Natureza Jurídica da Decisão que extingue a fase de cumprimento de sentença – Por Luís Renato P. A. F. Avezum

07/07/2017

Coordenador: Gilberto Bruschi

I – Introdução:

O presente artigo tem por objetivo analisar a real natureza da decisão que extingue a fase de cumprimento de sentença.

Trata-se de matéria de grande relevância não apenas teórico-doutrinária, mas, principalmente, prática, uma vez que, a depender da conclusão acerca da sua real natureza jurídica, tal decisão ensejará a interposição de recursos distintos (Apelação ou Agravo de Instrumento).

A jurisprudência, a nosso sentir, apesar de reiterar o entendimento de que a decisão que extingue a execução possui natureza jurídica de sentença, ainda não se debruçou totalmente acerca da natureza jurídica da decisão que extingue a fase (ou uma das fases) do cumprimento de sentença e, muitas vezes, tem decidido de forma pouco correta.

Em razão disso, evidente a relevância da matéria ora abordada.

II – Conceitos de Sentença:

Atualmente, apesar de já ter sido tema bastante polêmico, entendemos que o conceito de sentença encontra-se pacificado.

Com efeito, historicamente, a sentença já fora considerada “o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa”[1] e “o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei.”

Com a entrada em vigor da Lei nº 13.105/2015 (Novo CPC), o artigo 203, § 1º[2], prevê que “sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução.”, adotando, portanto, a conjugação de critérios conteúdo-finalidade do ato para conceituar sentença.

Como exposto acima, queremos abordar, neste artigo, qual a natureza jurídica da decisão que põe fim à fase de cumprimento de sentença. 

III – Decisão que põe fim à fase de cumprimento de sentença:

Atualmente, o sincretismo processual está em seu estágio mais avançado[3], sendo que existe um único processo com diversas possíveis fases: fase de conhecimento, fase de liquidação e fase de cumprimento de sentença.

A decisão que põe fim à fase de conhecimento, sem ou com julgamento do mérito e a decisão que põe fim à fase de cumprimento de sentença tem natureza jurídica de sentença, contra a qual cabe Recurso de Apelação.

Tal asserção, entretanto, deve ser vista com ressalvas.

Com efeito – aqui está a polêmica –, existem situações nas quais, embora se declare extinta a fase de cumprimento de sentença, o processo, como um todo, não se encerra. Logo, de sentença não se trata.

Tal situação é exemplificada com o tradicional exemplo da decisão que extingue a ação para um dos litisconsortes; sendo que tal decisão não extingue o processo como um todo, de modo que esta decisão não possui natureza jurídica de sentença, senão decisão interlocutória.

Não obstante, existem outros casos em que a fase satisfativa do processo, ou seja, fase de cumprimento de sentença desdobra-se em mais de um tipo de obrigação a ser adimplida pelo executado.

A título de exemplo, imagine a hipótese em que restou reconhecido, na fase de conhecimento, o direito a uma obrigação de fazer e, após o cumprimento desta, o direito a uma obrigação de pagar quantia.[4]

A fase satisfativa, nesta hipótese, contém duas “subfases” de cumprimento de sentença, uma de fazer e outra de pagar quantia.

Daí, surge outro questionamento: a decisão que extingue, por exemplo, a fase de cumprimento de sentença referente à obrigação de fazer, mas não a de pagar quantia, tem natureza jurídica de sentença ou de decisão interlocutória?

Ora, tal decisão põe fim à uma das fase de execução (ou melhor, a uma das fases de cumprimento de sentença); mas não ao processo em si. Logo, qual a real natureza jurídica? Qual o recurso cabível? Interposto um recurso, em tese, incabível, há fungibilidade?

As questões são polêmicas e de enorme efeito prático.

Partimos da premissa segundo a qual a regra geral do Código de Processo Civil deve prevalecer também para as decisões proferidas em fase de cumprimento de sentença, ou seja, deve haver conjugação dos critérios conteúdo e finalidade.

Porém, há uma pequena diferença, uma vez que o mérito mencionado pelo artigo 487, do CPC, refere-se àquele da fase de conhecimento, não sendo o mesmo “mérito” da fase de cumprimento de sentença ou de execução, devendo-se aplicar, quanto ao conteúdo, a norma do artigo 924, do CPC.

Logo, haverá sentença, em fase de execução ou de cumprimento de sentença, quando seu conteúdo estiver previsto em uma das hipóteses do artigo 924, do CPC; e, ao mesmo tempo, puser fim ao processo como um todo.

Ao contrário, ao não encerrar o processo como um todo, sentença não haverá.

Esta é a razão pela qual a decisão que julga a impugnação ao cumprimento de sentença pode ter natureza jurídica de sentença ou de decisão interlocutória. O conteúdo, em tais situações, pode ser o mesmo, mas seus efeitos e sua finalidade podem levar a conclusões diversas.

Com efeito, julgada a impugnação ao cumprimento de sentença, seu conteúdo estará previsto em uma das hipóteses do artigo 525, § 1º, do CPC, ou do artigo 535, do CPC, regras estas que complementam o artigo 924, do mesmo diploma. Porém, dependendo dos efeitos que causar no processo – extingui-lo ou não –, tal decisão deverá ser impugnada através de Recurso de Apelação ou de Agravo de Instrumento.

Em suma, caso tal decisão ponha fim ao processo como um todo, terá natureza jurídica de sentença; caso contrário (não ponha fim ao processo), tendo apenas “aparência” de sentença, terá natureza jurídica de decisão interlocutória.

Em situações em que se extingue a fase de cumprimento de sentença quanto à obrigação de fazer, mas ainda exista a fase de cumprimento de sentença quanto à obrigação de pagar quantia, é evidente que tal decisão não possui natureza jurídica de sentença.

Da mesma forma, a decisão que julga a impugnação ao cumprimento de sentença, mas não põe fim ao processo, tem natureza jurídica decisão interlocutória, e não de sentença.

Percebe-se, na verdade, que o principal critério a ser analisado nas decisões proferidas em fase de execução/cumprimento de sentença refere-se aos efeitos que a decisão causa, e não tanto o seu conteúdo.

Em que pese inexista normal legal expressa neste sentido, tal conclusão é facilmente atingida ao se interpretar conjuntamente os artigos 203, §§ 1º e 2º, 485, 487, 924 e 1.015, § único, todos do CPC/2015, ou seja: a decisão que extingue uma das fases de cumprimento de sentença, mas não o processo como um todo, não pode ser tratada como sentença. Trata-se, na verdade, de decisão interlocutória, contra a qual cabe Agravo de Instrumento.

Neste sentido, Nelson Nery:

“Como a sentença se define por critério misto (...), formado por duas circunstâncias cumuladas, o pronunciamento do juiz somente poderá ser classificado como sentença se contiver uma das matérias expressas no CPC 485 ou 487 e, concomitantemente, extinguir o processo no primeiro grau de jurisdição”, de modo que possuindo “conteúdo do CPC 485 ou 487, mas não extinguir o processo, o pronunciamento do juiz será decisão interlocutória recorrível por agravo.”[5]

O artigo 1.015, § único, do CPC, corrobora o entendimento defendido por nós, ao prever que, contra decisões interlocutórias proferidas na fase de liquidação de sentença ou de cumprimento de sentença, no processo de execução e no processo de inventário, cabe Agravo de Instrumento.

Deste modo, para se analisar a real natureza jurídica da decisão que extingue a fase de cumprimento de sentença/execução, não pairam dúvidas de que a interpretação que deve ser feita do artigo 203, § 1º, do CPC/2015, não é a literal; ao contrário, deve ser sistemática.

Se assim o fosse, toda e qualquer decisão que extingue a execução, encerrando, ou não, o processo, teria natureza jurídica de sentença, a ser impugnada por Apelação.

IV – Fungibilidade:

Segundo Flávio Cheim Jorge:

“A possibilidade de utilização do princípio da fungibilidade está vinculada a duas vicissitudes. A primeira liga-se à circunstância de se evitar o formalismo excessivo na admissão do recurso, tendo em vista os princípios que norteiam a aplicação das normas processuais. A segunda, e talvez mais contundente e autônoma, é revelada pela especial circunstância de um erro do sistema, quanto ao recurso cabível contra determinada decisão, não poder prejudicar o recorrente.”[6]

Conforme exposto acima, entendemos que a conclusão a que chegamos é facilmente atingida através de interpretação sistemática do CPC/2015, embora não haja previsão legal expressa quanto ao recurso cabível, deixando para o operador do Direito a análise dos efeitos que a decisão extintiva da execução/cumprimento de sentença produzirá no caso concreto.

Nesta situação, pode surgir a dúvida objetiva.

O fato do artigo 1.015, § único, do CPC, prever que cabe Agravo de Instrumento contra as decisões proferidas em fase de execução não é suficiente para afastar a incidência do princípio da fungibilidade, uma vez que a dúvida objetiva está presente exatamente quanto à natureza jurídica da decisão.

Em acréscimo, analisando-se a sistemática de tais espécies de recursos, embora possuam algumas vicissitudes, na prática, não há impedimento à aplicação do princípio da fungibilidade.

Com efeito, na hipótese de se receber o Recurso de Apelação como Agravo de Instrumento, e vice-versa, não há dificuldade alguma no julgamento deste, uma vez que tal recurso já está devidamente instruído, com peças integrais do processo.

Além disso, tendo em vista que o prazo para a interposição do Recurso de Apelação é o mesmo para a interposição do recurso de Agravo de Instrumento, a aplicação do princípio da fungibilidade é medida que se impõe.

Logo, ainda que se entenda que uma decisão tenha natureza jurídica de sentença, é de se aplicar o princípio da fungibilidade e receber o recurso de Agravo de Instrumento como se recurso de Apelação fosse.

V – Conclusão:

Concluímos, portanto, que a decisão que declara extinta a fase de cumprimento de sentença ou de execução somente terá natureza jurídica de sentença se colocar fim ao processo. Em contrapartida, caso haja decisão que não encerre o processo como um todo, como, por exemplo, a decisão que julga a impugnação ao cumprimento de sentença, reconhecendo apenas o excesso de execução; ou a decisão que declare extinta a fase de cumprimento de sentença quanto a obrigação de fazer, prosseguindo-se com a obrigação de pagar quantia, não pairam dúvidas de que se trata de decisão interlocutória, recorrível mediante Agravo de Instrumento.

Além disso, ainda que interposto recurso tido por “incabível”, entendemos ser possível a aplicação do princípio da fungibilidade, em situações nas quais haja dúvida acerca da extinção do processo como um todo, preservando-se o caráter instrumental do processo e sua efetividade.


Notas e Referências:

[1] “Art. 162. Os atos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias e despachos.

§ 1º Sentença é o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa.”

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm.

[2] “§ 1º Ressalvadas as disposições expressas dos procedimentos especiais, sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução.”

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm.

[3] Até a entrada em vigor do Novo CPC, a satisfação das obrigações de entrega de coisa, de fazer, não fazer e de quantia certa, quando oriundas de decisão judicial proferida anteriormente em fase de conhecimento, já eram efetivadas no mesmo processo, em nova fase, fase de cumprimento de sentença.

Com o Novo CPC, a obrigação de pagar quantia certa pela Fazenda Pública e a obrigação de prestar alimentos também passaram a ser efetivadas no mesmo processo, de forma sincrética.

[4] Nas ações em face do Poder Pública, ajuizadas por servidores públicos, por exemplo, com objetivo de correção da remuneração, na grande maioria, contém uma fase satisfativa dupla: obrigação de fazer (implementação do ganho em demonstrativo de pagamento) e obrigação de pagar  quantia(pagamento de RPV e/ou Precatório).

[5] Comentários ao Código de Processo Civil. 2015. P. 718.

[6] JORGE, Flávio Cheim. Teoria Geral dos Recursos Cíveis. 7ª Edição. Editora Revista dos Tribunais. 2016. Página 320.


 

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