realizada em até 48 (quarenta e oito) horas após a comunicação da prisão.

Nas comarcas com menos de 100 mil habitantes, a realização da audiência de custodia será gradativa, segundo o índice populacional e as condições estruturais, como preconiza o art. 4º do mencionado Provimento.

É isso mesmo! Por agora (e ainda deve demorar para que o “índice populacional” atinja os 100 mil habitantes), se o cidadão quiser ser ouvido, sem demora, pelo juiz, ele deve escolher as cidades com mais de 100 mil habitantes para praticar seus crimes. Do contrário, nada feito!

Sabemos das particularidades de cada Região e Estado deste imenso Brasil, das dificuldades estruturais, etc. Fazemos parte de uma das instituições que mais sente estas dificuldades, que é a Polícia Civil. Mas os direitos fundamentais do imputado não podem ser interpretados às avessas (SANTOS, 2015). As dificuldades estruturais e outras tantas que ressoam na persecução criminal não podem ser suportadas pelos imputados.

“Tá legal, eu aceito o argumento/Mas não me altere o samba tanto assim/Olha que a rapaziada está sentindo a falta/De um cavaco, de um pandeiro ou de um tamborim/Sem preconceito ou mania de passado/Sem querer ficar do lado de quem não quer navegar/Faça como um velho marinheiro/Que durante o nevoeiro/Leva o barco devagar”, cantaria Paulinho da Viola.

É elementar, clarividente e peremptória a determinação constante na decisão da ADPF 347 de que o prazo para a realização da audiência de custódia é de 24 (vinte e quatro) horas, contadas a partir da comunicação da prisão; e de que todos os juízes do país deverão realizá-la. Sem qualquer ressalva ou critério de seleção ou exclusão.

Pasmem! Segundo as estimativas populacionais feitas anualmente pelo IBGE (2015), somente 9 (nove) Municípios maranhenses possuem mais de 100 mil habitantes.

Como em todo o Nordeste, no Marañón, como preferiam os hispânicos da União Ibérica, as festas juninas são calorosamente comemoradas em todo o seu território, sendo o Bumba Meu Boi a expressão máxima dessa cultura, sendo, inclusive, considerado patrimônio cultural do Brasil pelo Iphan. Imagine, caro leitor, que um turista decida conhecer o Boi de Morros, na sua cidade de origem (Morros), a qual possui menos de 20 (vinte) mil habitantes, ou os Bois de tantas outras cidades com índice populacional semelhante ao último referido, e, por alguma razão, pratique um crime, com consequente prisão em flagrante. Obviamente perderia a bela apresentação folclórica e também perdido estaria seu direito a ser levado à presença de um juiz, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas. Sua situação azedaria. Não com o azedo característico e saboroso do, também prestigiado e típico, arroz de cuxá maranhense.

Outra previsão que causa estranheza (ou nem tanto assim!) é a de que o juiz, durante a audiência de custódia, poderá decidir, de ofício, sobre a conversão da prisão em flagrante em preventiva e sobre a aplicação de outras medidas cautelares alternativas ao cárcere (art. 6º, § 2º). Um instituto como a audiência de custódia, que busca, entre outras coisas, racionalizar o processo e garantir direitos fundamentais do imputado, de tal forma que haja a menor restrição possível a tais direitos, não pode ser instrumentalizado para fins inquisitoriais. Por esta razão é que o alcance dessas finalidades só será possível através da contrariedade argumentativa realizada pelo Ministério Público, pela defesa e pelo preso, como previsto na Resolução nº 213 do CNJ  (art. 8º § 4º).

A decretação, de ofício, de qualquer medida cautelar, pelo juiz, contraria o sistema acusatório, exigido pela Constituição de 1988 e pelos tratados internacionais de direitos humanos.

Em 1995, foi lançado no Brasil o livro O Dono do Mar, de José Sarney. Segundo o próprio autor, “O Dono do Mar é uma história de pescadores do Maranhão, da luta do homem com o Mar-Oceano, com os desejos, com os sonhos, com o tempo. A fronteira entre o real e o irreal se dilui nas águas, entre o sol e o nevoeiro. As mulheres são encantamentos e encantadas, conquistas e promessas, encontros e desenganos. Caravelas atravessam os anos e se perdem na navegação dos anos.”

Nele, “O tempo não existe e a vida está regulada pela lua e pelas marés, pelo tempo heroico dos descobrimentos, fantasmas, barcos e navios que andam, eternos, por todos os mares”.

Como no relato dos pescadores de O Dono do Mar, os presos da maioria das cidades maranhenses sonham com o tempo em que seu direito fundamental à audiência de custódia será respeitado; desejam que esse direito não se perca entre o sol e o nevoeiro; e que a mulher deusa que representa a Justiça possibilite apenas realidade, conquistas e encontros, encontros com as suas garantias constitucionais.

Porém, ao inverso da narrativa literária, na vida de um preso, o tempo é provavelmente o que mais importa, podendo um único dia ser a diferença entre a vida e a morte.

Na narrativa lendária do Bumba Meu Boi também estão presentes a tragédia e o drama, através dos quais a fragilidade humana se expõe.

Só o que não é trágico neste enredo é comer arroz de cuxá. Infelizmente não o servem em nossas prisões!

Oxalá! Perceba rapidamente, a Defensoria Pública, que o Provimento maranhense sob análise contraria, como referido acima, a decisão proferida na ADPF 347, além dos demais atos normativos, e proponha a competente Reclamação Constitucional perante o STF.


Notas e Referências:

IBGE. Estimativas da população residente nos municípios brasileiros com data de referencia em 1º de julho de 2015. Disponível em ftp://ftp.ibge.gov.br/Estimativas_de_Populacao/Estimativas_2015/estimativa_2015_TCU_20160712.pdf

SANTOS, Cleopas Isaías. Audiência de garantia ou sobre o óbvio ululante. Disponível em http://emporiododireito.com.br/audiencia-de-garantia-ou-sobre-o-obvio-ululante-por-cleopas-isaias-santos-2/.

SARNEY, José. O dono do mar. São Paulo: Siciliano, 1995.


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