Nascidos para matar, atavismo político e a (i)lógica da solução final

09/08/2015

Por Mariângela Matarazzo Fanfa Colognese - 09/08/2015

“Um dia, chegaremos a um estágio em que será possível determinar se um bebê, ainda no útero, tem tendências à criminalidade, e se sim, a mãe não terá permissão para dar à luz”. A afirmação feita pelo deputado federal Laerte Bessa (PR-DF), relator da PEC 171/93, que reduz a maioridade penal, circulou pela internet e teria sido publicada pelo jornal inglês The Guardian no dia 29 de junho. A assessoria do parlamentar não confirmou tal manifestação.

Muito embora a suposta afirmação tenha causado furor midiático, é preciso estar alerta não à capacidade que a mídia tem de manejar a opinião pública, mas a um perigo oculto, dissimulado, um certo tipo de eufemismo que pode disfarçar a natureza real das intenções: o impacto do conhecimento genético na área penal. Em meu pré-projeto de Mestrado assim como ao longo da especialização, pretendo aprofundar a pesquisa de um tema cujo objetivo é demonstrar os desafios trazidos pela modernização da persecução criminal com a criação de bancos de perfis genéticos e os métodos de administração da identidade genética de criminosos.

Está evidenciada a insuficiência estrutural do sistema repressivo, a injustiça da seletividade e a estigmatização do sujeito, forjados na retórica da prevenção e da proteção de bens jurídicos capitaneadas pela potestade punitiva do Estado: o direito penal e seus artifícios discursivos de legitimação (KHALED JR, 2015). Uma eventual manifestação, ainda que negada, de forma infeliz, como a do parlamentar relator da PEC 171/93, obriga-nos a questionar a dimensão de possíveis políticas discriminatórias frente ao prognóstico genético de periculosidade e os riscos de se criar um instrumento de profilaxia social para identificar, selecionar e neutralizar o inimigo.

Dentre tantas revoluções no campo científico, as descobertas acerca do genoma humano foram festejadas por toda a comunidade científica e pela sociedade mundial, mas essa perspectiva de normalidade e de expectativas grandiosas posteriormente cedeu lugar ao medo diante da iminência de fugir do controle humano (organismos geneticamente modificados, pesquisas com células-tronco etc.), impondo a lógica do risco (CALLEGARI, 2010).

A sociedade altamente industrializada traz consigo, como produto da modernidade e da aliança entre capitalismo e desenvolvimento tecnológico, o medo, fruto do perigo das forças produtivas e criativas humanas, característica denominada sociedade de risco pelo sociólogo alemão, Ulrich Beck. Em meio à política, o comportamento, a economia, a produção social, as ciências avançadas, as catástrofes ambientais, cada vez mais se desenvolvem os riscos da modernização de forma incalculável e imprevisível, e seus efeitos nocivos percorrem caminhos intrincados (BECK, 2010).

Por isso, uma declaração infeliz e irresponsável como a do parlamentar, Laerte Bessa, causa inquietude (e deve causar), pois existem riscos que escapam à nossa capacidade perceptiva imediata[1].

É sabido que o medo da sociedade tem exacerbado a repressão estatal e fez evoluir o sistema penal até a maximização da segurança, e a desnaturação e apropriação dos mecanismos processuais pela conveniência do poder. Da urgência da proteção surgiu a necessidade de individualização, para exigir que o sistema punitivo disciplinasse, através de um conjunto de técnicas de vigilância e diagnóstico, formas de identificar os sujeitos que se desviam da lei e da ordem, para permitir não só a punição, mas a organização e sistematização da correção desses infratores.

O potencial ameaçador que a modernidade desencadeia, se olhado pela ótica do processo de melhoramento humano através da genética, encontra-se na própria responsabilidade pelos efeitos colaterais. Nesse mesmo sentido, a atuação política expande sua influência e condiciona a mudança no interesse de todos para fortalecer e recuperar seu controle parlamentar democrático[2]. Em contrapartida a sociedade, sistematicamente inquieta, se dá por satisfeita quando implementadas políticas públicas, sem se dar conta de que são dissimuladas pelo autoritarismo científico e controladas pelo intervencionismo estatal.

Situo-me dentro de um contexto onde a genética poderia se constituir em instrumento de poder. Um poder não necessariamente sobre a vida e a morte, mas um poder sobre determinado comportamento, conduta, sobre um homem necessário ao funcionamento e manutenção da sociedade capitalista, apto ao trabalho e incondicionalmente livre de qualquer comportamento desviante[3].

Suscito aqui qualquer intenção que possa estar dissimulada entre o ser humano, o direito penal e a genética, seja através de potenciais atentados à integridade do patrimônio genético, seja para legitimar qualquer ingerência do Estado na esfera íntima dos sujeitos para afirmar a validade da norma e reforçar a consciência jurídica da sociedade, proporcionando a satisfação de seus anseios por segurança e a neutralização dos infratores.

A prova genética, utilizada em muitos países atualmente, pode ser determinante no resultado de uma ação penal, considerada a carga probatória exigida para a demonstração da responsabilidade criminal. Na medida em que a ciência evolui e seu poder cresce exponencialmente, as possibilidades de solução de diversos delitos de forma precisa e infalível se concretizam.

Tem-se, como ponto de partida, o DNA, tido como a impressão digital genética de cada pessoa, parte integrante de um patrimônio único e restrito. O ingresso no recanto mais íntimo da vida humana, mesmo que para constituir evidência irretorquível diante de um tribunal, desvela novos horizontes éticos em face de perigosas possibilidades trazidas pela sua utilização e potenciais violações.

Numa abordagem que poderia assim se dizer premonitória dos reflexos que a engenharia genética pode ter no sistema punitivo, importa enfatizar que o Direito Penal não é o instrumento adequado para enfrentar o impacto do conhecimento genético. Isso porque desconhecemos as reais consequências dessas novas tecnologias quando está em pauta no debate jurídico-penal da atualidade a crescente criminalidade, a necessidade de novas leis e de novas formas de tutela a bens jurídicos, quando está em cena a tríade indivíduo-Estado-sociedade, com a eleição de um direito penal de resposta que reflita o efeito da pressão popular sobre os poderes públicos.

Sabe-se que o cárcere não ressocializa, não reeduca e não reinsere. As políticas de prevenção, de assistencialismo e de segregação não contêm nem impedem a ocorrência do evento criminoso. O Direito Penal é por excelência seletivo, estigmatizante e excludente[4]. Nesse jaez, o potencial quase ilimitado desvelado pela decodificação do genoma humano, que assim, como tudo aquilo que foi criado pela mente humana pode ser usado tanto para o bem como para o mal, torna-se uma perigosa engrenagem na máquina que empurra para o sistema penal uma horda de excluídos.

O que move o homem através da história é o desejo de conhecer o próprio homem, sua natureza, seu comportamento, suas ações e reações. Depois de séculos da desconstrução da figura do criminoso atávico[5], ainda nos perguntamos como podemos identificar um indivíduo e evitar que ele cometa um crime?

Com a teoria do criminoso nato ou criminoso atávico, surgia a mística de que constatadas determinadas características físicas e psíquicas, seria possível antever aqueles indivíduos que se voltariam para o crime. Lombroso imaginou ter encontrado no criminoso, uma variedade anômala da espécie humana com aspectos fenotípicos que revelavam a constituição delinquencial.

De sua doutrina, tirou conclusões de política criminal, ou seja, dominado por seu impulso criminal incontido, ao criminoso nato não se aplica qualquer forma de punição, seja por castigo moral ou qualquer outra medida infamante e “a sociedade teria o direito de proteger-se desse tipo de criminoso, até condenando-o à prisão perpétua e só excepcionalissimamente e apenas como medida de seleção condená-lo à morte”. (FERNANDES, 2002, p. 82).

Sim, este é o delírio lombrosiano externado pelo parlamentar relator da PEC da redução da maioridade penal!

Mesmo que a teoria de Lombroso não tenha resistido às pesquisas ulteriores que apontaram os aspectos falhos da Antropologia Criminal, acabando por fulminar com a figura do criminoso atávico, o impulso às investigações criminológicas que progrediram até a atualidade é um mérito histórico que não lhe pode ser tirado e persiste, ainda hoje, a figura do criminoso nato no pensamento social[6].

A pretensão de explicar isoladamente o complexo comportamento criminoso a princípio vinculada ao darwinismo por Lombroso, pode novamente colocar o sujeito de forma circunscrita e isolada na tentativa de mensurar não mais seus aspectos físicos, morais e comportamentais, mas seus aspectos genéticos, considerando-se uma hereditariedade funesta e uma disgenia biológica, com possibilidade de propor não só o extermínio de fetos com tendências à criminalidade, mas intenções de melhoramento da raça humana.

Portanto, é adequado que se diga que mesmo que a criminologia moderna não consagre a teoria de Lombroso, admite a hipótese da tendência de que o homem pode nascer com uma inclinação para a violência, via de consequência, reconhece a chamada Teoria da Disposição de Lombroso, e sempre ávida em perquirir as manifestações comportamentais, jamais cessou seus estudos na busca de fatores que expliquem o fenômeno da delinquência, sejam eles antropológicos, sociais ou biopsicológicos.

O espectro de Lombroso e o conteúdo determinista das suas teorias não abandonaram jamais as inúmeras investigações científicas que tentaram elucidar o fenômeno criminal. Num futuro bem próximo, talvez não seja impossível para a ciência descrever o design genético do homem criminoso, o que guarda bastante conveniência para as proposições do parlamentar, Laerte Bessa, e permitiria um prognóstico irrefutável de periculosidade, antecipando a culpa, a pena, uma contramão do princípio do fato, um atropelo de todas as garantias constitucionais e processuais penais, até mesmo aquelas garantias de caráter universal[7].

A verdadeira “solução final” para neutralizar uma possível aberração genética com   a inevitável pulverização do estado constitucional e democrático.

Em um passado muito recente, ficou demonstrado que o direito e suas pretensões normativas não conseguiram proteger minimamente a pessoa humana dos campos de concentração, das barbáries e dos experimentos genéticos levados a efeito pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Os avanços científicos no sequenciamento do genoma colocam o homem diante de possibilidades até então desconhecidas, em razão do que há a necessidade de se evitar que os símbolos mais marcantes daquele período sejam revisitados.

É desse modo, para incrementar a mística que envolve o homem delinquente, que as promessas da genética e seu séquito de biotecnologidas podem influenciar o pensamento criminológico e enveredar por uma fronteira que deve manter-se intransponível. Cabe, diante desse alerta, suscitar questões primordiais que norteiam o debate a respeito de estudos que tem como escopo esclarecer a gênese criminosa[8], posto que “é multifatorial e não se encontra completamente elucidada” (CARVALHO, 2011, p. 70) após todas as tentativas históricas de explicar a contribuição de fatores exógenos e endógenos, porque, ingenuamente, se supõe que a corrente positiva da criminologia já foi superada e seus estudos sobre atavismo relegados à medicina e à psiquiatria, da mesma forma que a corrente sociológica transferiu seus estudos para o encargo da sociologia e, por fim, a corrente crítica transmutou-se em política criminal alternativa[9].

As descrições do comportamento humano como um fenômeno, em grande parte, pré-programado através dos genes, despreza ou minimiza o efeito da interação entre um organismo biologicamente constituído e seu ambiente. O reducionismo genético é uma concepção pseudocientífica que afirma que os genes possuem a explicação final para muitas características de organismos vivos, inclusive os humanos. Em particular, esse reducionismo biológico está contido na ideia do biólogo e escritor britânico, Richard Dawkins, em seu livro O Gene Egoísta (2001), onde popularizou a visão genecêntrica da evolução e introduziu um paradoxo evolutivo, ao afirmar que os genes comandam tudo.

O reducionismo expressa a noção de que as variações de tais aspectos como saúde e comportamento, organização social e atividades gerais da vida, são explicadas basicamente por variações genéticas, com pouca influência do ambiente. Em suma, fenômenos humanos podem ser reduzidos a estruturas moleculares a que chamamos genes. Por sua vez, a projeção da herdabilidade genética no campo da Criminologia se deu através de inúmeras pesquisas e estudos desenvolvidos com irmãos gêmeos, pais e filhos adotivos e núcleos familiares. Estudos que concluíram que a criminalidade seria um fator geneticamente herdado. Já outros estudos orientados sugeriram que a agressividade ou a violência seriam frutos de uma alteração cromossômica chamada síndrome XYY e também da variação de genes que coordenam as concentrações de determinadas enzimas[10].

Considerando a carga científica dessas constatações e que fatores genéticos são transmitidos através dos cromossomos, podemos dizer que gerações futuras estão condenadas à máquina voraz do sistema penal.

Com o advento do Projeto Genoma Humano, é só uma questão de tempo até se correlacionar os genes com suas respectivas funções e identificar adequadamente o seu papel sobre o genótipo apresentado pelo homem delinquente. Assim, “a grande utopia que os estudos criminogenéticos buscam é a possibilidade de aplicação do preceito ‘sublata causa tollitur effectu’, isto é, suprimida a causa, cessa o efeito” (CARVALHO, 2011, p. 81), ou seja, conheça o inimigo para combatê-lo e neutralizá-lo.

Muito embora se tenha em mente que tal absurdo, como o apontado pelo parlamentar, não tenha condições de se perpetuar no atual estágio democrático em que nos encontramos, tão só a identificação de indivíduos como seres determinados a delinquir macula a dignidade da pessoa humana e faz exsurgir a identidade deteriorada pelo crime, o estigma (GOFFMAN, 1963). Há apenas uma alteração do locus epistemológico: sinais corporais ou o status moral de quem os carrega para o perfil genético maculado pela pecha da perpetuidade. É esse atributo que inclui esse sujeito em determinada categoria, reduzindo-o a uma pessoa indesejável, perigosa, detestável. Destarte, o crime é um estigma que torna o criminoso no protótipo do banido social, atributo do qual nem ele se livrará, nem os seus descendentes.

Sem embargo, a questão do poder, da ciência e da criminalidade tem no horizonte o fenômeno da urgência, que clama por leis que criem novos tipos penais, por medidas coercitivas mais duras, pela aceleração dos procedimentos, pela sumarização do processo, pela expansão do direito penal e das políticas criminais.

Como já dito, essa evolução não visa tratar nem corrigir, sequer transformar criminosos, porque é um processo difícil, dispendioso e é falho. O objetivo é a maximização da segurança e não a correção de comportamentos individuais. A crença na infalibilidade da identificação de criminosos pelo método do DNA já seduziu a ciência forense, as práticas investigativas, a legislação atual e o imaginário social, que crê que tudo se resolverá ao estilo CSI e Law and Order. As consideráveis descobertas na área da genética humana, cuja relevância não pode ser subestimada, podem transformar o sistema penal numa típica saga hollywoodiana ao estilo Minority Report e Gattaca[11].

Não se está olvidando da essencialidade do DNA no âmbito judicial. O que se está pondo em pauta é o perigo que emerge da sua utilização[12]. Não se pode ignorar a “zona de imunidade” para aquilo que pertence somente a nós, um patrimônio que é essencialmente humano e âmbito exclusivo de cada um, contudo, é razoável dizer que a proteção à liberdade, à autonomia, à intimidade, à privacidade e à dignidade não possui um status obrigatório com a amplitude que deveria ter na medida em que abre precedentes para que essa proteção seja solapada em nome do progresso científico.

Nessa toada, cabe denunciar a índole iminentemente determinista e hegemônica, voltada à clientela do sistema penal, cuja função é excluir de qualquer benefício legal incorporado ao processo e à execução penal, sem nenhuma consideração a cada particularidade, as pessoas geneticamente determinadas a delinquir.

Fica suficientemente clara a incidência de um direito penal do inimigo no momento em que se engendra uma nova onda eugenista, com a inversão de toda uma ordem jurídica que desautoriza a aplicação de qualquer “penalidade em virtude de prevenção ou simples presunção de criminalidade real, potencial ou eventual”. (FERNANDES, 2002, p. 295). Isso, porque não é autorizado aplicar uma pena sem que o crime tenha sido perpetrado.

Qual será a justificativa para a profilaxia sugerida pelo parlamentar: a impossibilidade da terapêutica ou da pena diante da inexistência de conduta delitiva?

Senhor deputado, mais bom senso! Não precisamos de leis de ocasião que desencadeiem uma guerra preventiva. Não precisamos de medidas excepcionais para acelerar os procedimentos em matéria penal. Não precisamos de um panorama de exceção para combater um inimigo que sequer nasceu. Não queremos criar a atmosfera de medo desse inimigo capaz de fomentar políticas de vigilância e de segurança para eliminação dessa figura, muito mais amplas e invasivas do que nosso sistema correcional incompetente e falho possa suportar. Não queremos correr o risco da desumanizar e mecanizar a justiça penal. Não queremos ser seduzidos pela ideia bizarra de que sinais genéticos podem caracterizar alguém como inimigo público.

Queremos o que o pós-holocausto edificou: limites éticos de conduta na administração responsável da vida humana e na preservação de sua dignidade.


Notas e Referências:

[1] “Muitos dos novos riscos (contaminações nucleares ou químicas, substâncias tóxicas nos alimentos, enfermidades civilizacionais) escapam inteiramente à capacidade perceptiva humana imediata. Cada vez mais estão no centro das atenções ameaças que com frequência não são nem visíveis nem perceptíveis para os afetados, ameaças que, possivelmente, sequer produzirão efeitos durante a vida dos afetados, e sim na vida de seus descendentes, em todo caso ameaças que exigem os “órgãos sensoriais” da ciência – teorias, experimentos, instrumentos de medição – para que possam chegar a ser “visíveis” e interpretáveis como ameaças”. (BECK, 2010, p. 32).

[2] “Sob esse efeito, a apatia e o cinismo políticos podem crescer rapidamente entre a população, o fosso já existente entre a estrutura social e a política e entre os partidos políticos e o eleitorado pode prontamente alargar-se. A refutação “da” política acaba atingindo cada vez mais possivelmente não apenas representantes ou partidos isolados, mas o sistema das regras do jogo democrático como um todo. A velha coalização entre insegurança e radicalismo seria revivida. O clamor por comando político volta a retumbar ameaçador. A ânsia por uma “mão forte” cresce na mesma medida em que o indivíduo vê o mundo vacilar à sua volta. O desejo de ordem e segurança reaviva os fantasmas do passado. Os efeitos colaterais de uma política que desconsidera os efeitos colaterais ameaçam converter estes em seu contrário. Ao fim e ao cabo, já não se pode garantir que o passado ainda não superado não se acabe tornando uma variante possível (ainda que sob outras formas) de desenvolvimento futuro”. (BECK, 2010, p. 332).

[3] “Não se explica inteiramente o poder quando se procura caracterizá-lo por sua função repressiva. O que lhe interessa basicamente não é expulsar os homens da vida social, impedir o exercício de suas atividades, e sim gerir a vida dos homens, controlá-lo em suas ações para que seja possível e viável utilizá-los ao máximo, aproveitando suas potencialidades e utilizando um sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de suas capacidades. Objetivo ao mesmo tempo econômico e político: aumento do efeito de seu trabalho, isto é, tornar os homens força de trabalho dando-lhes uma utilidade econômica máxima; diminuição de sua capacidade de revolta, de resistência, de luta, de insurreição contra as ordens do poder, neutralização dos efeitos de contrapoder, isto é, tornar os homens dóceis politicamente. Portanto, aumentar a utilidade econômica e diminuir os inconvenientes, os perigos políticos; aumentar a força econômica e diminuir a força política”. (MACHADO, 2006, p.172).

[4] Alessandro Baratta vaticina que o sistema penal mantém uma estrutura essencialmente vertical da sociedade, colocando em ação processos de marginalização de sujeitos oriundos das classes sociais mais baixas. Isso se deve ao sistema de valores refletido pelo processo de criminalização primária, de índole predominantemente  burguesa-individualista, em que sobressai a proteção ao patrimônio privado. A seleção criminalizadora formula tipos penais que incidem sobre condutas típicas de "grupos socialmente débeis e marginalizados". Com isso, a lei tende a preservar classes sociais mais hegemônicas, que "são mais funcionais às exigências do processo de acumulação do capital" e cria o estereótipo do banido social, cujo comportamento desviante é próprio dos estratos sociais mais baixos. Os teóricos do labeling approachevidenciam de forma pontual os efeitos da estigmatização penal sobre a identidade social e colocam em xeque a função reeducativa da pena quando demonstram o elevado percentual de indivíduos provenientes de estratos sociais inferiores que integram a população carcerária. Dessa forma, o efeito da pena sobre o comportamento desviante consolida carreiras criminosas,aumentando o abismo social  e reforçando os processos de reação social contra a marginalidade, consequentemente, desencorajando qualquer forma de solidariedade com os condenados. Portanto, quem recebe o estigma do criminoso está fadado ao um processo não de reintegração, posto que não pode ser reintegrado a um espaço que nunca ocupou na sociedade, mas a um processo de desintegração social. (BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Renavan, 6ª edição, 2011).

[5] Os achados anatômicos do período antropológico criminal, no qual se sobressaiu a proposição revolucionária do médico-legista e professor de psiquiatria italiano, Cesare Lombroso, se constituiu no cerne germinativo da Antropologia Criminal. Posteriormente, ao explicar a origem das disposições criminosas, Lombroso o fez com notável originalidade, chamando a atenção dos penalistas para a pessoa do delinquente.

[6] A influência de Lombroso é incontestável. “Sua teoria, embora constituísse um equívoco visível, penetrou fundo no pensamento social, não tanto por sua força científica, quanto pelo fato de que justificava, a seu modo, um regime político e econômico que começava a ser contestado. Colocando as causas da delinquência no interior do indivíduo, na sua morfologia e na sua formação psíquica, excluía a participação das injustiças sociais da causação do crime. [...] A concepção de LOMBROSO deslocou a investigação para o próprio homem e acabou sustentando que o crime é uma conduta viva, cuja explicação só pode ser achada no homem, mediante o emprego do método científico em uso nas ciências naturais”. (RÖHNELT, 2011, p. 141).

[7] A Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos traz em seu arcabouço a garantia de respeito à dignidade humana, à proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais impostos pelos princípios de igualdade, justiça e solidariedade, cujas diretivas norteiam a formulação de legislações e políticas de cada Estado, com o compromisso destes a promoverem sua aplicação. Traz a declaração, em seu introito, o risco que a recolha, o tratamento, a utilização e conservação dos dados genéticos humanos podem acarretar “para o exercício e a observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais e para o da dignidade da pessoa humana”. A própria declaração faz sobressair que a identidade de uma pessoa não pode ser reduzida às suas características genéticas. Veja-se o artigo 3º: Identidade da pessoa: “Cada indivíduo tem uma constituição genética característica. No entanto, não se pode reduzir a identidade de uma pessoa a características genéticas, uma vez que ela é constituída pela intervenção de complexos factores educativos, ambientais e pessoais, bem como de relações afectivas, sociais, espirituais e culturais com outros indivíduos, e implica um elemento de liberdade”. (UNESCO, 2003).

[8] Para Zaffaroni, “toda ciência é ideológica (porque qualquer saber é ideológico) e o poder, em cada caso, a manipulará segundo convenha à sua conservação, privilegiando uma ideologia e descartando (ou reprimindo, limitando o desenvolvimento ou ocultando) as que considere perigosas ou negativas para ela”. (ZAFFARONI, 1997, p. 63).

[9] “A evolução científica da genética tem realizado o possível nos dias atuais para separar os genes, ou fatores hereditários individuais, determinar sua estrutura e combiná-los, superando, inclusive, limites biológicos estabelecidos pela natureza entre as distintas espécies de organismos vivos. A violência pode ser entendida como uma falha do comportamento humano em respeitar os limites entre a agressão aceitável e a inaceitável. [...] A tendência da construção de explicações biológicas para comportamentos considerados socialmente indesejados, tais como o alcoolismo, a depressão, o distúrbio de déficit de atenção e, principalmente, a violência caracterizou grande parte do discurso da Higiene e da Medicina Legal no final do século XIX e no início do XX. O determinismo biológico do início do século XX insistia no caráter orgânico e hereditário dos comportamentos considerados indesejados. Entretanto, essas explicações, longe de desaparecerem, parecem ter adquirido poder ainda maior no final do século XX e no início do XXI”. (CARVALHO, 2011, p. 70-71).

[10] “Estudos cromossômicos têm considerado a influência de anormalidades cromossômicas na agressão, particularmente na síndrome XYY (Wong et al. 1994). Contudo, a ligação entre XYY e violência não tem sido confirmada. Outros estudos sugeriram que os homens XYY são mais impulsivos para tomar decisões, têm temperamento mais forte e, muitas vezes, estão no limite inferior da inteligência normal. Provavelmente não sejam primariamente agressivos; entretanto, como têm características mais impulsivas, estas podem conduzir a um comportamento agressivo (Nielsen et al. 1973; Zeuthen et al. 1975). Estudos realizados com gêmeos buscaram uma comparação da conduta criminosa dos gêmeos univitelinos (monozigóticos) com a dos gêmeos bivitelinos (dizigóticos). O argumento utilizado é de que se a estrutura de um dos gêmeos univitelinos fosse tendente ao crime, a do outro também seria, baseado na herança genética comum de ambos. Assim, as investigações são dirigidas no sentido de demonstrar quantas vezes a criminalidade de um dos gêmeos é acompanhada pelo outro, medindo-se, assim, a influência dos fatores hereditários. [...] Condenações criminais e, particularmente, taxas de reincidência entre pais biológicos e seus filhos que foram adotados, apresentam um apoio ao modelo genético de comportamento criminoso (Tehrani et al. 1998). Investigações recentes, baseadas em técnicas de PCR “polymerase chain reaction” vêm identificando implicações em certos tipos de condutas anti-sociais, suicidas e com relação ao alcoolismo, pela variação do gene TPH, da triptofano hidroxilase, mapeado no braço menor do cromossoma 11 (Souza 1999: 121-31). Esta enzima controla a síntese da serotonina, a partir o triptofano e pode ser responsável por variações nas concentrações de serotonina cerebral. Estão sendo associadas a este gene os impulsos agressivos e comportamentos violentos decorridos, principalmente, da alteração da concentração de 5-HIAA no LCR (Tehrani et al. 1998), como já revisado”. (GAUER, 2001, p. 56).

[11] O filme Minority Report, produzido por Steven Spielberg em 2002, está ambientado no ano de 2054. Como protagonista, Tom Cruise, no papel de John Anderton, chefe de uma divisão da polícia conhecida como Pré-crime. Sua função é defender a população na prevenção de crimes que ainda não ocorreram, ou seja, prender criminosos antes que eles cometam o ato crimonoso. Portanto, a metodologia preventiva não decorre de investigações técnicas, mas de premonições noticiadas por três videntes que prevêem o comportamento de futuros infratores. Já em Gatacca, ficção científica de 1997, dirigida por Andrew Niccol, evidencia-se a preocupação com as tecnologias da reprodução humana que facilitam a eugenia. O filme conta a história de Vincent, interpretado por Ethan Hawke, ser humano que foi concebido naturalmente, vivendo numa sociedade de seres projetados geneticamente em laboratórios para serem “perfeitos”. Nessa sociedade, enquanto esses “perfeitos” ocupam as melhores posições, aqueles que possuem alguma deficiência física ou psicológica são denominados de inválidos e ocupam os setores menos privilegiados da sociedade. Uma característica da personagem é a inteligência, mas isso não importa, pois devido às suas imperfeições, Vincent vive à margem dos poucos privilegiados, obrigado a trabalhar como faxineiro.

[12] Ressalta-se o perigoso jogo das manipulações ideológicas, das quais a ciência, que não é neutra, nem isenta, nem imparcial, escapa de posições filosóficas influenciadoras. Lombroso utilizou a Teoria da Evolução de Darwin para explicar que o criminoso é uma forma de evolução anômala da espécie humana. Curiosamente, os ideais de purificação da raça nessa jornada determinista em busca de traços degenerescentes tem como principal expoente Sir Francis Galton. Galton era primo de Charles Darwin e influenciado pela obra A Origem das Espécies (1859), propôs o conceito de seleção artificial para determinar a melhoria de uma determinada espécie. Seu objetivo era encontrar traços indeléveis da individualidade, marcados pela hereditariedade e pela origem étnica, de modo a propiciar, em última análise, a determinação (pela digital) de eventuais degenerescências. Galton lançou as bases da genética humana e criou o termo eugenia. Propôs o controle reprodutivo, através de uniões eugenicamente orientadas, num esforço de aplicar a teoria da seleção natural à população humana, porém, sem esperar por milênios de evolução, pelo que seria mais eficiente através de programas seletivos, da regulamentação dos matrimônios, que transformariam as características médias da população em algumas gerações. Desse modo, se poderia estabelecer uma linha demarcatória em relação aos diferentes tipos de pessoas. Com isso, cada tipo de pessoa teria seu espaço social discriminado, assim como cada ser característico seria científica e politicamente favorecido. O racismo e a intolerância logo encontraram na eugenia um campo fértil para propagar a ideia de que era necessário eliminar os doentes, as raças indesejadas e os empobrecidos. Nos Estados Unidos, difundiu-se a eugenia negativa, por meio de proibição marital, esterilização compulsória, eutanásia passiva e, em casos extremos, extermínio. Também motivou a exclusão de classes de imigrantes e disseminou a intolerância racial e social, para se prevenir de linhagens indesejáveis. Propagando-se como ciência de forma rápida e eficaz, a eugenia passou a se ocupar do estudo e cultivo de condições para melhorar as qualidades físicas e morais de gerações futuras. No seu momento mais intenso e irascível, a eugenia americana foi quem inspirou nacionalistas como Adolf Hitler, que empreendeu suas doutrinas para identificar, segregar, esterilizar e exterminar massas de indesejáveis.

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Mariangela

Mariângela é Bacharel em Direito pela Universidade Federal Luterana do Brasil - ULBRA. Mestranda em Direito Democracia e Sustentabilidade pelo Complexo de Ensino Superior Meridional - IMED Passo Fundo/RS.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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