Não há futuro na colonialidade

11/04/2016

Por Fernanda Frizzo Bragato - 11/04/2016

Não há projeto viável de bom governo no paradigma da colonialidade, já nos advertia Felipe Guaman Poma de Ayala[1] nos primórdios da colonização hispânica da América. Mas o que vem a ser colonialidade? Colonialidade[2] é a face obscura e constitutiva da modernidade. Aquela que permanece escondida para não macular a face iluminada à qual está ligada a ideia de um suposto progresso moral e político da humanidade ocidental. A modernidade ocidental construiu-se sobre o pressuposto filosófico do individualismo: os indivíduos são unidades morais superiores constituídas de razão, vontade e consequente liberdade, que significa independência dos demais; segundo essa concepção, tudo o que o rodeia é passível de apropriação e a natureza é um bem que “pertence à humanidade”. O individualismo pavimentou o caminho para a consolidação de um modelo econômico cuja lógica – a acumulação – depende do cultivo da virtude do bom competidor que se revela na capacidade de eliminar mais habilmente seus adversários na corrida pelo ouro, que é escasso. O comunismo – como alternativa ao capitalismo – por sua vez, reduziu os indivíduos a duas categorias homogêneas: o burguês e o proletário. Além disso, manteve a mesma lógica acumulacionista, neste caso pelo Estado, e apesar de propor a extinção da propriedade privada, não abriu mão da relação depredatória com a natureza e da competição a nível global.

A colonialidade é a característica marcante das relações de poder que se impuseram a partir da modernidade. Embora o liberal-individualismo parta de uma abstrata igualdade entre todos os indivíduos, a concepção de liberdade que o define é intrinsecamente ligada à de propriedade/apropriação. Mas não há espaço para que todos prosperem, nem a menor possibilidade que o mundo circundante suporte o modelo de acumulação que orienta a existência humana. Efetivas estruturas de poder colonial foram sendo construídas na modernidade para expurgar o máximo de gente possível da categoria de indivíduo humano. Durante toda a modernidade (e até fins da década de 70), praticamente todas as populações e todos os espaços fora da Europa foram suas colônias. Porém, a colonialidade não cessou com o fim do colonialismo: os discursos coloniais que representaram o outro como um degenerado, um ser inferior, continuam funcionando a pleno vapor para manter grande parte da humanidade excluída de sua real capacidade de ser livre. Muitos são simplesmente descartáveis (o(a)s indígenas, o(a)s refugiados); outros são úteis para a exploração do trabalho (o(a)s negros e os asiático(a)s pobres em seus próprios países).

O cenário latino-americano pós-independências político-jurídicas (século XIX) revela um processo sistemático de importação de institutos do direito moderno europeu comprometidos com a garantia de direitos que, em nosso imaginário, são indiscutivelmente associados a valores positivos e desejáveis: igualdade, liberdade, propriedade privada e segurança[3]. Transplantados ao nosso contexto, o trato igual da lei foi aplicado a um cenário de profundas assimetrias econômicas e diferenças culturais gerando o contexto mais desigual do mundo moderno e contemporâneo. A liberdade, na mesma versão liberal-individualista, advém da propriedade sobre si mesmo e sobre suas capacidades e resulta na independência das vontades alheias. Permite que se faça sobre si e sobre seu trabalho o que determinar a própria escolha; o problema é que nem sempre  há escolha. A proteção da propriedade privada, como corolário da liberdade, foi o objetivo mais caro do direito latino-americano, levando à extinção das propriedades comunais e à concentração de terras e bens primários nas mãos de pequena parte da população. A segurança, por fim, é o direito de todo cidadão de contar com a proteção de sua "liberdade" por parte do Estado. A verdadeira liberdade resumiu-se, enfim, à liberdade econômica: aquela que possibilita praticar atos de comércio com a mínima restrição estatal, e, em alguns casos, com o máximo fomento estatal! As demais – chamadas liberdades democráticas (religiosa, expressão, reunião, ir e vir etc) – ficaram sempre em segundo plano, sem que a primeira restasse prejudicada para os poucos que tiveram e têm reais condições de exercê-la. Que o digam as ditaduras latino-americanas e os fascismos europeus.

Na conjuntura jurídico-política latino-americana, nunca nos libertamos do jugo da colonialidade, o que impediu a plena e plural efetivação de direitos. No século XX, alternaram-se, até os anos 90, regimes políticos autoritários (ditaduras de segurança nacional) e populistas que operaram sob o mesmo paradigma. Ambos mantiveram intocados os direitos de liberdade, igualdade, propriedade e segurança da elite latino-americana, permitindo a concentração de renda em um modelo de pseudocapitalismo financiado pelo Estado. O primeiro com extenso sacrifício das liberdades democráticas; o segundo com algumas concessões econômicas às camadas populares altamente insatisfeitas (políticas “igualitárias”). Nos anos 90, novo ciclo assola a América Latina, com a superveniência dos chamados regimes neoliberais no contexto da globalização: em nome de uma suposta liberdade econômica, os Estados promovem maciço aniquilamento das estruturas do rudimentar Estado de Bem-estar, com privatizações e baixo investimento em serviços essenciais. Até que no início dos anos 2000, após profunda contestação popular, assiste-se ao surgimento de governos populares parcialmente repaginados que retomam políticas de bem-estar, promovendo um curto ciclo de prosperidade e de ascensão social das classes desfavorecidas, sem alterar estruturalmente a realidade da injustiça social. Não obstante, estes governos começam agora a sofrer novo processo de desmonte por meio de diferentes estratégias levadas a cabo pelas forças dominantes: golpes escancarados, mascarados ou mesmo processos democráticos (que escondem quão fácil é determinar a forma como as pessoas votam). As características específicas do novo ciclo que vem pela frente, só mais adiante saberemos qual é.

Mas o que pretendo dizer é que não há não nada novo no front brasileiro, latino-americano e global. A modernidade triunfou. Suas promessas estão todas cumpridas. Se a natureza é propriedade do homem, ser mais elevado na escala moral dos seres animados e inanimados, e se os bens existem para serem acumulados, possuídos, usados e explorados, nada mais coerente que o aumento da depredação ambiental. Se para acumular é preciso competir, dada a escassez cada vez maior dos bens, nada mais esperado que a desigualdade social e o aumento da pobreza, especialmente quando a retórica do Estado mínimo, que fomenta a “liberdade” individual, se impõe. Se a racionalidade caracteriza-nos como seres humanos e, dentre estes, muitos não servem para pensar, competir e fazer uso instrumental-produtivo de sua razão, seu marco cultural é inútil para esse mundo: subordine-o, confine-o em espaços reservados aos indesejáveis ou, simplesmente, extermine-o. Se cada vez mais pessoas são deprimidas pelo passado, estressadas pelo presente e ansiosas pelo futuro, bem-vindos ao deserto do real. O real da colonial-modernidade, em que todos, favorecidos e desfavorecidos, saímos perdendo.


Notas e Referências:

[1] POMMA DE AYALA, Felipe Guaman. The first new chronicle and good government. Translated by David Frye. Indianápolis/Cambridge: Hackett Publishing Company, 2006.

[2] QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Colección Sur Sur, CLACSO, setembro 2005. pp.227-278.

[3] DE LA TORRE RANGEL, Jesús Antonio. El derecho como arma de liberación en América Latina: sociología jurídica y uso alternativo del derecho. 3 ed. San Luis Potosí: Comisión Estatal de Derechos Humanos; Universidad Autónoma de San Luis Potosí; Aguascalientes: Centro de Estudios Jurídicos y Sociales Padre Enrique Gutiérrez, 2007


Fernanda Fizzo Bragato. Fernanda Fizzo Bragato é graduada em Direito pela UFRGS, Mestre e Doutora em Direito pela UNISINOS e Pós-doutora no Birkbeck College da Universidade de Londres. Atualmente, é professora do Programa de Pós-graduação em Direito e coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos (NDH), ambos da Unisinos. E-mail: fernandabragato@yahoo.com.br


Imagem Ilustrativa do Post: University of Illinois Alma Mater // Foto de: Kevin Dooley // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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