Dias atrás, circulou pela internet um trecho descontextualizado da obra “Direito e Razão”, de Luigi Ferrajoli, onde um comentarista assim se manifestava: “Até o hipergarantista Ferrajoli defende conduções coercitivas, no lugar de prisão cautelar, para interrogar acusado de crimes graves e complexos e evitar “falsas defesas””.
Como já se tornaram hábito as interpretações errôneas feitas sobre obra de Ferrajoli, o texto em questão (feito dentro das limitações de caracteres do Twitter) também cai no crasso erro de se pegar um trecho descontextualizado de uma vasta obra, fundada na proteção do indivíduo em carne e osso contra os arbítrios do poder, e tecer trôpegos comentários sobre algo que apenas se acreditou compreender.
Os críticos, rasos, de plantão foram na onda da euforia que acomete muitas vezes o ambiente das redes sociais, compartilhando, desavisadamente, o conteúdo de uma análise totalmente superficial de parte da fala de Ferrajoli em sua teoria do garantismo jurídico. Aliás, mal sabem eles, por óbvio, que Ferrajoli é um liberal (no sentido mais clássico do termo) e assenta raízes no filosofia iluminista. Claro, para Ferrajoli, o projeto iluminista ainda não foi devidamente efetivado e seu papel, como filósofo do direito, foi possibilitar epistemologicamente a viabilidade de um verdadeiro Estado de Direto. Dito de outro modo, um Estado cuja função é proteger os direitos das pessoas que ali vivem.
Claro que o contexto da rede social, ambiente inflamado pela circunstância, certamente levou o criador da postagem a cometer o crasso equívoco de pensar que havia compreendido a complexa teoria garantista sem te-la de fato, acessado devidamente.
Quando da decisão do Ministro Gilmar Mendes acerca do “instituto” da condução coercitiva no processo penal brasileiro[1], aqueles que foram seduzidos pela postagem demonstraram que além de não compreenderem a teoria de Ferrajoli (talvez muitos sequer tenham lido sua obra), também não compreendem o “instituto” da condução coercitiva no cenário brasileiro, muito provavelmente habituados com o exacerbo ilegítimo em que a medida vem sendo estigmatizada.
Estranham-se, ainda, os repetitivos termos utilizados como pechas atribuídas diretamente a Ferrajoli, ou ao próprio garantismo jurídico, tais como: hipergarantista (sic.), hiperbólico molecular (sic.), etc – deturpações que também já foram aqui refutadas. Ora, o conceito de garantismo jurídico se origina dentro de todo um vasto e denso reflexo histórico, analisado minuciosamente pelo autor italiano, que o reconstrói juridicamente a fim de avalisa-lo, sob o prisma jurídico, como sinônimo de Estado Constitucional de Direito. Ignorar esta premissa é, de algum modo, desdenhá-la. Desdém este que lança ares de genialidade à postagem (sic.), mas que, verdadeiramente, volta-se contra o próprio autor, diante da equivocada interpretação acerca da proposta de Ferrajoli.
Na verdade, falar sobre garantismo jurídico, geralmente, é complicado: ou quem fala o faz sem conhecer devidamente, ou o ouvinte custa a compreender, ou contextualiza-se conceitos de forma imprecisa. A ingenuidade ou, até mesmo, a má-fé podem se fazer presentes naqueles que dizem e nos que ouvem. Daí a dificuldade de se articular sobre o assunto de uma maneira escorreita. Não que seja sempre assim, mas acontece. E muito. A situação ora exposta é um exemplo concreto disso.
Pode-se dizer que “atualmente, o termo garantismo representa, como a outra face do constitucionalismo contemporâneo, o fundamento da democracia constitucional e, assim, o modelo normativo jurídico que visa à efetivação dos direitos fundamentais”[2], ou seja, a proposta é bem distante daquela que muitos acreditam (para o menos e para o mais), sendo necessário, para a sua exata compreensão, uma imersão nos escritos do jurista italiano.
Tudo isso para apontarmos o notório equívoco da postagem mencionada que aduz ser Ferrajoli defensor da condução coercitiva (mais um de tantos outros apontamentos equivocados que já fizeram a Ferrajoli no Brasil). Para saná-lo, faz-se necessário proceder, pelo menos, a leitura do capítulo IX do seu “Direito e Razão”, onde o autor questiona se a custódia preventiva deveria ser vista enquanto uma “injustiça necessária”, ou se seria “apenas o produto de uma concepção inquisitória de processo que deseja ver o acusado em condição de inferioridade em relação à acusação”[3]. A base crítica do instituto, além de todo o aporte teórico que sustenta a proposta do jurista, merece e deve ser levada em conta a fim de que sua análise sobre a temática possa ser efetivamente compreendida. Somente assim para se evitar a incompreensão de se acreditar que haveria aí uma defesa da condução coercitiva tal como aquela procedida no Brasil, ignorando o contexto processual no qual está inserida. Ou seja, pode-se dizer que Ferrajoli defende uma espécie de condução coercitiva, mas dentro de um sistema em que sendo esse o único instituto, além da pena, que poderia reter alguém.
Conforme aqui já pode ser exposto, Ferrajoli defende um processo penal sem prisão processual, ou seja, um processo em que inexista qualquer tipo de prisão cautelar, uma vez que esse tipo de medida não estaria justificada dentro da perspectiva e finalidade do processo pelo viés garantista. É ao considerar esse cenário proposto, a saber, num processo no qual inexista a custódia cautelar, que na hipótese de se atestar a eventual necessidade de alguma medida processual preventiva sob o argumento de “perigo de deterioração das provas”, buscando evitar tal deterioração, Ferrajoli vai pontuar que a problemática poderia ser resolvida mediante uma espécie sui generis[4] de custódia cautelar e liminar do imputado, a qual se daria:
[...] pela simples condução coercitiva do imputado à presença do juiz e por sua detenção durante o tempo estritamente necessário – por horas ou no máximo dias, mas não por anos – para interroga-lo em uma audiência preliminar ou em um incidente probatório e talvez para realizar as primeiras averiguações sobre suas justificativas.[5]
Assim, perceba-se que a “defesa” que Ferrajoli supostamente faz da condução coercitiva nada tem a ver com a forma que esta foi propagada. O equívoco interpretativo é evidente, típico de quem extrai trechos isolados de um todo sem considerar o contexto no qual a parte está inserida.
Ferrajoli, sobre a custódia preventiva, diz que “dentro de uma concepção cognitiva e acusatória de processo ela não só não é necessária, mas prejudicial à averiguação da verdade por meio do livre contraditório”[6], uma vez que, enquanto detido, o imputado acaba prejudicado em providenciar as provas para a sua defesa. Em última síntese: custódia cautelar, no âmbito do garantismo jurídico, não está para as prisões cautelares, que no Brasil extrapolaram qualquer limite do razoável; condução coercitiva, outro instituto do direito brasileiro, extremamente mal utilizado, pode-se dizer que é aquilo que Ferrajoli chama de, se devidamente utilizado, de custódia cautelar.
Diante disso, resta refutada a interpretação equivocada sobre a suposta defesa de Ferrajoli pela condução coercitiva. Contextualizando-se (e compreendendo de fato) a proposta do autor italiano, tem-se que sua teoria em nada corrobora para o uso exacerbado da medida tal como se costumou a fazer no Brasil.
[1] Liminar decidida na ADPF 444/DF e ADPF 395/DF
[2] COPETTI NETO, Alfredo. A Democracia Constitucional: sob o olhar do garantismo jurídico. 1ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 23
[3] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 4ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 512
[4] Ou seja, em nada parecida com a condução coercitiva brasileira – considerando aqui a forma com a qual é indevidamente efetivada na prática.
[5] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 4ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 513
[6] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 4ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 514
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