Não Matei Jesus – a desconstrução da culpa

05/01/2016

(Reflexões a respeito da culpa introjetada pela sociedade na psique individual. Breve autobiografia psicológica, não factual, construída a partir da análise arquetípica de alguns dos mitos vivenciados pelo autor) 

I – Não matei Jesus

Não me assustam hoje os argumentos de autoridade. Especialmente o de Rilke a seu jovem poeta, quando ele bafeja a sentença de que só vale escrever aquele que não possa viver sem fazê-lo.

Será que ele pensava isto a sério? Imagino que estivesse apenas pavoneando sua empáfia ao missivista, enlevado ao meio da redação de uma carta romântica, discursando como famoso escritor a desfilar petulância disfarçada em aconselhamento ao jovem principiante que o procurara. Que se criasse então a ilustre sociedade dos que morreriam salvo escrevessem e aos que continuam escrevendo mesmo sem estar ameaçados de óbito fosse proibido o uso das palavras!

Mas Rilke é Rilke, sua Elegia e suas Cartas me tocam profundamente, e a proposição de que só deve perseguir a escrita quem não possa viver sem ela por várias vezes me abalou e cheguei a passar longos períodos sem escrever porque sou uma pessoa que posso viver sem escrever, embora a escrita seja minha mais sincera forma de enxergar-me a mim mesmo e ao mundo e construir minha maturidade.

Ter descartado a opinião do poeta como inútil para meu saber e seguido minha labuta com palavras foi o mais decisivo embate que mantive com um argumento de autoridade. E então percebo o quanto sou vulnerável à opinião alheia.

Surpreende-me que eu tenha chegado a me privar de uma construção que é minha, por mim descoberta em minha vida e conquistada com esforço, apenas porque, grafadas num livro, poucas frases de um homem já morto aconselharam-me a abandonar a escrita.

Depois de ter superado o mau conselho do poeta e de ter retomado o meu escrever, venho progressivamente desvencilhando-me de outras autoridades em minha vida e minha grande lástima atual é a descoberta de que tanto ainda sou vulnerável ao julgamento alheio porque eu mesmo sou meu maior algoz.

Nenhuma culpa que possam me atribuir jamais será maior do que a que carrego comigo mesmo. Esta culpa que carrego me faz devedor do mundo e mesmo cumprindo todos meus deveres fundamentais, sinto-me sempre como se não estivesse fazendo o suficiente.

Já percorri diversos caminhos de investigação psicológica para hoje ter uma razoável clareza da origem de meus traumas infantis, desde o período intra-uterino, e de meus outros traumas ocorridos em idade bem mais avançada, mas também em essência infantis, porque sempre fui infantil. Desses traumas, há quem explique mas não concordo, originam-se minhas culpas pessoais e em torno delas é que se desenvolveram minhas patologias psicológicas e psiquiátricas.

Mas existem culpas universais que me assolam e besta tenho sido eu a encaixá-las como sendo minhas, deixando-me dominar pela cultura. Porque a cultura é avassaladora da individualidade para os que não são fortes. Eu sou frágil e se não me faço esperto a sociedade me mata de culpa.

Assim, ultimamente, tenho refletido a respeito de algumas culpas universais que de pés juntos venho me propondo a não mais carregar. Entre elas encontro algumas curiosas e outras trágicas. 

Não fui eu que cometi o pecado original e quando amei pela primeira vez uma mulher isto já era fato corriqueiro, de todos conhecido e já dispensava a maçã, embora a serpente ainda fosse necessária. 

Não fui eu que expulsei os homens do paraíso. 

Não fui eu quem condenou Sísifo a rolar pela eternidade enorme pedra morro acima apenas para vê-la despencar ladeira abaixo a cada vez que atingia o cume. 

Não fui eu quem criou o lago em que Narciso se afogou. 

Não inventei a história da Gata Borralheira, nem da Bela Adormecida ou do Patinho Feio e nenhum outro conto de fada. Foi Kipling quem inventou que um menininho desgarrado e indefeso como Mowgli poderia ser acalentado pelas feras ao invés de devorado – não fui eu. 

Também não inventei Morgana, não me coube participar da dissolução da Távola Redonda e não determinei a Lancelot e aos outros que saíssem em busca do Santo Graal para salvar Arthur. 

Não me cabe responsabilidade pela Evolução Natural das Espécies que Darwin descobriu e pela lei dos mais fortes que rege o universo e a humanidade desde sempre.

Não fui eu que inventei a terapia e não sou responsável nem pelo que os terapeutas pensam de mim nem pelo mal que já me fizeram com esta sua forma de pensar. Nada lhes devo pelo bem que me fizeram, porque lhes paguei bastante por isto, tudo foi muito profissional, e, postos em balança o bem e o mal, não sei calcular se o saldo é positivo ou negativo. 

Não fui eu que inventei as guerras, a riqueza e a pobreza, as ideologias, a violência das cidades, os meninos de rua, a prostituição infantil, o contrabando de crianças, o fumo, o álcool, as drogas, as prisões, os manicômios, os asilos para velhos, nem mesmo um monte de outras calamidades, inclusive a propaganda. 

A propaganda cumpre um papel especialmente nocivo na disseminação geral de culpas na sociedade e por isso é que esclareço bem que não fui eu que a inventei. Além de não ser seu inventor, também não fui eu que produzi aqueles anúncios de venda de brinquedos caros em que o filhinho ou a filhinha ficam implorando ao papai e à mamãe para comprar a bugiganga e outras atrocidades que tais. 

Não fui eu que inventei a televisão e, diga-se de passagem, nem as novelas. 

Não inventei o tabu da virgindade e nem tento agora reinventá-lo em função do “diabo-solto-no-meio-do-redemoinho”. 

Não foi minha devassidão sexual que disseminou a AIDS. 

Não fui eu que instituí fama, glória, poder e fortuna como deuses supremos de nossa sociedade. 

Não sou responsável pela solidão da Xuxa, pelo desvario de Vera Fischer e pelo suicídio de Marilyn Monroe. Não fui eu que insuflei Ayrton Senna a tentar superar Fangio e espatifar-se no muro. Não fui eu que acusei O. J. Simpson mas também não fui eu que o absolvi. 

Não fui eu quem sacrificou Oscar Wilde e tampouco tinha como convencê-lo que, assim como Aquiles, ele também tinha um calcanhar. 

Não pude evitar o suicídio de Hemingway e de Jack London.

Não fui eu que matei John Lennon. 

Não insisti com Guimarães Rosa para aceitar o fardão apenas para infartar-se em seguida e ser enterrado com ele. 

Não elegi Roberto Marinho como imortal para lançar infâmia à memória de Machado de Assis. Não deixei de convidar Vinícius para a Academia. 

Não sou responsável pelo enlouquecimento de ex-astronautas. 

Não inventei direita e esquerda e também não decretei que as pessoas precisam ser azuis ou vermelhas, nem mesmo politicamente corretas. 

Não fui eu que coloquei em extinção os micos-leões-dourados e meus dejetos são muito insignificantes para serem responsabilizados pela poluição do Tietê. Sinceramente, não é o meu banho de chuveiro elétrico que vai levar o país ao black-out. 

Não fui eu que escolhi livremente meus heróis. Meus mitos me açambarcaram sem que eu pudesse escolhê-los. 

Não fui eu que me ensinei a maior parte das coisas que aprendi. 

Não inventei os governos e não sou responsável pelo comportamento dos políticos em que voto, até porque se voto fosse facultativo certamente eu não votaria. Aliás, não fui eu que inventei que voto é um dever e não um direito. 

Não fui eu que inventei o belo e o feio, o inteligente e o burro e o definitivamente cretino. 

Não fui eu que inventei a corrupção, nem que se a propina for legalmente encaminhada por despachantes ou lobistas isto não é corrupção. 

Meu nome não é Zé Ninguém e não foi inspirado em mim que Reich escreveu O Assassinato de Cristo. 

Não fui eu que inventei as religiões.

Não inventei que as pessoas envelhecem e morrem. 

Não inventei que as pessoas morrem mesmo antes de envelhecer. 

Não fui eu que inventei a morte. 

Não matei Jesus. 

Jesus não morreu por mim. Minha morte continua a me esperar. 

II – É verdade o que falei

O estilo é uma arma de dois gumes. Escrevendo-se por demais descontraído, o que é gostoso de se fazer, corre-se o risco de que o leitor não se aperceba em plenitude do drama que se relata em texto leve, julgando, talvez, que a escrita e a leitura prestem-se apenas ao entretenimento.

Meu capítulo anterior, quando tento construir minha inocência a respeito de tudo e tanto, pode bem ter deixado esta impressão de tratar-se de crônica irreverente, algo jocosa. Os religiosos possam até pensar que escarninho de Deus. Mas assim não é e não vou mudar o capítulo, melhor seja esclarecê-lo.

As doenças psiquiátricas, em definição clássica, caracterizam-se como sendo de origem biopsicossocial. Isto significa que concorrem para estabelecê-las fatores de natureza orgânica, de ordem psicológica e outros de natureza social.

Não me interessa a origem dos componentes orgânicos de meus distúrbios. Isto é assunto de natureza médica, cheio de palavrões que eu sou incapaz de memorizar e às vezes mal consigo pronunciar. É papo meio restrito a psiquiatras, que a gente tenta compreender no início e depois desiste ou fica ainda mais louco. Minha única preocupação com o orgânico, hoje, é manter-me atento com relação à minha medicação, não deixando de tomá-la quando necessário mas evitando a todo custo o estabelecimento de dependências desnecessárias.

Entretanto, naquilo que se refere aos fatores psicológicos e sociais, eu tenho tudo na mão para não desistir de minha busca pela sanidade. Esta busca recentemente levou-me à questão da culpa. Por quais caminhos cheguei à consciência de minhas culpas é importante que eu me aperceba, pelo fato certo que é justo pelos mesmos caminhos que hei de me salvar delas.

A dinâmica da culpa é curiosa. Propõem-se a questão da culpa, no mais das vezes, os socialmente fracassados. Os que acumulam fracassos pessoais, mantendo, no entanto, a aparência de seres culturalmente bem sucedidos, com facilidade atribuem a terceiros a responsabilidade por suas dores. É no fundo do poço da estigmatização social que o horizonte da culpa pessoal infalivelmente se descortina perante o erro e o fracasso.

É paradoxal que assim seja, por dois motivos, ao menos.

Primeiro porque o que gera os mais profundos sentimentos de culpa é o descumprimento, ao longo da vida, dos padrões simbólicos de comportamento adquiridos na infância, pelos mitos de bondade, honestidade, coragem, altruísmo e demais modelos transmitidos pela mística dos contos de fada, fábulas e demais histórias maniqueístas a serviço da exaltação do belo e do bom em detrimento do feio e do mau. E aquele que sente culpa, mas culpa mesmo, de doer nos ossos, no tutano, é, assim, alguém que julgando ter-se desviado de seu caminho, ao menos no curso aparente de sua construção de vida, mantém intacto seu código de valor infantil, que é, de longe, descontado o maniqueísmo, o mais belo de todos os códigos de ética.

Segundo porque aqueles que sejam tão seguros de seu sucesso social, a ponto de não saberem sentir culpa, não importa o que lhes suceda, para atingir tal ápice, ou como conseqüência de lá terem chegado, houveram por necessidade deixar de ser crianças, tornar-se adultos, adotando o código de ética dos vencedores que de ético, na verdade, normalmente, quase nada tem.

Em outras palavras, salvo exceções, para ser socialmente bem sucedidas as pessoas no mínimo têm de abandonar o sistema de valores infantil, amadurecendo, pois para vencer é importante saber comportar-se como adulto e as que fracassam devido sua fraqueza na competição, muitas vezes devem o insucesso à infantilidade e é por continuarem sendo infantis que, em virtude dos próprios valores infantis, sentem-se culpados – culpados daquela culpa universal.

Neste aspecto, é curioso constatar que a culpa que se origina pela quebra de códigos de conduta, na verdade, embora se constitua em fardo insuportável para quem a carrega, antes é uma prova da virtude essencial da pessoa, de sua pureza interior, do que de sua devassidão, mesmo se seus atos no cotidiano mais testemunhem pela segunda hipótese. Não é capaz de sentir culpa em virtude da proximidade com o mal aquele que tenha abdicado da mística do bem.

A profunda crise moral que conhecem os alcoólatras e os dependentes de drogas é, por exemplo, um dos sérios indicativos de que sua doença muito mais se deve a diversos outros fatores do que propriamente, ou primordialmente, a defeitos de caráter. Os alcoólatras e dependentes químicos em recuperação tanto enfatizam seus defeitos de caráter, e exploram suas conseqüências, justamente porque são pessoas que, tendo fracassado e admitido sua derrota, são passíveis de culpa porque assumem responsabilidade existencial por seus destinos.

Mas de minha infância não herdei apenas um código de honra que se cristalizou em um menino dentro de mim que me cobra a cada dia se minha conduta é digna de meus heróis. Herdei também os heróis. Os viados dos meus heróis não eram apenas bons-caráter, a maioria deles era também muito bem sucedida. Os heróis, no mais das vezes, transmitem não apenas um código de honra que não sendo bem metabolizado passa a ser uma matriz da culpa pela comparação de nossa conduta com a deles, mas igualmente contribuem para o estabelecimento de metas de realização pessoal segundo ideais inatingíveis e este é o segundo motivo pelo qual meus heróis me imbuíram de culpas: pelo fato de meus feitos não serem dignos deles. (Claro que a culpa foi toda minha de achar que eu tinha obrigação de ser igual a eles).

Meus heróis: ricos, famosos, poderosos nem tanto, mas sempre muito gloriosos. Belos, arrojados, valentes – salvar uma princesa na torre, vencer uma bruxa doando a vida a uma donzela por um simples beijo, conquistar um reino, cavalgar elefantes selvagens, desafiar crocodilos, acariciar panteras e dormir recostado a um urso, ser o mais feio da ninhada e metamorfosear-se em cisne negro, chegar aos céus cavalgando um pé de feijão, combater gigantes, matando-os pela astúcia da mágica, pela pontaria de uma funda, matando sete de uma vez só qual fossem moscas e casar com a filha do rei, viver quatrocentos anos, ser eterno namorado de uma campeã, ter um cavalo e um cachorro como os melhores amigos, navegar para Ítaca vencendo os vendavais e ludibriando as sereias, adentrar labirinto para matar Minotauro e de lá se livrar pelo fio ofertado por uma princesa, matar índios para salvar os pioneiros, matar bandidos para salvar os búfalos e ficar amigo dos índios, transformar-se em índio: isto tudo era o de menos para apenas alguns de meus heróis. Estes feitos, aliás, ao lado de centenas de outros feitos de muitos outros heróis deste tipo, correspondem aos feitos de apenas alguns de meus heróis que conheci pelas histórias que ouvi, que li, a que assisti nos filmes e na televisão. De quantos outros heróis fabulosos compôs-se desde cedo minha mitologia!

Minha mãe não tinha muita paciência para contar só contos de fadas e repeti-los ad perpetuum. Quando eu era pequenino e pedia uma história, além dos contos de fada tradicionais, ela me contava histórias da Bíblia, da Mitologia Grega, da Odisséia ou das Mil e Uma Noites. Assim, os meus primeiros heróis foram figuras míticas da magnificência das maiores já criadas pela humanidade. Tiveram o peso de um David, de um Teseu, de uma Penélope, de um Ulisses, de um Sindbad, se bem que dos contos árabes, minha maior figura heróica era a da própria contadora de histórias, Sherazade.

III – Sherazade

A especialidade de Sherazade, a bem dizer, nunca foi contar histórias, o que, aliás, toda mulher sabe fazer. O que a distinguia era a maestria em manipular os finais dos contos, justamente o lugar onde se assenta a moral das histórias.

Que ela postergasse o final das histórias com o justo intento de salvar o próprio pescoço e o de todas as virgens do sultanato, a meu ver, é mero detalhe. O fato principal é que ela o fazia e com isso manipulava não apenas a história como o insaciável sultão que pouco a pouco permitiu-se abrandar os ânimos. Postergar, aliás, é apenas uma das formas de exercer esta manipulação e desde logo, ao leitor atento, fica claro que não foi o único artifício de que Sherazade se utilizou para domar seu amo. O conluio com a irmã, que mantinha no quarto para propiciar-lhe argumentos para a continuidade e a postergação das histórias, é o mais evidente dos outros artifícios de que ela lançava mão, mas talvez não seja de se desprezar também sua ligação com o grão-vizir de que era filha e a importância deste para o sultão que não haveria de desejar tê-lo por inimigo visceral, o que certamente sucederia caso matasse-lhe a filha – mas esta parte da história de Sherazade ainda não foi contada.

Não sendo As Mil e Uma Noites, afinal, nada mais de que um conto de fadas, quando o sultão, rendido à arte de Sherazade, deixa de querer matá-la, acabam os dois por casar-se para serem felizes para sempre. Nada consta sobre quais outras histórias teria desde então Sherazade lhe contado e com isto fica bem claro que seu justo intento sempre foi o de dominar o sultão pela manipulação ardilosa de suas emoções, sendo que sua alardeada vocação de contadora de histórias nada mais foi do que um meio secundário para realização de seu fim maior, aquele que é comum a todas as mulheres, o de exercer a dominação pelas mensagens que destilam na alcova.

Por certo Sherazade também há de ter contado histórias aos filhos, manipulando a continuidade e postergação dos finais, com o intuito de controlá-los, pois isto fazem todas as mães desde antes da época mítica em que Sherazade viveu e é desde esta época, aliás, que os homens aprenderam a gostar do suspense de interromper-se a história no clímax, adiando a continuidade para o dia seguinte, o que sempre a literatura de folhetim explorou e atualmente exploram as telenovelas.

Minha mãe, à la Sherazade, controlava-me de menino, pela manipulação da continuidade e postergação da seqüência de histórias.

– Mais uma, mãe…

– Agora dorme que amanhã a mamãe conta outra história.

E havia umas certas histórias cujos finais ela manipulava para fazê-los a meu gosto.

Lembro-me, por exemplo, da história da menininha que tendo desobedecido a mãe e adentrado a floresta, deparou-se com a casa dos ursos, justo no instante em que, posta à mesa de jantar uma suculenta sopa, o pai-urso, a mãe-urso e o ursinho haviam saído para caminhar no bosque. A menina provou da sopa do pai-urso e não gostou, da sopa da mãe-urso e não gostou e, depois, ao provar a sopa do ursinho adorou e devorou o prato todo. Daí experimentou a cama do pai-urso e não gostou, da mãe-urso e não gostou e, depois, tendo experimentado a cama do ursinho, adorou e ali refestelou-se aboletando profundo sono. O resultado lógico desta história é que a ursaiada ao regressar à casa armou um puta esporro e a menininha viu-se em maus lençóis, apenas não tendo sido devorada porque não sói bem aos contos de fada matar assim os protagonistas ao final. Acontece que eu não gostava deste final da história e desatava a chorar, com dó da menininha. Então mamãe mudava o fim da história e a menininha ficava amiga do ursinho e o casal de ursos ficava amigo da mãe dela e todos os finais de semana havia convescote.

Com isto a moral da história sutil e radicalmente se alterava e a mensagem ancestral de que é perigoso adentrar florestas ao crepúsculo pervertia-se, passando a prometer recompensas aventurescas para os que infringissem os limites.

Este o risco de se manipularem os finais das histórias, justo o local onde reside a moral das histórias. Talvez se diga que quem sugeriu a manipulação do final foi eu mesmo, com meu choro. Por que minha mãe não abandonava esta história, pura e simplesmente? Porque eu não permitia. Eu gostava tanto desta menininha e queria ouvir sua história – só que chorava ao final. Então ela mudou o final.

Havia também, é claro, a questão da sopa. Por estes tempos minha mãe julgava imprescindível que eu tomasse sopa de aveia, que eu detestava. Então, para fazer-me interessado na aveia ela sutilmente introduziu na história o detalhe de que a sopa do ursinho – de que a menina tanto gostava -, era sopa de aveia. E eu passei a adorar sopa de aveia, que me era oferecida com o codinome de “sopa de urso”, e saboreava-a deliciado ouvindo o conto de fada com a moral trocada.

Alguns escritores produziram, já na versão original, histórias com a moral trocada. Kipling e seu Mowgli, e Edgard Rice Burroghs com Tarzan, talvez sejam exemplos disto, com diferenças fundamentais. A primeira diferença constata-se no fato de que as crianças bem sucedidas na floresta ali chegaram por acidente, não por transgressão, detalhe que por si só já conduz a outra moral. A segunda diferença é que Mowgli e Tarzan nunca foram histórias para crianças. As diversas aventuras de Tarzan constituíam-se em literatura juvenil e Kipling nunca concebeu Mowgli para crianças. O Livro da Jângal era literatura para adultos. Quem transformou a história de Mowgli em conto de fadas infantil foi Walt Disney. 

IV – Sindbad, o marítimo

Sindbad, O Marítimo, era um dos preferidos de Sherazade, e minha mãe, quando cansada dos contos de fada tradicionais, ao lançar mão d’As Mil e Uma Noites, contava-me, ela também, como Sherazade ao seu sultão, muitas histórias de Sindbad.

Entretanto, a única aventura de Sindbad de que me lembro, não me lembro contada por minha mãe, e sim contada por meu pai e há para isto, talvez, uma justa razão que indicarei no final deste capítulo.

Papai também era um contador de histórias, para mim, de eu menino. Papai não contava histórias para me controlar, mas para me divertir. Isto é prerrogativa dos homens. Os homens são grandes contadores de histórias, assim como são grandes mestres culinários. Só que não cozinham todos os dias, não trampam no arroz e feijão, e nem contam histórias todos os dias – história para almoçar, história para jantar, história para dormir. Isto é trampo para mulher – e é por esta obrigação cotidiana da narrativa que a mulher acaba sem se aperceber usando das histórias para controle. Homem não está sujeito a esta pressão. Só conta história quando lhe dá na veneta.

Meu pai gostava muito de contar a história do Velhinho da Montanha. Era o nome que ele dava para uma das aventuras de Sindbad, O Marítimo. Após tenebroso naufrágio, Sindbad, como único sobrevivente, chegou a uma ilha paradisíaca, aparentemente deserta, onde de tudo havia em generosa oferta de uma natureza maravilhosa. Ali recuperou-se de seus ferimentos, à beira de uma praia, local em que encontrou farto alimento, água fresca e bom abrigo. Passados alguns dias, pôs-se a explorar a ilha, partindo para seu interior, cruzando morros, vales e rios até um dia encontrar o Velhinho da Montanha.

Não sei por que o velho se chamava Velhinho da Montanha visto que Sindbad o encontrou à margem de um rio, no fundo de um vale. Sentado numa pedra à beira d’água, quando Sindbad se aproximou o velhinho rogou a ele que o conduzisse a atravessar a correnteza, pois isto era tudo o que ele mais queria na vida – e não conseguiria sozinho. Não lembro detalhes mas sei que Sindbad acabou por carregar o velho no ombro na travessia do rio.

O verdadeiro drama começa quando, ao chegar na margem oposta, são e salvo em terra firme, o Velhinho da Montanha se revela um mau sujeito e trançando os pés por trás das costas de Sindbad, ao mesmo tempo em que lhe senta o cajado na cabeça, o transforma em seu escravo e montaria, decidido a nunca mais libertá-lo.

De escravo foi mesmo a vida de Sindbad, noite e dia aprisionado com o velho parasita em seu pescoço, sem condições de se safar posto que o velho, a qualquer tentativa de seu escravo para desvencilhar-se, apertava-lhe com as pernas a garganta a sufocá-lo, massacrando-o com pancadas de seu cajado. A redenção, mais uma vez, surgiu pela astúcia de Sindbad, um dia, quando chegaram em sua andança a um morro onde havia uma grande parreira recoberta de enormes cachos de uvas deliciosamente maduras e doces. Sindbad fez com que o velho tanto se deliciasse com as uvas que ele acabou por embriagar-se. Ao se embriagar, dormiu afrouxando as pernas e então, liberto, Sindbad, tomando-lhe o cajado, rachou-lhe a cabeça ao meio.

Talvez eu me lembre desta história que Sherazade contava, não contada por ela, mas por meu pai, porque ela pode simbolizar muito apropriadamente o fato de que foi também pelo entorpecimento que acabei matando dentro de mim a possibilidade de ser o herói que o pai gostaria que eu fosse. 

V – O velhinho da montanha

Da mesma forma que todas as mães são Sherazades, os pais também são. E, pai e mãe, os dois juntos, são Velhinhos da Montanha.

Tenho plena consciência que também para meus filhos eu sou a um tempo Sherazade e Velhinho da Montanha. Na ilha paradisíaca de minha infância e juventude, todas as histórias de heróis me comoviam, lançando pernas de expectativas extraordinárias de sucesso que se preparavam para sufocar-me o pescoço tão logo eu atravessasse o rio.

Sucesso, na cultura em que me criei, é sinônimo de fama, glória, poder ou fortuna. De preferência os quatro juntos. E é assim desde a Gata Borralheira, e muito antes, porque quando no final do conto de fadas se diz “e foram felizes para sempre…” isto vem depois de se ter tido a glória de derrotar o mal, a fama de ser reconhecido em todo o reino como o legítimo representante do bem, a fortuna de ser senhor de um castelo e seu tesouro, e o poder de, além de fazer o bem superar o mal e governar o reino e todo seu povo, fazer a cabeça de milhões de pessoinhas ao longo dos séculos.

Se ao menos as famílias reais dos contos de fada e os heróis mitológicos de todos os tipos tivessem uns três ou quatro tablóides ingleses e alguns paparazzi no encalço deles… talvez tivesse sido mais fácil para mim deixar o Velhinho da Montanha de porre.

Pois é assim que eu vejo a história hoje.

Sindbad sou eu. O Velhinho da Montanha é o que o pai queria que eu fosse.

O pai é meu pai. Mas não é só ele. Os Velhinhos da Montanha são muitos.

O pai é também a mãe, os irmãos, a família, os amigos, o colégio, os professores, a namorada, a esposa, a faculdade, os ídolos, os artistas, os governantes, a lei, a ordem, a moral, a ética, a igreja, a pátria… ah! a pátria é mãe… O pai é o herói. O pai são os heróis. O pai é a puta que pariu, todo mundo é pai. O pai é a sociedade. O pai é a cultura. Pobre de quem não se liberta dela.

Sindbad sou eu.

O Velhinho da Montanha é o que queriam que eu fosse.

O Velhinho da Montanha era eu mesmo porque eu desejei muito corresponder a todas as expectativas. Eu também, mais do que ninguém, quis ser aquilo que queriam que eu fosse.

Ah, como eu quis ser forte, rico e famoso naquela ilha de minha juventude. E eu pensei que fui, em minha inconsciência, durante o breve tempo de atravessar o rio, até me comprometer sem possibilidade de volta com o papel que parecia ser aquele a mim destinado.

Mas não: carreira de empresário, casamento e filhos, acrescida da responsabilidade de fazer fortuna para resgatar uma anterior fartura mitológica da família, ambições políticas de disputa de poder e exercício de liderança… Essa parte de mim não era eu Sindbad, era eu Velhinho da Montanha.

Eu Sindbad, herói autêntico de mim mesmo, singrador de mares desconhecidos, precisei me libertar daquele velho caquético que apertava meu pescoço com as pernas, lanhando-me o corpo a cajadadas, condenando-me à mesmice das aventuras empresariais que nada mais são do que atividades burocráticas de escritório.

A saída foi igual à mitológica e eu Velhinho da Montanha acabei entorpecido, embriagado e enlouquecido. Meu Sindbad demorou anos para livrar-se de meu Velhinho e, não havendo parreiras fantasiosas no caminho, os instrumentos de destruição e liberdade que o destino me impôs foram o alcoolismo, a drogadição e a psicose. 

VI – O psicossocial 

Se o alcoolismo e a drogadição, assim como as psicoses, são de fato doenças biopsicossociais, o determinante psicossocial de minhas doenças acabou de ser exposto nos capítulos anteriores. Foi porque eu precisava matar dentro de mim mesmo um superego insuportável que exigia mais do que eu tinha para dar e pretendia que eu seguisse um caminho que não era o meu que me embebedei e me droguei até o ponto de não poder mais.

Se eu soubesse separar minhas autênticas vocações e desejos daqueles que eu abracei indevidamente, não precisaria ter me destruído. Se eu tivesse mais defesas e não fosse tão influenciável, sempre absorvendo opiniões, expectativas e ambições alheias, meu ego não teria sido tão invadido e não teria sido preciso eu ficar louco e perder minha identidade.

Eu desenvolvi uma psicose para libertar-me de um destino que não era o meu e de uma identidade que não era a minha.

É uma estratégia que, vista a posteriori, parece interessante: quando não se consegue libertar-se de um superego asfixiante, o jeito é destruir o ego! Creio que um caminho tão radical não se pode recomendar a ninguém, visto que a dor da travessia é dilacerante e a probabilidade de se chegar a bom termo é mínima. Alguns, entretanto, atravessam e parece-me, ao menos só por hoje, que eu fui um desses.

O álcool, a droga e a psicose representaram, então, a morte de um eu socialmente construído que não cabia dentro de mim. Agora renascendo, devagarzinho me reconstruindo, preciso de um enorme cuidado para não pretender de novo ser o que não sou, porque isto eu já fui.

E não há de ter graça gozar o privilégio de viver duas vidas em uma só existência para repetir o enredo… Até porque o primeiro enredo não foi nada engraçado, embora muito emocionante, sem dúvida.


Publicado originalmente na Revista Mirandum VII – Estudos e Seminários – Ano III Nº 7 – Jan-Jun 1999. Editora Mandruvá em co-edição do Departament de Ciències de l’Antiguitat i de l’Edat Mitjana da Universitat Autònoma de Barcelona e Departamento de Filosofia e Ciências da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
Disponível em: http://www.hottopos.com/mirand7/n_matei_jesus.htm


Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.

Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.                                        

E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br 


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