Narcisismo e Mediação de Conflitos: da pirâmide do sistema judicial ocidental

22/06/2015

 Por Maíra Marchi Gomes - 22/06/2015

“Sei que você fez os seus castelos e sonhou ser salva do dragão Desilusão, meu bem. Quando acordou estava sem ninguém

Sozinha no silêncio do seu quarto procura a espada do seu salvador que no sonho se desespera Jamais vai poder livrar você da fera da solidão

(...) Antes mal acompanhada do que só”

Erasmo Carlos

Na semana passada, estabeleceu-se algumas discussões sobre justiça restaurativa[1]. Neste momento, pretende-se considerar uma das maneiras com que se aplica este princípio de justiça: a mediação de conflitos. A seu respeito, sugere-se o contato com as obras de Warat (1998, 2001) e Vezzulla (2010). O foco que se pretende abordar neste escrito é o princípio da solidariedade, da ligação, da parceria, da construção que fundamenta as práticas de mediação de conflitos. A proposta da mediação pode ser pensada, dentre outras formas, como abandonar o objetivo de vencer o outro; ou, dizendo em outros termos, de se manter e/ou estabelecer hierarquias nas relações entre as partes.

As partes tornam-se autônomas, ou retomam sua autonomia, justamente porque também não esperam que uma instância a elas superior não apenas interprete o conflito, mas imponha uma solução. A propósito, sequer a solução é um dos propósitos da mediação, posto se contentar com a facilitação da comunicação entre as partes em conflito. Isto porque a mediação, especialmente a transformadora, considera não apenas que os conflitos são inevitáveis e positivos, como também que atende melhor os sujeitos quando ultrapassa suas demandas. E, assim, compreende que a satisfação dos envolvidos com o processo não possui relação direta com atendimento ou não da demanda. Aliás, via de regra é justamente o oposto: quando se permite acessar profundamente os conflitos, constata-se que o conflito instaurou-se precisamente para ocultar a manifestação dos sujeitos em sua espontaneidade. E é essa que se busca na mediação.

Ora, sabe-se que isso contradiz tanto o ideal de competitividade tão alastrado no ocidente contemporâneo, quanto, especificamente no caso brasileiro, a própria história de administração dos conflitos por parte do sistema judicial. Assim, neste escrito parte-se da idéia de que há uma dificuldade do próprio sistema judicial em abdicar de relações verticalizadas que caracterizam a modalidade tradicional com que administra conflitos. Talvez seja difícil ao sistema judicial não ser a menina dos olhos!

Nascimento (2003), nesta direção, explica que para serem administrados na ordem do Estado nas sociedades ocidentais, os fatos são adequados a definições normativas legais. E isto porque nelas as leis e o direito são culturalmente pensados como distintos de outras ordens normativas. Assim, a restrição da administração dos conflitos à aplicação de normas legais parece ser uma forma do Estado se independer dos cidadãos.

Kant de Lima (1999) continua tal discussão em âmbito mais micro, entendendo que no Brasil o sistema jurídico não reivindica uma origem democrática, mas se propõe originado de uma reflexão iluminada. Daí inclusive, a partir da noção de uma população supostamente sem educação, desorganizada e primitiva, intitular-se necessário. E, principalmente, restringir os modelos jurídicos de controle social a formulações legais especializadas, legislativa ou judicialmente.

Este tipo de função que o sistema judicial delega-se na administração de conflitos evidentemente impede, ou pelo menos dificulta, que as partes dele abdiquem. “Nesta versão do sistema de produção de verdades judiciárias, existe uma valorização positiva explícita do conhecimento detido de forma particular, não universalmente disponível na sociedade (...). Decorrem daí, inclusive, regimes retóricos distintos daqueles da argumentação que busca o consenso” (Kant de Lima, 1999, p.25).

Aliás, parece que o sistema judicial, mais que se posicionar de largada no lugar mais alto do pódio na administração de conflitos, cria conflitos entre ele e os sujeitos para nas alturas se posicionar. Para se compreender tal idéia, pode-se considerar as contribuições do autor acima referenciado sobre os efeitos de uma origem não popular do direito. Para ele, neste contexto, a desobediência às leis e regras não é transgressão moral a regulamentos explícitos facilmente acessíveis, a serem literalmente interpretados, mas a escolha pela liberdade de agir em detrimento do constrangimento externo. Em outros termos, a opção pela implementação do desejo individual ao invés da submissão a um interesse geral e difuso.

Parece que, nesta conjuntura, o sujeito entende o sistema judicial não apenas como entidade abstrata, mas como privação, já que de sua formulação o sujeito é privado desde o início. Como poderia esperar ser considerado no momento de sua aplicação? Assim, a transgressão às normas pode ter como função a expressão da subjetividade, que nestas circunstâncias é equiparada a contrapor o sistema normativo legal.

Aqui, haveria uma busca, ainda que paradoxal, do sistema judicial, enquanto instância privadora. Como se o sujeito não encontrasse outra maneira de se incluir a não ser indo até onde for limitado. Incluir-se para ser excluído. Kant de lima (1999) já dizia que no domínio do público não-democrático tudo é possivelmente permitido, até que seja proibido ou reprimido pela autoridade. A questão que se destaca no momento é que parece haver uma busca pela proibição, como preço de não se saber o que se deseja a não ser a partir da interdição. Kant de Lima (1999), de qualquer modo, também chegou a sinalizar isto, quando se referia a sujeitos que esperam de um sistema judicial que não esclarece o que pode oferecer aquilo que nem sabem querer, mas que imaginam alguém ter.

No que diz respeito à relação que o sistema judicial cria entre os próprios sujeitos, o sistema judicial criaria uma impossibilidade dos sujeitos administrarem seus conflitos ao colocá-los numa pressuposição de competição entre si. Isto resultaria de um desconhecimento pelos sujeitos dos critérios de aplicação do sistema judicial. Soma-se a isto, como o autor lembra, a aplicação não democrática das normas jurídicas. Assim restaria aos sujeitos não apenas recorrer ao sistema judicial, mas a ele recorrer apenas buscando o favorecimento na aplicação da lei ou pelo menos a neutralidade do aplicador.

O sistema judicial como aqui retratado não solucionará os conflitos entre os sujeitos, porque, como foi dito, precisa dos mesmos para legitimar sua existência nestes moldes. Portanto, a administração convencional de conflitos feita pelo sistema judicial, “como toda estrutura hierarquizada, piramidal, constituída de partes desiguais mas complementares, esta rejeita a explicitação do conflito, uma força disruptora que ameaça desarrumá-la” (Kant de Lima, 1999, p.25). Para o autor, neste contexto, as negociações não são composições que produzem uma hierarquia social includente, mas deslocamentos estruturais que afetam posições desiguais em uma hierarquia excludente.

A partir deste momento, discorrer-se-á sobre o mito de Narciso, na intenção de se compreender um pouco melhor o que se passa no sistema judicial que precisa ser demandado via transgressões. Em outras palavras: o que se passa no sistema judicial que faz com que sujeitos procurem o Estado, seja contrapondo-se a ele, seja pedindo que ele se ponha a seu favor quando em conflito com outro sujeito. Assim, o sistema judicial diz não desejar conflitos entre pares (horizontais) ou entre cidadãos e ele (verticais, digamos), mas não apenas não os soluciona com sua modalidade típica de administrá-los, como os cria.

O referido mito foi primeiramente registrado por Ovídio em sua obra “Metamorfoses”, escrita no século VIII. Segundo esta versão, que é a mais conhecida, Narciso era um jovem muito belo “filho do deus-rio Céfiso e da ninfa Liríope” (Certa, 1997, p.392). Mais especificamente, fruto de uma violência. “Ela havia sido violentada pelo deus-rio Céfiso (...). “Insaciável, Céfiso abraçou Liríope em sua correnteza e a possuiu quando passava despreocupada junto às suas margens. A ninfa, antes tão feliz e tranquila, tornou-se triste, sempre a lamentar-se, enquanto carregava o fruto daquele amor” (Grimal, 1993, p.93-94). Entretanto, ao nascimento de seu filho seu rosto voltou a iluminar-se. “O menino, que recebeu o nome de Narciso, era dotado de intensa beleza e graciosidade; seria certamente amado e desejado pelas deusas, ninfas e mulheres mortais” (Grimal, 1993, p.94) de toda a Grécia. Sua divina beleza encantou sua mãe, mas também a assombrou. Competir com os deuses em beleza era uma afronta inexoravelmente punida. “Quantos anos viveria o mais belo dos mortais?” (Grimal, 1993, p.94) perguntava-se. O temor levou Liríope a consultar o célebre adivinho Tirésias para saber quanto o filho viveria. Este, por sua vez, respondeu que ele viveria até a velhice se não olhasse para si mesmo. “Se ele jamais se conhecer” foi a resposta do cego. Por muito tempo as palavras do adivinho pareciam sem sentido e caíram no esquecimento...ainda não haviam encontrado eco.

Chegado à idade adulta, Narciso foi o objeto da paixão de grande número de mulheres; algumas delas ninfas. Porém, ele permanecia insensível, não podendo amar. Uma destas ninfas foi Eco, a qual não conseguiu mais do que as outras. Era uma das mais lindas ninfas da floresta e “famosa na arte de conversar e entreter” (Grimal, 1993, p.94), qualidade esta que fez com que o poderoso Zeus fosse lhe pedir ajuda. Com a ciumenta, e portanto atenta, esposa Hera, não podia afastar-se do Olimpo para viver suas aventuras amorosas. Então, “o soberano dos deuses foi à procura de Eco pedindo-lhe para entreter a esposa” (Grimal, 1993, p.94) para que pudesse viver novos amores. “Um pedido de Zeus não podia ser recusado e, assim, Eco foi até a rainha do Olimpo conquistando-lhe facilmente a estima e confiança enquanto contava-lhe infindáveis histórias” (Grimal, 1993, p.94). Distraída, Hera se esquecia de vigiar o marido. Em certa ocasião, a deusa das deusas desconfiou das intenções que subsidiavam aquelas amabilidades e, investigando, “descobriu a artimanha. Hera voltou-se contra Eco, castigando-a pela privação de seu maior atrativo: nunca mais seria capaz de iniciar uma conversa e só falaria para repetir aquilo que lhe fosse dito” (Grimal, 1993, p.94).

“Muda e solitária” (Grimal, 1993, p.94), Eco passou a vagar pelos bosques. Sua impossibilidade de falar tornou-se ainda mais insuportável quando, como todas as outras donzelas, apaixonou-se por Narciso. “Encantada com sua rara beleza e sem meios de declarar a ele seu amor, seguia-o sempre” (Grimal, 1993, p.94). Ao perceber a admiradora, Narciso fugia – não podia receber o amor de ninguém. A ninfa perseguia-o, acreditando um dia receber uma nesga de atenção. A grande chance de Eco chegou na ocasião em que Narciso, durante uma caçada, distanciou-se de seus companheiros. Tentando reencontrá-los, ele gritou: “Há alguém aqui?” (Grimal, 1993, p.94). Eco surpreendeu-se; porém, mesmo atrás de uma árvore devido à sua timidez, respondeu “Aqui, aqui” (Grimal, 1993, p.94). “Surpreso, Narciso olhava à sua volta e não vê ninguém” (Grimal, 1993, p.94). “Porque foges de mim?” (Grimal, 1993, p.94), Narciso diz. E a mesma voz repete-lhe a pergunta. Já desesperado e cansado, Narciso continua: “Venha!”. “Repetindo o convite que julga ser para si” (Grimal, 1993, p.94), Eco finalmente aparece tentando envolvê-lo num abraço. Narciso, desvencilhando-se de suas mãos com aborrecimento, declara: “Prefiro morrer a lhe dar poder sobre mim!” (Grimal, 1993, p.94); ao que Eco respondeu, desamparadamente: “Eu lhe dou poder sobre mim!” (Grimal, 1993, p.94).

Narciso retirou-se e Eco, sentindo-se profundamente frustrada, embrenhou-se numa caverna. Após a rejeição de Narciso, escolheu por morada os antros e cavernas. “Desesperada, a dor e o sofrimento consomem-na” (Grimal, 1993, p.94). Retirou-se na sua solidão. Gradualmente seus ossos transformaram-se em pedra e ela em rochedo, emagreceu e de si em breve não restou mais que uma voz gemente. Algumas versões propõem que seus ossos transformaram-se em penhascos e sua voz, no silêncio que os habita. Além de sua voz, somente seu amor a Narciso continuava a viver.

“As jovens desprezadas por Narciso pediram vingança aos céus” (Certa, 1997, p.392): “que ele também ame um dia e jamais possa ter o objeto de seu amor” (Grimal, 1993, p.94). Nêmesis (a deusa da vingança) as ouviu e fez com que, em um dia de grande calor, Narciso se debruçasse sobre uma fonte para se dessedentar. Nela viu o seu rosto divinamente belo e imediatamente enamorou-se, apaixonou-se perdidamente. “Julgando-se correspondido em seu amor, o jovem estende a mão e a imagem se desfaz – foge-lhe como ele mesmo fugira das ninfas” (Grimal, 1993, p.94). “A partir de então, torna-se insensível a tudo o que o rodeia, debruça-se sobre a sua imagem e deixa-se morrer” (Certa, 1997, p.392). Permaneceu ali dias e dias deixando-se consumir pela fome, sede e solidão. Preso em sua própria armadilha, “Narciso sabe agora a dor da paixão sem resposta e amaldiçoa aquela que lançara sobre ele a maldição. Lembra-se da doce figura de Eco, sempre respondendo à sua voz e sofre, ao conhecer a grande e verdadeira solidão. Pregado junto à fonte, sem poder afastar-se da sombra de si mesmo com o risco de perdê-la, Narciso também definha sem comer nem beber até cair sem vida sobre a relva. Enquanto ele dizia sua últimas palavras à própria imagem (“Adeus, querido, meu vão amor!”), Eco repete as mesmas palavras” (Grimal, 1993, p.94).  No Estige, rio dos Infernos, Narciso ainda procura distinguir os traços amados...os seus traços. No lugar onde morreu, surgiu uma flor à qual foi atribuído se nome: narciso.

Para a versão beótica, “Narciso era um habitante da cidade de Téspias, não muito longe do Hélicon. Era jovem e muito belo, mas desprezava as alegrias do amor. Amava-o um jovem de nome Amínias” (Certa, 1997, p.392). Narciso não podia corresponder a seus sentimentos. Repelia-o sem cessar e acabou por lhe presentear com uma espada. “Obedientemente, Amínias suicidou-se com essa espada diante da porta de seu amado” (Certa, 1997, p.392). Ao morrer, “invocou contra o cruel Narciso a maldição dos deuses” (Certa, 1997, p.392). Um dia em que o jovem se viu numa fonte, apaixonou-se por si mesmo. “Desesperado com a sua paixão, suicidou-se. No local onde Narciso suicidou-se, e onde a erva ficara impregnada do seu sangue, nasceu uma flor: o narciso” (CERTA, 1997, p.392). Os Téspios prestavam culto a esta história pela mesma expressar o poder do amor, a quê ele pode levar.

Pausânias, em sua versão do mito, refere que Narciso era irmão gêmeo de uma garota. Ambos eram imensamente parecidos e muito belos. Narciso a amava muito e, quando a jovem morreu, sofreu insuportavelmente. Certo dia ao refletir-se em uma fonte, julgou a princípio ver a irmã, fato que o consolou de seu desgosto. Embora soubesse perfeitamente que não era a irmã quem via no reflexo das águas, ganhou o hábito de se olhar nas fontes para o consolo de sua perda. “Segundo Pausânias, teria sido essa a origem da lenda tal como era geralmente contada” (Certa, 1997, p.392).

Independente da versão adotada, já ao nascer, parece haver sido atribuída a Narciso a condição de alguém que guardava algo de diferencial dos humanos: a condição de alguém de certa forma imortal.  Primeiramente, por ser filho de um Deus e de uma ninfa, alguém que também não é totalmente mortal. Conforme Victoria (s/d, p.125), ninfas são “divindades femininas menores (...) filhas de Júpiter, dotadas de rara beleza” (grifo meu). Secundariamente, por deter uma beleza até então desconhecida pelos humanos.

A noção de rara beleza como remetendo a uma certa imortalidade é proposta por Vernant (1992) ao trazer uma compreensão de herói como sendo aquele que possui certas qualidades físicas extraordinárias; dentre elas, a beleza. Narciso parece ter sido estruturado, posto ser reconhecido especialmente pela sua beleza, como um além-humano, como alguém que não é só um humano.

Diversas passagens nos falam de Narciso como além-humano. Dentre elas, há a a explicação de Brandão (1991) a propósito do grande número de versões deste mito como sendo a dificuldade em se definir com exatidão o local de nascimento de um deus e o fato de “na China, o narciso (‘shui hsien’) é o imortal da água” (Biedermann, 1994; p.255) (grifo meu).

Outros aspectos deste mito que nos fazem pensar Narciso como sendo mais que um humano: Nêmesis é a deusa que pune o crime mas, principalmente “a desmesura, que tende a fazer esquecer aos mortais os limites da sua condição humana (...) faz suceder a felicidade à infelicidade, sobretudo quando esta última é excessiva” (Martin, 1995, p.176) (grifos meus). Nêmesis é, a propósito, “aquela que distribui segundo a divisão” (Martin, 1995, p.176) (grifo meu), quebrando portanto uma ilusão de completude que não é acessível aos humanos. E é aquela que, segundo Victoria (s/d), pune os desumanos e “o excesso de felicidade com que um mortal pode despertar a inveja de deuses.

A concepção grega é que todo aquele que se eleva acima da sua condição está sujeito à correção por parte dos imortais” (Guimarães, 1972, p.230-231) (grifos meus), e “Narciso foi punido por ter desejado subtrair-se à lei comum” (Brunel, 1988, p.747). “Essa é uma concepção fundamental do espírito helênico: tudo o que se eleva acima da sua condição, no bem como no mal, expõe-se a represálias dos deuses” (Grimal, 1993; p. 326) (grifo meu). Nêmesis, portanto, “simboliza (...) a justiça primitiva dos deuses contra todos aqueles que teimam em ultrapassar o métron, a medida de cada um, com o descomedimento. Sua função essencial é, pois, restabelecer o equilíbrio, quando a justiça deixa de ser equânime em consequência (...) de um excesso, de uma insolência praticada” (Brandão, 1991b; p.162).

Como se Narciso não fosse humano por acreditar que poderia competir com os deuses; em outros termos, por acreditar que guardava algo de além-humano. Como se ele não se conformasse com a única felicidade possível ao humano: a do símbolo. Ou seja: a encontrada através de objetos substitutivos. Estes objetos só se constituem quando há uma castração do movimento em direção ao encontro de um objeto ideal, ao objeto completo que ilusoriamente seria trazido pelo Outro e legitimaria a ilusão de um eu pleno.

Como se Narciso não se conformasse com a única perspectiva de humanização: a morte. E, justamente por não se conformar com a morte, morre enquanto sujeito. Segundo Brandão (1991), aliás, a flor narciso possibilita o entorpecimento e um efeito calmante. Já Chevalier & Gheerbrant (1982, 359), nos diz que estas flores “simbolizam o entorpecimento da morte”.

Narcisismo acalma aqueles que não suportam a morte. Ou, em outros termos, o limite. Um sistema judicial narcísico não aceita que partes em conflito podem resolver entre si os percalços que entre elas surgiu. Talvez porque acredite que elas só se satisfarão a partir da legitimação por parte dele de que há uma delas que está correta, verdadeira, boa, merecedora. Um sistema judicial narcísico não compreende que as partes podem compreender os conflitos como inevitáveis; logo, como não passíveis de completa solução. Um sistema judicial deste porte não considera que as partes podem compreender que as construções que se faz nos conflitos entre o outro também partem, por paradoxal que pareça, das destruições que se deseja fazer dos laços com o mesmo outro. Lembremos do mito e seu alerta para as conseqüências do amor que se pretende completar o amante e amado!

Àqueles que recorrem a um sistema judicial desta natureza, talvez se possa apenas lembrar que Narciso provavelmente morreu quando se mirou no pai divino. Filho de um rio, pode ter morrido ao não conseguir se ver a não ser pelos olhos do pai. Ah, e lembrar que conluios com divindades começam a nos matar quando nos tiram a voz!


Notas e Referências:

[1] http://emporiododireito.com.br/ditadura-e-desculpavel-algo-sobre-justica-restaurativa-por-maira-marchi-gomes/

BRANDÃO, J. Mitologia grega: dicionário mítico-etimológico. vol. II. Petrópolis: Vozes, 1991.

BIEDERMANN, H. Dicionário ilustrado de símbolos. São Paulo: Melhoramentos, 1994.

BRUNEL, P. Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988.

CERTA - Centro de Recuperação e tratamento ao Adicto. Co-dependência: reflexão crítica dos critérios diagnósticos e uma analogia com o mito de Narciso e Eco. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, São Paulo, v.16, n.3, p.92-7, 1997.

GRIMAL, P. Dicionário da mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Bertrand, 1993.

GUIMARÃES, R. Dicionário da mitologia grega. São Paulo: Cultrix, 1972.

KANT DE LIMA, Roberto. Polícia, Justiça e sociedade no Brasil: uma abordagem comparativa dos modelos de administração de conflitos no espaço público. Revista Sociologia Política, (13):23-38, Curitiba, nov. 99.

MARTIN, R. Dicionário cultural da mitologia greco-romana. Lisboa: Dom Quixote, 1995.

NASCIMENTO, Nívio Caixeta do. Entre as leis e o mundo: polícia e administração de conflitos numa perspectiva comparativa. Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. Brasília: Universidade de Brasília, 2003. 201 p.

VERNANT, J.P. Mito e religião na Grécia Antiga. Campinas: Papirus, 1992.

VEZZULLA, Juan Carlos. A Mediação Comunitária: Desafios e Perspectivas. Revista da Faculdade de Direito UniRitter, Porto Alegre, n. 11, p. 47-60, 2010.

VICTORIA, L.A P. Dicionário ilustrado da mitologia. São Paulo: Ediouro, S/D.

WARAT, Luís Alberto. Em nome do acordo: a mediação no Direito. Buenos Aires: Angra Impresiones, 1998. 102 p.

 _____. O ofício do mediador. Habitus, 2001. 279 p.


. Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela UFSC e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  Facebook (aqui)                                                                                                                                                                                                                                                                                                


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