Não, você não está numa guerra! Considerações psicanalíticas sobre a indistinção entre segurança pública e forças armadas

10/08/2015

Por Maíra Marchi - 10/08/2015

Celebrar nossa desunião. (...)Vamos celebrar nossa vaidade. (...) Vamos celebrar nossa justiça, a ganância e a difamação. Vamos celebrar os preconceitos (...) não ter a quem ouvir, não se ter a quem amar. Vamos alimentar o que é maldade. Vamos machucar um coração. (...) Vamos festejar a inveja, a intolerância e a incompreensão. Vamos celebrar a violência. (...)Vamos celebrar a aberração de toda a nossa falta de bom senso, nosso descaso por educação. (...) Venha, meu coração está com pressa. Quando a esperança está dispersa só a verdade me liberta. Chega de maldade e ilusão. Legião Urbana

É demasiado corriqueira a demanda, pelos adeptos da cultura do terror[1], de legitimidade para a repressão, sofrimento, dor. Tudo isto dirigido ao outro, é claro! Afinal, quanto maior a radicalidade do outro (quanto mais diferente de mim ele se apresenta), mais insuportável é a convivência com ele por aqueles que pouco/nada podem viver em sociedade. Ou, lembrando de Freud (1915/1996, p.309) dizendo-nos que “devemos as mais belas florações de nosso amor à reação contra o impulso hostil que sentimos dentro de nós", por aqueles que nunca se tornaram capazes de amar.

Inaptos para viver em sociedade não são aqueles que transgridem regras, mas os que as pervertem. São os que, por exemplo, convencem-se e (tentam)convencer de que o outro merece ser exterminado.

Aqui, pretendo falar aos que têm o amor como bandeira, e que sofrem por continuamente se verem cercados pelo discurso do ódio. Aqueles cujos olhos marejam de sangue não entendem que o amor não é questionável. Eles não admitem que seus questionamentos do tipo “mas e se...”, numa tentativa desesperada de encontrar condições em que os que amantes não amarão, não convencem aqueles que suportam o outro sem precisar que ele seja, nem que seja num pedacinho qualquer, um espelho de si.

Pretendo dialogar com os amantes incorrigíveis, que muitas vezes sentem-se sós. Digo-lhes desde já que assim continuem nesses corredores da vida, entre um e outro esbarrão com outros que usam o próprio coração para iluminar o seu caminho. Falo aos assim descritos por Freud (1915/1996, p.285), e com o mesmo propósito citado pelo pai da Psicanálise: “O indivíduo que não é ele próprio um combatente - e dessa forma um dente da gigantesca engrenagem da guerra - sente-se atônito em sua orientação e inibido em seus poderes e atividades. Creio que receberá de bom grado qualquer indício, por mais leve que seja, que lhe torne mais fácil encontrar seu rumo pelo menos dentro de si”.

A questão que pretendo apontar é: se já é(deveria ser) ameaçador à civilização a existência de sujeitos que só dirigem ódio ao outro a ponto de procurarem justificativas para o mal (sendo seu ícone a vingança), o que pensar de um Estado que faz o mesmo? O que dizer de um Estado que também se diz estar em guerra?

Poder-se-ia discorrer sobre o desrespeito aos que de fato estiveram numa guerra ao nominarem de “guerra” a situação atual da criminalidade no Ocidente. É um ultraje a quem esteve numa guerra a mensagem de que deve tomar o autor de crimes de tráfico, roubo, homicídio, estelionato e estupro como “inimigo”[2]. Porém, apenas procurarei argumentar que a vida pode ser melhor que aquela fantasiada pelos delírios e alucinações persecutórios.

No texto já referido de Freud, que é um dos dois em que ele trata especificamente da temática da guerra, ele faz um alerta nesta direção: de que o Estado não proíbe a prática do mal porque deseja abolí-la, mas porque deseja monopolizá-la. E, ainda mais fundamental, aponta a ingenuidade dos que se vangloriam da (suposta)retidão: “Não se deve objetar que o Estado não pode abster-se de praticar o mal, de uma vez que isso o colocaria em desvantagem. Não é menos desvantajoso, em geral, para o indivíduo, conformar-se aos padrões de moralidade e abster-se de uma conduta brutal e arbitrária; e poucas vezes o Estado prova ser capaz de indenizá-lo pelos sacrifícios que exige” (Freud, 1915, p.289).

Poder-se-ia pensar que o Estado sabe muito bem que os cidadãos não estão em guerra entre si, mas que ele(Estado) ganharia se estivessem. Daí sua tentativa de piorar o que já nos é árduo: conviver. Nesta direção, é possível elencar várias modalidades com que o Estado alcança tal façanha, mas me aterei a algumas passagens de obras de autoria de policiais sobre Gerenciamento de Crises[3]. Isto porque me parece tratar de situações que bem permitem a visualização de uma confusão entre segurança pública e formas armadas. Entendo que a maneira com que a Polícia reconhece sua atribuição nestes casos é uma espécie de ícone de como vê sua atividade cotidiana (Gomes, 2010).

Dentre os fundamentos doutrinários dos Grupos Táticos, por exemplo, encontra-se unidade paramilitar ou militar de pequeno porte; hierarquia, disciplina e lealdade; voluntariado; treinamento constante; dedicação exclusiva e compromisso de matar (Souza, 1995). De fato há quem faça contrapontos a essa concepção, como Lucca (2002, pp.79-80), que permite indagarmos se a explicação para a atuação bélica de alguns grupos especiais de polícia não pode ser explicada, pelo menos em parte, a partir de sua origem. Em seus termos:

O conceito de invasão tática se popularizou no meio policial por intermédio dos modelos das SWATS americanas e, posteriormente, em outros grupos similares em países da Europa. (...) os modelos citados tiveram forte influência das denominadas Ações de Comando, que tinham como objetivo, geralmente, causar destruição baixas nos inimigos. Deve-se observar que esse modelo, para o uso policial, não se aplica e, por isso, as expressões tais como compromisso de matar, agir com violência e outras similares, não são pertinentes para nenhum grupo tático que tenha o propósito de agir (grifo do autor)

Atualmente há entendimentos técnicos, até em respeito a algumas normativas legais, que o Gerenciamento de Crises deve buscar salvar a vida de todos os envolvidos até o último recurso. Tanto o é que, mesmo quando autorizada a invasão tática (último recurso para sua solução), prevê-se que os policiais procurarão tanto quanto possível elaborar uma estratégia na qual inclusive o autor da crise permaneça vivo.

De qualquer forma, na história da doutrina policial sobre o assunto, numa obra escrita três anos após a promulgação da Constituição de 88, encontra-se este tipo de argumento: “Ao ingressar num ponto crítico para promoverem um resgate, os homens do grupo tático estão treinados e condicionados a matar os bandidos e libertar os reféns incólumes. Se porventura algum bandido lograr escapar com vida é porque a missão não foi cumprida com perfeição” (ACADEMIA NACIONAL DE POLÍCIA, 1991, p.57) (grifo meu). E, na mesma direção, a seguinte justificativa:

Os causadores do evento crítico, de acordo com a doutrina de gerenciamento de crises, tiveram a sua oportunidade de negociar, de depor armas e de buscar uma saída honrosa e segura para o problema que eles próprios criaram.

Extintas as negociações por ato unilateral deles, e começadas inequívocas ações contra as vidas dos reféns, não se pode esperar que um policial condicionado a atirar para matar vá interpretar um gesto desesperado de rendição como autêntico.

Se isso acontecer, tudo bem – a vida do bandido será preservada – mas, no caso contrário, não há por que a polícia e a Justiça ficarem chorando o leite derramado (que não era, afinal de contas, de boa qualidade) (ACADEMIA NACIONAL DE POLÍCIA, 1991, pp.57-58) (grifos meus)

Parece difícil esperar que um policial formado por um Estado que presta continência à guerra acredite que ele não está numa guerra. A eles, apresento a seguinte resposta de Dolto (1988, p.178) à carta de um menino de doze anos, porque entendo que estes policiais estão tão vulneráveis quanto um sujeito desta idade:

"as crianças precisam brincar de guerra, porque os adultos acham as armas tão interessantes que fazem desfiles delas nos dias de festa e todos vão ver e aplaudem esses desfiles de armas cada vez mais perigosas. Um fuzil de madeira, um revólver de brinquedo, não são muito perigosos e permitem brincar de durões. Eu não tenho opinião sobre o assunto. Mas há pais que têm. Os pais são como são, e, quando se escolhe os seus, é preciso se adaptar. Você, quando for pai, rapaz, fará o que quiser! E é você quem deve me dizer se acha que os colegas que não fazem brincadeiras de guerra são mais humanos e mais civilizados do que os outros. Eu não sei de nada. As brincadeiras de guerra são coisa de crianças pequenas; mais tarde, gosta-se das artes marciais, como se diz - que são jogos com regras e que exigem domínio de si mesmo."

Resta-nos indagar porque os adultos celebram as armas, inclusive em cerimônias cívicas. O que dizer de um Estado que infantiliza os cidadãos, ao confundir brincadeira e realidade de guerra?

Constatando que o Estado intervém cada vez mais para nos excluir, e não para mediar os conflitos que a relação com o outro inevitavelmente traz, cada vez mais me convenço de que a capacidade de amar o outro é inversamente proporcional ao amor à lei e à verdade. Algo que um conto de fadas já nos havia ensinado...

A menina passou a viver feliz com os anõezinhos, não fora a pertinaz estupidez do espelho que só sabia dizer a verdade, em virtude de seu rigorismo ético. Logo na primeira vez que a madrasta o procurou, o espelho amoral mas muito sabido, e acometido de esclerodactilia, dedou que a Branca de Neve continuava viva e até forneceu o seu endereço para a rainha. Se fosse hoje, é certo que ele seria empregado dos serviços de inteligência. O resto, todos conhecemos.

O espelho teria acertado se, cruzando os dedos, tivesse contado uma mentira. E isto por uma razão muito simples: a verdade pode ser colocada a serviço da morte. Também a morte ama o saber. Também a morte protege a Ciência...A corrida armamentista...(...). Será possível manter-se livre de valores quando se enfrenta a morte? Ou neutro, quando a vida está em jogo? (Alves, 1994. pp.41-42)

Além da função do personagem “Espelho mágico”, outro aspecto sobre o qual pouco se fala a propósito da história da “Branca de Neve e os sete anões” é que o pai da protagonista nada tinha de inocente. Melhor dizendo, que ele (também)tinha responsabilidade na rivalidade entre a segunda esposa e a filha. Uma responsabilidade que pode ser percebida em diversos aspectos nas várias versões da história, mas que em todas elas se encontra na transmissão de um ideal de humano. Este ideal de humano se mostra na repulsa ao horrendo pelas duas esposas e filha. A primeira, por meio da expectativa de uma filha perfeita; a segunda, da expectativa de beleza; e a última, por meio da expectativa de bondade. Não é de se desconsiderar, além disto, que a busca de atingir o ideal de todas elas era atravessada pelo objetivo de agradar esse homem.

Em algumas versões, o pai de Branca de Neve morre antes da segunda esposa tentar matá-la. Em outras, ele simplesmente desaparece a partir de determinado momento, permitindo-nos pensar em uma omissão. Mas é em torno dele que se dão, em todas as versões, algumas mortes. E é em torno de homens menores e que não são “ao-menos-um” que se dão algumas novas chances de vida (à filha, pelo menos). A plena potência costuma ser um péssimo lugar em que se mirar.

O pai real, diz-nos Freud, é castrador. Em quê? Por sua presença real, como efetivamente dando um duro em cima do personagem em relação a quem a criança se encontra em rivalidade com ele, ou seja, a mãe. Que seja ou não assim na experiência, na teoria isso não traz nenhuma dúvida — o pai real é promovido como Grande Fodedor — e não diante do Eterno, creiam-me, que nem mesmo está aí para contar o número de vezes. Mas não se paga esse pai real e mítico no declínio do Édipo por trás daquele que a criança, nessa idade no entanto avançada de cinco anos, pode muito bem já ter descoberto? — ou seja, o pai imaginário, o pai que fez essa criança ser tão fodida.

(...). Não é em torno da experiência da privação que tem a tenra criança — não tanto por ser pequena mas por ser homem — não é em torno do que para ela é a privação que o luto do pai imaginário se fomenta e se forja? — isto é de um pai que é verdadeiramente alguém. A recriminação perpétua que então nasce, de uma maneira mais ou menos definitiva e bem formada segundo os casos, permanece fundamental na estrutura do sujeito. Esse pai imaginário, é ele, e não o pai real, que é o fundamento da imagem providencial de Deus. (Lacan, 1959/2960, pp. 368-369).

É aterrador o que se faz em nome da autoridade suprema. Em nome de um oficial, de uma nação, de um Deus. E que se destaque que o pior de uma autoridade não é ser plena, mas fazer crer ao sujeito a ela submetido que ele assim deveria ser. Do pai real que é invejado, chega-se ao pai imaginário que é idealizado. Se isto nos é inevitável, que pelo menos não nos escravize. Que queiramos ser outra coisa além da imagem e semelhança Dele.

Não, não é verdade que o sofrimento torna melhores as pessoas. O sofrimento frequentemente embrutece, tira a sensibilidade, tira a esperança, torna cruéis as pessoas. Um Deus - ou força cósmica - que usasse o sofrimento para a evolução seria muito curto de inteligência - não saberia aquilo que os homens aprenderam: que a única força capaz de fazer as pessoas ficarem melhores é o amor. (Rubem Alves)

Acho indecente ser bom e lutar pela justiça porque Deus manda. Há muitos que lutam pela justiça simplesmente porque amam os que estão sendo injustiçados, sem precisar que Deus lhe dê ordens. (Rubem Alves)


Notas e Referências: 

[1] Neste texto recorrerei mais que o habitual aos poetas. Talvez porque, sendo os que melhor falam de amor, podem me ajudar a suportar falar de tanto ódio que nos assola. Aqui, reporto-me ao escrito intitulado “A cultura do terror”, de Eduardo Galeano, que bem demonstra como tudo pode ser utilizado como justificativa para se causar dor ao outro, caso isso se deseje: “A extorsão, o insulto, a ameaça o cascudo, a bofetada, a surra, o açoite, o quarto escuro, a ducha gelada, o jejum obrigatório, a comida obrigatória, a proibição de sair, a proibição de se dizer o que se pensa, a proibição de fazer o que se sente, e a humilhação pública são alguns dos métodos de penitência e tortura tradicionais na vida da família. Para castigo à desobediência e exemplo de liberdade, a tradição familiar perpetua uma cultura do terror que humilha a mulher, ensina os filhos a mentir e contagia tudo com a peste do medo.

— Os direitos humanos deveriam começar em casa — comenta comigo, no Chile, Andrés Domínguez".

[2] Não me atrevo nem a mencionar o sarcasmo de nominarem como “inimigo” o autor de furto, ameaça, injúria, calúnia, difamação, etc.

[3] Sobre conceitos que auxiliam na compreensão do que sejam, bem como de seus exemplos: http://emporiododireito.com.br/pelo-direito-de-recusar-a-bondade-dos-bons-intervencoes-policiais-em-tentativas-de-suicidio-por-maira-marchi/

ACADEMIA NACIONAL DE POLÍCIA. Manual de Gerenciamento de Crises. Brasília, 1991. 77 p. ALVES, Rubem. Estórias de quem gosta de ensinar. 17 ed. São Paulo: Cortez, 1994. DOLTO, Françoise. Como orientar seu filho: importante psicanalista responde sobre problemas psicológicos de pais e filhos. 3 ed. 2 v. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. FREUD, Sigmund. Reflexões para os tempos de guerra e morte. Obras Psicológicas Completas. v.XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1915/1996. GOMES, Maíra Marchi. O lado negro do preto: o fardo da farda: narrativas de integrantes do BOPE-SC sobre mandato policial de grupos especiais de polícia. 475 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Florianópolis, 2010. LACAN, Jacques. As metas morais da psicanálise (Lição de 29 de junho de 1960), In: _____. O seminário - Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (1959/1960). LUCCA, Diógenes Viegas Dalle. Gerenciamento de Crises em Ocorrências com reféns localizados. Monografia apresentada ao Curso de Pós-Graduação Latu Sesu em Política e Estratégia. Orientador: Braz de Araújo. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2002b. 94 p. SOUZA, Wanderley Mascarenhas de. Gerenciamento de Crises: Negociação e atuação de Grupos Especiais de Polícia na solução de eventos críticos. Monografia de conclusão de Curso apresentada ao Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais II/95. Orientador: Percival de Souza. São Paulo: Centro de Aperfeiçoamento e Estudos Superiores / Polícia Militar do Estado de São Paulo, 1995. 115 p.


Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  

Facebook (aqui)      


Imagem Ilustrativa do Post: Terror) // Foto de: Kevin Dooley  // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/alesmo/3211214202 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura