Negociação Coletiva de Trabalho e a Reforma Trabalhista

17/12/2019

Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini

A negociação coletiva de trabalho, incentivada no âmbito do direito interno e também internacionalmente, é o caminho a ser buscado.

A Constituição da República Federativa do Brasil reconhece as convenções e acordos coletivos de trabalho, nos artigos 7º, inciso XXVI e 8º, inciso VI, ou seja, no âmbito dos direitos fundamentais.

Faz parte do contexto o fato de que o Brasil, signatário da Organização Internacional do Trabalho desde a sua criação em 1919 - em que pese não haver internalizado a Convenção 87 que trata da liberdade sindical -, ter reatificado as convenções 98 e 154, que tratam de negociação coletiva de trabalho.

A fim de delimitar o tema, importante referir que a análise diz respeito aos artigos 611-A e 611-B, incluídos na Consolidação das Leis do Trabalho. A redação do artigo 611-A estabelece que a convenção coletiva e o acordo coletivo terão prevalência sobre a lei quando dispuserem sobre determinadas matérias. Já o artigo 611-B trata do inverso, ou seja, arrola as matérias (direitos) que não podem ser reduzidos ou suprimidos por fazerem parte do rol de direitos fundamentais sociais trabalhistas, por serem considerados cláusulas pétreas da Constituição da República de 1988.

Na visão da doutrina em geral, a ideia de conflito coletivo de trabalho confunde-se com a negociação coletiva de trabalho. Na prática, a segunda é consequência da primeira.

Os conflitos de trabalho têm um divisor de águas. É da natureza humana que, aqueles que dão a sua força de trabalho para outrem, busquem sempre melhores condições de trabalho e de salário. Por outro lado, os que dispõem sobre a atividade econômica visam lucro. Não há, em um caso e em outro, juízo de valor. Trata-se apenas de realidade oriunda da própria natureza humana. Na medida em que o trabalhador subordinado busque melhores condições de trabalho e o empregador, dono do empreendimento procure lucro, há um natural conflito de trabalho de ordem sociológica. Tal conflito é solucionado pelo contrato[2].

Os conflitos econômicos são aqueles nos quais os trabalhadores reivindicam novas condições de trabalho ou melhores salários. Já nos conflitos jurídicos tem-se por objeto apenas a declaração da existência ou inexistência de relação jurídica controvertida, como ocorre em dissídio coletivo em que se declara a legalidade ou ilegalidade da greve[3].

A autocomposição é a forma de solução dos conflitos trabalhistas realizada pelas próprias partes[4]. As fontes formais de Direito do Trabalho privilegiam a autocomposição[5]. É meio autocompositivo de solução dos conflitos coletivos de trabalho a negociação coletiva. O resultado da negociação pode ser a convenção coletiva de trabalho[6] ou o acordo coletivo de trabalho[7].

A Constituição da República de 1988, sétima brasileira, sexta republicana e quinta a arrolar direitos sociais trabalhistas, foi a primeira da história consitucional brasileira a inserí-los no âmbito dos direitos e garantias fundamentais[8].

O Título II é que trata dos direitos e garantias fundamentais. Neste título, o Capítulo II trata dos direitos sociais, sendo os direitos sociais trabalhistas encontrados no artigo 7º[9]. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, entre outros, o reconhecimento das convenções e acordos coletivos e trabalho, ou seja, o reconhecimento da negociação coletiva de trabalho[10].

No contexto da dignidade da pessoa humana, também os direitos fundamentais têm papel essencial, entre os quais os direitos sociais trabalhistas, com ênfase na organização sindical e na negociação coletiva de trabalho.

Sobre negociação coletiva, já na primeira metade do século XX, Carnelutti[11] abordava a sua construção e origem:

Il regolamento collettivo, norma o sistema di norme che disciplinano tutti i rapporti di lavoro compresi in uma data categoria, nasce da uno di questi tre fatti: il contratto (colettivo), la ordinanza (corporativa), la sentenza (del magistrato di lavoro). Queste sono pertanto le sue fonti, come la legge (meglio forse l´atto legislativo) e la consuetudine sono nell´ordine vigente, le fonti della norma giuridica vera e propria.

Quando si dice che el regolamento giuridico nasce dal contratto, dalla ordinanza o dalla sentenza e, allo stesso modo, che na norma giuridica nasce dall´attto legislativo o dall´uso, i quali perciò ne constituiscono le fonti, si parla in modo figurato. In realtà il regolamente collettivo no è se non la espressione della efficacia che a questi fatti riconosce l´ordine giuridico, come la norma giuridica è l´espressione della eficacia che altre norme superiori, o, al sommo, la conscienza comune attribniscono agli altri fatti ora ricordati. Com la stessa figura si dice che la luce sorge dalla lampada o l´ombra del corpo opaco. Fonte del regolamento collettivo è dunque il fatto, a cui la legge attribuise la efficacia caratteristica di quel regolamento.

A negociação coletiva de trabalho e a fonte formal dela decorrente – convenção coletiva de trabalho - têm uma base conceitual equânime na doutrina internacional.

Por outro lado, verifica-se que, a par do fato de ser a negociação coletiva de trabalho um direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro, a sua estrutura é moldada no Brasil e em outros ordenamentos jurídicos, de modo a inserí-la no contexto social, econômico e contemporâneo das necessidades sociais. Isto, por si só, evidencia a necessidade de adaptação do direito à realidade social.

Ainda, recebem destaque as convenções 98 (1949)[12] e 154 (1981)[13] da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificadas pelo Brasil respectivamente em 1953 e 1994. Já a Convenção nº 87 da OIT, de 1948, que trata da liberdade sindical de forma mais ampla, não foi até hoje internalizada pelo Brasil[14].

A Convenção 98 tem como título “O Direito de Sindicalização e de Negociação Coletiva”. Seu enfoque principal destaca que os trabalhadores empregados devem gozar de proteção adequada contra quaisquer atos atentatórios à liberdade sindical em matéria de emprego[15].

Por outro lado, segundo a Convenção 154, a Negociação Coletiva compreende todas as negociações que tenham lugar entre, de uma parte o empregador, um grupo de empregadores ou uma organização ou várias organizações de empregadores e, de outra parte, uma ou várias organizações de trabalhadores, visando: fixar as condições de trabalho e de emprego; regular as relações entre empregadores e trabalhadores; regular as relações entre empregadores ou suas organizações e uma ou várias organizações de trabalhadores ou alcançar todos estes objetivos de uma só vez.[16]

O artigo 616, da CLT determina que os sindicatos representativos de categorias econômicas ou profissionais e as empresas, inclusive as que não tenham representação sindical, quando provocados, não podem recusar-se à negociação coletiva, que visa a convenção ou o acordo coletivo de trabalho.

Aprovada em 13 de julho de 2017, a Lei nº 13.467 passa a produzir efeitos cento e vinte dias após a sua publicação.

A Lei trata e altera diversos aspectos relativos às relações de trabalho e de emprego. Ela propõe uma revolução no mundo do trabalho que, como fundamentado nos itens precedentes, decorre da dinamicidade das relações sociais e trabalhistas neste já avançado início de século XXI. O Brasil simplesmente deve encaminhar a sua legislação laboral à realidade de mercado existente, o que é inexorável. Não se trata, aqui, de fazer uma análise ideológica sobre o mundo do trabalho, senão de adaptá-lo, de forma pragmática à realidade. É sabido que o direito corre atrás do fato social, mas sabe-se, também, que a realidade se vinga do direito quando este não se adequa a ela.

O espaço para negociação coletiva deve ser ampliado. Este é, de fato, um grande mérito da reforma trabalhista. Discorda-se da expressão “negociado X legislado”, muito utilizada na mídia. Não é disso que se trata. A Constituição da República, no seu núcleo fundamental, permanecerá incólume. A própria legislação infranconstitucional será o estatuto jurídico das categorias que não negociarem.

No ordenamento jurídico brasileiro atual, a negociação coletiva de trabalho está no rol dos direitos fundamentais sociais trabalhistas. Assim, portanto, a negociação coletiva de trabalho é um direito fundamental da classe trabalhadora. Este direito não altera o fato de que há direitos que não podem ser objeto de negociação coletiva por se tratarem de clásulas pétreas.

A adoção da Convenção 87 da OIT, que é um tratado internacional de direitos humanos, deveria se dar através do instrumento previsto no artigo 5º, parágrafo 3º, da Constituição Federal.

Como referido, mas não desimportante repetir, não há falar em “negociado X legislado”, mas sim nas possibilidades de que a negociação coletiva de trabalho, como direito fundamental dos trabalhadores que é, abrir horizontes a fim de adaptar o Direito do Trabalho ao mundo real.

Ao contrário do que muitos pregam, não há falar em fim do Direito do Trabalho ou em acabar com a CLT. O que a reforma pretende, sim, é inserir o Direito do Trabalho ao mundo do trabalho contemporâneo, já que o direito sempre corre arás do fato social.

A leitura do texto demonstra, de forma clara e inequívoca, que os direitos fundamentais sociais trabalhistas insculpidos no artigo 7º da Constituição da República são mantidos incólumes, o que não poderia deixar de ser, já que está a se falar em cláusulas pétreas.

O mesmo texto, no proposto artigo 611-B, deixa claras as situações e direitos que não podem ser objeto de negociação coletiva de trabalho.

Assim como a lei, os textos científicos devem guardar relação com a realidade, sob pena de não serem reconhecidos por ela. O que se pretendeu aqui foi demonstrar que a negociação coletiva de trabalho, direito fundamental existente desde a origem da atual Constituição, tem espaço para se adaptar às novas realidades que se apresentam e que impõem uma análise e um reconhecimento aberto, quer pelo intérprete, quer pelos atores sociais.

 

Notas e Referências

[1] O presente texto está inserido no Projeto de Pesquisa “Direitos Humanos e Fundamentais, Relações de Trabalho e contemporaneidade”, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e ao Grupo de Pesquisa “Relações de Trabalho e Sindicalismo”, liderado por este autor.

[2] No caso da relação individual, o contrato de trabalho; no caso das relações coletivas, as normas coletivas (acordo, convenção, sentença normativa ou laudo arbitral).

[3] MARTINS, 2004, p. 709.

[4] MARTINS, 2004, p. 710.

[5] É o caso da Constituição Federal, nos artigos 7º, XXVI; 8º, III e VI; 114, § 2º (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. DOU de 5.10.1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 10 abr. 2017).; e da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), nos artigos 611, 611, § 1º, e 616. (BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452.htm>. Acesso em: 10 abr. 2017).

[6] Art. 611, CLT (BRASIL, 1943).

[7] Art. 611, § 1º, CLT (BRASIL, 1943).

[8] Constituição Federal (BRASIL, 1988).

[9] STÜRMER, Gilberto. Direito Constitucional do Trabalho no Brasil. São Paulo: Atlas, 2014, p. 27.

[10] Art. 7º, XXVI, Constituição Federal (BRASIL, 1988).

[11] CARNELUTTI, Francesco. Teoria del Regolamento Collettivo dei Rapporti di Lavoro. 7º migliaio. Milan: Padova, 1936, 136.

[12] BRASIL. Decreto nº 33.196, de 29 de junho de 1953. Promulga a Convenção relativa à Aplicação dos Princípios do Direito de Organização e de Negociação Coletiva, adotada em Genebra, a 1º de julho de 1949. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1950-1959/decreto-33196-29-junho-1953-337486-norma-pe.html>. Acesso em: 10 abr. 2017.

[13] BRASIL. Decreto nº 1.256, de 29 de setembro de 1994. Promulga a Convenção nº 154, da Organização Internacional do Trabalho, sobre o Incentivo à Negociação Coletiva, concluída em Genebra, em 19 de junho de 1981. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d1256.htm>. Acesso em: 10 abr. 2017.

[14] ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção nº 87 de 1948. Liberdade Sindical e Proteção ao Direito de Sindicalização. Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/content/liberdade-sindical-e-prote%C3%A7%C3%A3o-ao-direito-de-sindicaliza%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 10 abr. 2017.

[15] BRASIL, 1953.

[16] BRASIL, 1994.

 

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