Necropolítica em tempos de COVID-19: “e daí” se irão morrer muitos jovens negros?

12/05/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Rêgo, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

Existem coisas que parecem só ocorrer no Brasil. Uma delas é a excentricidade do nosso Estado necropolítico no combate à COVID-19, que transcorre na contramão do mundo.

Sabemos que muitas dessas excentricidades do governo federal são cortinas de fumaça para esconder o que nos realmente importa. De todo modo, enxergando para além da nebulosidade, torna-se imprescindível direcionarmos nossas atenções para o somatório de circunstâncias do atual cenário atípico de pandemia, pois, concorre para o aumento da letalidade de grupos socialmente mais vulneráveis, dentre eles o de jovens negros e moradores das grandes periferias urbanas.

Dentre tais circunstâncias, podemos elencar as seguintes: 1. As ações e omissões do governo federal que, de forma proposital ou não, expõem à letalidade grupos socialmente vulneráveis (necropolítica);  2. O racismo estrutural e institucional da saúde que dificulta o acesso e o tratamento da COVID-19; 3. A historicidade arraigada àqueles jovens que, por compor a massa ativa de trabalhadores à margem do grande capital, serão mais suscetíveis aos impactos econômicos da pandemia, forçosamente levados à exposição ao vírus e, consequentemente, a uma maior letalidade.

 A necropolítica é um conceito elaborado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe para designar os mecanismos que o Estado se utiliza para decidir quem vive e quem morre (fazer morrer), num determinado corpo social (Mbembe, 2016). Exemplos desses mecanismos são as políticas públicas, que pela sua ação ou omissão, contribuem de forma intencional ou não para que determinados grupos sociais vivam com dignidade ou padeçam na subalternidade.

No caso da COVID-19, didaticamente podemos pensar que as excentricidades dos mecanismos de “fazer morrer” são as ações investidas que expõem toda a população ao risco do contágio do vírus. Dia após dia, observamos as ofensivas contra o isolamento social; o negacionismo da ciência; o chamamento das pessoas às ruas; os desarranjos políticos com as trocas de ministros; a péssima relação com países estratégicos que constrói muros ideológicos e inviabiliza parcerias de insumos e equipamentos.

Já aqueles mecanismos relativos ao “deixar morrer” se caracterizam pela omissão. A morosidade das políticas econômicas (auxílio emergencial) e repasse de verbas para estados e municípios; o descaso com os brasileiros infectados e mortos pelo vírus que, de forma deliberada, desembocam na não propositura de políticas públicas sólidas e sérias de combate à pandemia. Lembramos bem as afirmações proferidas pelo presidente da república: “é só uma gripezinha”; “é histeria”; “os brasileiros são resistentes porque mergulham em água de esgoto e nada sentem”.

Queremos dizer com isso que as ações e omissões do governo federal expõem ao risco do contágio e, portanto, o risco de morte de toda a população. Contudo, a história nos mostra que somos um país estruturalmente racista e, nesse sentido, o risco de morte incide mais fortemente sobre a população negra.  

O racismo estrutural diz respeito às estruturas estatais e hábitos culturais naturalizados que promovem, direta e indiretamente, a segregação racial. Silvio de Almeida, em seu livro “O que é Racismo Estrutural”, esmiúça esse tipo de racismo em três planos, o Econômico, quando negros pagariam proporcionalmente mais impostos que os brancos; o Político, com a pouca representatividade negra nos espaços públicos e, também, o Subjetivo, que se refere aos pensamentos racistas enraizados no imaginário social, que se fundamentam em práticas discriminatórias no cotidiano. A somatória desses planos conduziu e conduz o negro à subalternidade e, portanto, à desvantagem social. No caso da pandemia, as consequências são a maior exposição ao vírus e o precário acesso aos serviços de saúde.

Nos EUA, para dar um exemplo, a desvantagem social torna a letalidade de negros infectados pela COVID-19 muito superior a de brancos, mesmo em estados da federação em que a população de negros é inferior - na Louisiana equivalem a 70% do total de mortos, enquanto compõem apenas 33% da população. Vale lembrar que há uma especificidade do contexto norte americano em relação à realidade brasileira. Como não há a universalidade dos serviços de saúde pública e gratuita, negros e latinos têm recorrido aos hospitais em último caso, quando o estado de saúde já é gravíssimo, por receio de se endividarem com a internação nos leitos privados, o que aumenta a letalidade para essas populações.  

No contexto brasileiro, segundo dados do Ministério da Saúde divulgados no início do mês de abril, a COVID-19 também tem se mostrado mais letal entre negros e brancos, numa proporção de mortes de 1 em cada 3 (32,8%). A disparidade está ligada novamente às questões das desvantagens socais e doenças associadas.  Os negros são pacientes com diabetes, tuberculose, hipertensão, considerados agravantes aos quadros infectados pelo Novo Coronavírus.

Outro dado que chama atenção, ainda exposto pelo Ministério da Saúde, é a desproporção dos números de negros hospitalizados e mortos pela COVID-19. Os hospitalizados representam 1 em cada 4 (23,1%), mas os números chegam a 1 em cada 3 entre os mortos por COVID-19 (32,8%). Isso se explica porque, para além das comorbidades associadas que afetam mais os negros, há uma diferença de tratamento e acesso aos serviços de saúde. Podemos apontar, então, para outra modalidade de racismo, o racismo institucional, agora ligado às instituições de saúde, na qual, há uma nítida desigualdade de acesso e tratamento.

Diante do que fora exposto até aqui, chamamos a atenção para a possibilidade do aumento da letalidade de jovens negros e moradores das grandes periferias urbanas. Historicamente, este grupo social compõe a massa de trabalhadores pauperizados, colocados à margem pelos processos de acumulação do capital, tendo suas vidas gerenciadas pelo Estado Penal, como indica Wacquant (2003).

Grande parte desses jovens são os que apresentam maior dificuldade para cumprir o confinamento. São eles que residem em moradias precárias e continuam pegando trens e ônibus lotados para irem trabalhar. Isso nos levar a supor que será um dos grupos mais afetados pelos impactos econômicos da pandemia, sendo forçosamente levados à exposição ao vírus e, consequentemente, à letalidade.

O tsunami da miséria vem com prognósticos nada animadores do agravo da crise econômica provocada pela pandemia e impacto nas classes mais pobres. Segundo a Oxfam, entidade da sociedade civil que atua em cerca de 90 países, no mundo, a crise poderá levar mais de 500 milhões de pessoas à pobreza e, no Brasil, a estimativa é que adicione mais 2 milhões de pessoas à massa de 12 milhões desempregados já existente. As estimativas do Banco Mundial também argumentam nesse sentido, no caso brasileiro, e alertam para o salto de 5,6 milhões para 9,2 milhões de pessoas vivendo com renda abaixo de meio salário mínimo.

Aqui, é importante dizer o óbvio.  Não se nega o impacto econômico na vida das pessoas e nem se escolhe entre a fluidez econômica e a saúde. É preciso ser firme e assentar que não se passa por cima de corpos humanos a pretexto de salvação da economia.

O impacto econômico aumenta o bolsão de pobreza e agrava a condição de vida da população já vulnerável. O fechamento da economia (lockdown) empurra o país para a recessão e atinge diretamente essa parcela da população de jovens, que é mão de obra ativa, compelida pelo impacto econômico a ir às ruas em busca de sobrevivência e maior exposição ao vírus, como dissemos. A maior exposição e, portanto, maior letalidade, é atravessada pelo racismo estrutural (estado/cultura) e institucional na saúde (acesso/tratamento), lidada com descaso por nosso excêntrico Estado necropolítico, resumida numa única interjeição “e daí?”, que contextualizando para o cenário que se apresenta, significa: “e daí se irão morrer muitos jovens negros?”

Por fim, frente a isso, o grupo temático Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) delimita 12 pontos para reduzir impactos da pandemia em grupos vulnerabilizados¹. O grupo chama a atenção para a responsabilidade do Estado no agravamento das desigualdades sociais a partir da valorização do Sistema Único de Saúde; esforços no fortalecimento da Atenção Primária de Saúde; ampliação das condicionalidades nos programas de renda familiar, como também a inclusão do recorte de raça no planejamento das políticas e ações de saúde.

As circunstâncias dessa conjuntura atípica de pandemia não podem nos contaminar de indiferença, de deboche, muito menos nos deixar acostumar com o caos representado pela cena dantesca de pessoas sendo enterradas em caixões fechados, dentro de valas comuns, sob areias de descaso. É fundamental resgatarmos valores que comunguem com a solidariedade social e direcionarmos esforços de vigilância, atitudes firmes que defendam vidas humanas, pois toda vida importa. É tempo de união, solidariedade, mas também de luta!

 

Notas e referências

- ¹https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/sistemas-de-saude/populacao-negra-e-covid-19-desigualdades-sociais-e-raciais-ainda-mais-expostas/46338/

- Almeida, S. (2018). O que é racismo estrutural. Belo Horizonte: Letramento.

- Mbembe, A. (2016). biopoder soberania estado de exceção política da morte. Revista do ppgav/eba/ufrj, 32, 122-151.

- Wacquant, L. (2003). Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Editora Revan: Rio de Janeiro.

 

Imagem Ilustrativa do Post: discriminação // Foto de: wikimages // Sem alterações

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