Não tá fácil, mas é preciso resistir: sobre as ameaças aos direitos das crianças e dos adolescentes no Brasil

08/10/2019

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenador Assis da Costa Oliveira

“Ah, comigo o mundo vai modificar-se.

Não gosto do mundo como ele é”

Carolina Maria de Jesus

Na América Latina, a última década foi marcada pelo crescimento e expansão social e econômica, entretanto a redução da pobreza e o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) beneficiou homens e mulheres de forma desigual de acordo com a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL, 2016). Observa-se que enquanto a pobreza decaiu, aumentou o número de mulheres vivendo em lugares pobres, num processo chamado feminização da pobreza que corrobora para o assujeitamento das mulheres a violência doméstica, laboral e que crescentemente tem motivado a vivência da situação de rua. Desta forma, o crescimento econômico e a universalização dos direitos humanos, na prática, não caminham juntos. Indicadores divulgados pela agência de notícias do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística – IBGE (RENAUX, 2018) apontam que a pobreza que estava recrudescendo no país, retornou a aumentar a partir de 2017, e atinge, principalmente, “mulheres pretas ou pardas sem cônjuge com filhos até 14 anos”. Nestes domicílios, 64,4% possuem faixa de renda de até R$ 406 mensais. Este cenário é concomitante à redução de investimentos do Governo Federal nos programas e serviços sociais, bem como, ao aumento do desemprego no país.

Autores como Silva e Teixeira (2015), denunciam que a centralidade da família na Política Nacional de Assistência Social, pode ser utilizada como uma forma do Estado transferir sua responsabilidade de garantir segurança social para às famílias. Uma estratégia que pode fragilizar ainda mais as famílias pobres e, não raro, que são chefiadas por mulheres que enfrentam os desafios de se colocarem no mercado de trabalho e cuidarem dos filhos. Sobre estas famílias incide, de modo mais forte, as recentes mudanças no sistema trabalhista brasileiro, o aumento do desemprego e a especulação imobiliária, dentre outros fatores, com consequências para as crianças e adolescentes.

As ações que visam a proteção da infância perpassam a valorização das suas comunidades e contextos sociais (PICORNELL-LUCAS, 2019), ou seja, a violação de direitos das crianças e adolescentes, por vezes, é consequência de violações de direitos que atingem seus pais. Deste modo, compreendemos que a pobreza pode amplificar o risco de ocorrer violações nas famílias, pois ela desestabiliza todos os aspectos da vida humana. Outrossim, as práticas de apoio comunitário, social e de saúde às famílias são imprescindíveis e é preciso reconhecer os impactos que mudanças no âmbito político e econômico do país têm nas famílias, suas crianças e adolescentes.

A resposta histórica do país a estas questões, tem sido a separação das famílias pobres dos seus filhos através da institucionalização. Observa-se que mesmo após o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (BRASIL, 1990) vetar a aplicação de medida protetiva em Acolhimento Institucional ou em Serviço de Família Acolhedora por motivo de carência de recursos materiais dos pais ou por fazerem uso de drogas, esta prática ainda é recorrente. Nos últimos levantamentos nacionais sobre os motivos do acolhimento, é possível verificar que a justificativa “carência de recursos materiais dos pais ou responsáveis” decresceu, enquanto o motivo “negligência” aumentou (ASSIS; FARIAS, 2013; CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, 2013; SILVA, 2004). Dados que nos levam a questionar se realmente as crianças e adolescentes não continuam sendo acolhidos por motivo de pobreza, mas agora de forma diluída numa categoria flexível como a “negligência”. Corrobora, para isto, o fato de o ECA não possuir definição do que é negligência e este ser um termo ambíguo, pois fica a questão se são os pais que não estão fornecendo os devidos cuidados aos filhos, ou se é o Estado que falha em prover a devida assistência de alimentação, medicamentos, creches, dentre outras garantias fundamentais.

Há uma realidade nacional, além disso, de casos de retiradas arbitrárias de bebês, ainda na maternidade, de mães em situação de rua e/ou usuárias de drogas. Em Nota de Repúdio, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA, 2017) cita as Recomendações nº 5 e 6 de 2014 da 23ª Promotoria da Infância e da Juventude do Ministério Público de Minas Gerais, consolidadas pela Portaria de nº 3/2016 da Vara Cível da Infância e Juventude de Belo Horizonte que orientam os profissionais de saúde a informar à Justiça toda vez que uma mulher nessas condições desse à luz. Em Mococa, município do interior de São Paulo, foi deferido judicialmente o procedimento compulsório de esterilização de uma mulher por ser classificada como “dependente química” (MARTINELLI et al., 2018). Desta forma, o Estado, na intenção de garantir o “melhor interesse da criança” intervém sem provocar melhorias nas condições de vida da população e, sim, através de ações violentas contra crianças e adultos.

Grave, também, é o crescimento de intervenções policiais nas periferias que sob o lema da “guerra às drogas”, no Rio de Janeiro, já assassinou 57 crianças entre 2017 e 2019, de acordo com a organização não-governamental Rio de Paz (CORRÊA, 2019). Estes dados espelham a realidade de milhares de crianças brasileiras que têm no seu cotidiano a dura realidade de ter aulas canceladas ou se deitarem no piso do chão da escola numa tentativa de se protegerem de balas perdidas. Este contexto, suscita a questão sobre qual a prioridade que os direitos infantojuvenis possui na agenda governamental brasileira e sobre como as instâncias da sociedade civil organizada estão se organizando para enfrentar o acirramento da violência contra crianças e adolescentes pobres por instâncias que deveriam protegê-los.

As questões aqui levantadas demandam, para além do debate acadêmico, mobilizações em defesa dos direitos das crianças, adolescentes, suas famílias e comunidades de origem. É preciso ocupar espaços de decisão e controle das políticas públicas, como os conselhos de direitos de crianças e adolescentes, da saúde, assistência social, segurança pública, dentre outros que influenciem no bem-estar desta população. Neste âmbito, o processo unificado de escolha dos conselheiros tutelares que ocorreu em todo o Brasil no dia 06 de outubro deste ano, poderá ser uma importante ferramenta na defesa dos direitos infantojuvenis. Por outro lado, pode abrir espaço para a eleição de pessoas mais interessadas em disseminar os preceitos da sua religião do que em defender os direitos fundamentais previstos no ECA. Bem como, daqueles que almejam o conselho tutelar como um mero trampolim para a carreira política ou veem as atividades do conselho como algo vinculado à caridade e, não à expansão da justiça social. Há assim, diferentes objetivos e perspectivas que podem nortear o trabalho dos conselheiros eleitos.

Neste ponto, é importante mencionar que de acordo com a Lei Federal n. 12.696 de 2012 os conselheiros eleitos para os próximos quatro anos, deverão ter acesso à formação continuada com previsão dos recursos necessários na lei orçamentária municipal e do Distrito Federal. Esta formação terá o desafio de alinhar o trabalho dos conselheiros tutelares de acordo com os parâmetros estabelecidos pelo ECA. Uma tarefa desafiadora que pressupõe ir além de conteúdos teóricos e provocar reflexões sobre as contradições econômicas e sociais do país que reverberam na violação de direitos infantojuvenis. É preciso inserir a discussão sobre as diferentes vivências das famílias que habitam os domicílios e propiciar espaços de construção de alternativas concretas para as suas dificuldades. Para tanto, é preciso construir redes de parcerias com as famílias, comunidades e demais membros do Sistema de Garantia de Direitos que abracem as potencialidades existentes. Como bem disse Paulo Freire: “[n]inguém caminha sem aprender a caminhar, sem aprender a fazer o caminho caminhando, refazendo e retocando o sonho pelo qual se pôs a caminhar” (2005, p. 35). Lutar pelos direitos infantojuvenis é desafiador, especialmente, diante da tendência atual de se tornar sinônimo de zelar pelo moralismo. Esta lógica não é ingênua, pois tem o seu papel de esconder a real imoralidade de crescimento da pobreza, homicídios, racismo e outras violências, as quais crianças e adolescentes brasileiros estão sujeitos pela ação ou omissão do Estado.

 

Notas e Referências

ASSIS, S. G. de; FARIAS, L. O. P. (orgs.). Levantamento nacional das crianças e adolescentes em serviço de acolhimento. São Paulo: Editora Hucitec, 2013.

BRASIL. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Nota pública do CONANDA de repudio a retirada compulsória de bebês de mães usuárias de substância psicoativas, 2017. Disponível em: http://www.direitosdacrianca.gov.br/documentos/notas-publicas-dos-conanda. Acesso em: 8 jan. 2019.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 de jul. de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm. Acesso em: 8 jan. 2019.

BRASIL. Lei nº 12.696 de 25 de julho de 2012. Altera os arts. 132, 134, 135 e 139 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para dispor sobre os Conselhos Tutelares. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 25 de jul. de 2012. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12696.htm. Acesso em: 8 jan. 2019.

COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE. (2016, 24 de octubre). CEPAL llama a aplicar medidas innovadoras y efectivas para garantizar los derechos de las mujeres en América Latina y el Caribe. Disponível em: https://www.cepal.org/es/comunicados/cepal-llama-aplicar-medidas-innovadoras-efectivas-garantizar-derechos-mujeres-america. Acesso em: 04 de out.de 2019.

CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Relatório da Infância Juventude – Resolução nº 71/2011: Um olhar mais atento aos serviços de acolhimento de crianças e adolescentes no País. Brasília: Conselho Nacional do Ministério Público, 2013.

CORRÊA, D. Rio de Paz faz homenagens às 57 crianças mortas por balas perdidas. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 23 set. 2019. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-09/rio-de-paz-faz-homenagens-57-criancas-mortas-por-balas-perdidas. Acesso em: 4 out. 2019.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

MARTINELLI, A. et al. Por que o processo pedindo laqueadura de Janaína sequer poderia ter existido. HuffPost Brasil, São Paulo, 31 jan. 2019. Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/2018/06/13/o-processo-pedindo-laqueadura-de-janaina-sequer-poderia-ter-existido-argumentam-juristas_a_23457398/?ncid=other_huffpostre_pqylmel2bk8&utm_campaign=related_articles. Acesso em: 4 out. 2019.

PICORNELL-LUCAS, A. La realidad de los derechos de los niños y de las niñas en un mundo en transformación. A 30 años de la Convención. Rev. Direito Práx., v. 10, n. 2, p. 1176-1191, jun.  2019. 

RENAUX, P. Síntese de Indicadores Sociais: Pobreza aumenta e atinge 54,8 milhões de pessoas em 2017. Agência IBGE Notícias, Brasília, 5 nov. 2018. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/23299-pobreza-aumenta-e-atinge-54-8-milhoes-de-pessoas-em-2017. Acesso em: 4 out. 2019.

SILVA, Enid Rocha Andrade da. O perfil da criança e do adolescente nos abrigos pesquisados. In SILVA, E. R. A. da (org.) os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil. Brasília: IPEA/CONANDA, 2004, pp. 41-70.

SILVA, M. V.; TEIXEIRA, S. M. Família como agente de proteção social e parceira do Estado na Política de Assistência Social: quais os limites dessa relação? Revista FSA, v. 12, n. 2, p. 191–207, 2015.

 

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