Não foi por falta de calcinha: a realidade sobre a violência sexual

13/08/2019

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenador Assis da Costa Oliveira

“Que tempos são estes em que temos que defender o óbvio?”

Bertolt Brecht

A sexualidade é um tema desafiador para a sociedade, que o trata como tabu. Por ter uma predominância do entendimento moralizante associado ao pecado religioso, esse não é um assunto com abertura para diálogos, apesar de importante para orientação e formação dos sujeitos, em sua dimensão social, psíquica, comportamental e, também, sexual. Esse fato se deve a toda uma influência do prisma sócio-histórico-cultural, que deixou suas marcas na sociedade contemporânea, com heranças principalmente da ascensão do Cristianismo. Para tanto, é somente no século XX que, Freud, médico neurologista e psiquiatra, em uma perspectiva mais cientificista, quebra este paradigma e passa a divulgar estudos e teorias nos quais a sexualidade perde o caráter moralista e se apresenta como propulsora na constituição do sujeito, estando presente nas fases de desenvolvimento do ser desde a infância (MAROLA; SANCHES; CARDOSO, 2011).

 As discussões sobre o tema ganharam outro rumo, mas é só em meados dos anos 1970, diante de transformações sociais provocada pelos movimentos feministas, através da chamada revolução sexual e difusão do anticoncepcional como método contraceptivo, que discussões sobre direitos sexuais e reprodutivos ganharam força nos países ocidentais. Diante deste cenário, as ações de saúde pública passaram a dar um outro direcionamento para o atendimento dessas demandas voltados “à desmistificação das práticas sexuais e reprodutiva, reforçando a importância de práticas que apresentavam uma aproximação do corpo e promoção à saúde” (MAROLA; SANCHES; CARDOSO, 2011, p. 96).

A nova apropriação do tema abarcou também os direitos infantojuvenis, exemplo disto, é o Ministério da Saúde, sem distinção etária, garante a vivência plena da sexualidade através das políticas dos direitos humanos (BRASIL, 2006). Além do mais, essa foi uma conquista também de Conferências Internacionais das quais o Brasil é signatário. Porém, Leite (2013) nos faz refletir que, na verdade, os direitos à sexualidade e à reprodução, no que concerne a esse público, é omitido, ou melhor, a sua efetivação é direcionada apenas aos debates que remetem aos fatores de riscos, como por exemplo a violência, a gravidez na adolescência (planejada ou não) e as Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). Outrossim, esses temas são abordados especialmente com o público de adolescentes de modo pautado na visão do sexo como algo perigoso, sem que ocorra o diálogo sobre aspectos subjetivos vinculados à autodescoberta e ao prazer, por exemplo.

Com relação às crianças, a repressão é ainda maior. Ainda que perceptível a sexualidade presente nessa fase do desenvolvimento, a qual se expressa na maioria das vezes através do lúdico, é retirado deste público o direito de compreender o que significa e representa a sexualidade, ou práticas sexuais, por ser um assunto ainda mistificado pelos adultos. A exemplo disso, Carvalho et al. (2012) cita em sua pesquisa situações em que crianças de cinco a seis anos de idade, em sala de aula, de forma discreta e em busca do distanciamento dos olhares dos adultos, brincam com bonecos e elencam temas sobre relações sexuais. Ao perceber a existência dos diálogos e das brincadeiras, a providência adotada pela instituição, professores e educadores, foi retirar os objetos que faziam parte do lúdico (a mesa sob a qual se escondiam, e os bonecos que faziam simulações) sem qualquer problematização. Além desse, outro exemplo muito típico da dificuldade de se falar sobre o assunto é quando as crianças, na fase de descobertas e aquisição da linguagem, passam a questionar sobre tudo o que lhes suscitam dúvidas, e uma pergunta que se apresenta comumente é: “como eu nasci?”. A história da cegonha é clássica para explicar como a criança foi concebida e é utilizada como forma de se sanar de maneira fácil a dificuldade dos adultos de conversarem sobre as relações que permeiam o desenvolvimento humano.

A partir desse cenário, percebe-se que até mesmo no âmbito educacional, no qual há instituições primordiais na formação das crianças e adolescentes, os entraves em trabalhar o tema da sexualidade existem. Leite (2013) observa que não está na agenda dos projetos educacionais e socioassistenciais ações voltadas às crianças e aos adolescentes com temas que trabalhem a sexualidade, a não ser em projetos que preconizam os fatores de riscos. Carvalho et al. (2012), por sua vez, faz uma reflexão pertinente ao colocar que não se pode enaltecer um direito de prevenção à violência sexual e tratar os demais como subalternos. Crianças e adolescentes precisam ser educados para viverem plenamente todos os seus direitos, inclusive o de desenvolver sua autonomia sexual. A isto se associa a capacidade de distinguir atitudes que não são saudáveis para si como relações pautadas pela violência, ter acesso a pessoas de confiança para dialogar sobre sua sexualidade e obter proteção, bem como poder construir relacionamentos saudáveis ao longo da vida.

A importância da discussão dos direitos sexuais e reprodutivos infantojuvenis é, assim, inegável. Neste artigo, discutimos sobre a violência sexual, pois, mesmo sendo um tema protagonista nas discussões sobre sexualidade, e com uma vasta área de trabalhos e intervenções, os índices de casos de violência sexual ainda são alarmantes. No Brasil, por exemplo, no ano de 2018 houve mais de 17.000 denúncias de crianças e adolescentes vítimas dessa violência, sendo 73,25% do sexo feminino[1]. O número expressivo de meninas vítimas da violência sexual corrobora os dados históricos preponderante da desigualdade e violência de gênero. A construção social de sociedades como a brasileira são referenciadas pela associação da mulher a objeto sexual, propriedade do pai e posteriormente, do marido ou companheiro. Diante disso, ocorre uma naturalização da violência contra a mulher, desde a infância e, quando se questiona, não é incomum que ela seja culpada e nominada como criança ou adolescente “sedutora”, “saliente”, dentre outros termos pejorativos.  

Apesar de controverso, pois em tese o ambiente familiar seria o espaço de garantia de proteção, 42,31% dos casos tinham como acusados algum ente familiar como autor da violência intrafamiliar – mãe, pai, avô, avó, madrasta, padrasto, primo, entre outros familiares -, de acordo com os dados apresentados no site do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), a partir das denúncias encaminhadas ao Disque 100[2]. Há que se ressaltar que esses dados são referentes apenas às denúncias que chegam a esse sistema, mas há outros casos que podem ter sido denunciados aos órgãos do Sistema de Garantia de Direitos, seja Delegacia, Conselho Tutelar, Ministério Público, entre outros, além dos que não são notificados, sejam pela família, seja pelos demais atores da rede.

No Brasil, foi em 1990 que houve uma maior expressão na construção de Políticas Públicas para essas demandas, a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Em seu art. 5º, o ECA postula, o que seria óbvio, “art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais” (BRASIL, 1990), mas mesmo estando expresso em lei, e passível de punição jurídica, não foi suficiente para coibir às violências que permeiam a infância e adolescência.

No que concerne ao combate à violência sexual, o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes, foi aprovado em 2000, por atores do sistema de justiça, legislativo e do poder executivo, além da sociedade civil. Ele é estruturado em seis eixos estratégicos que preconizam a Análise Situacional; Mobilização e Articulação; Defesa e Responsabilização; Atendimento; Prevenção; e Protagonismo Infantojuvenil. Contudo, apesar destes avanços, os entraves a respeito da prevenção e combate à violência sexual preponderam.

Um dos maiores desafios que hoje sobrelevam a respeito da violência sexual, se remete ao protagonismo infantojuvenil, pois tem se manifestado de forma inversa ao que preconiza o Plano Nacional. Ele foi concebido como forma de “promover a participação ativa de crianças e adolescentes pela defesa de seus direitos e na execução de políticas de proteção de seus direitos” (BRASIL, 2013, p. 9). Entretanto, o que se nota é que as crianças e adolescente são pouco escutados e convocados a participar da defesa de seus direitos, na verdade, eles são colocados na posição de sujeitos passivos de sua história. A lei 13.431/2017, por exemplo, institui dois procedimentos de escuta da criança e do adolescente vítima de violência, tanto no sistema de justiça como nos demais órgãos. Trata-se do Depoimento Especial, antes nominado de Depoimento Sem Dano, e da Escuta Especializada. A imposição desses dois dispositivos, entretanto, tem suscitado na rede de atendimento grandes debates e discussões, principalmente de não aceitação dos procedimentos. Os argumentos vão desde as atribuições dos profissionais até a proteção infantojuvenil, mas não houve qualquer envolvimento das crianças ou dos adolescentes para discussão desse sistema de garantia dos seus direitos como vítima ou testemunha de violência.

O que se nota é que as crianças e adolescentes continuam a ser responsabilizados pela violência da qual são vítimas. Parece contraditório, mas as vítimas, principalmente mulheres, dos casos de violência sexual, são culpabilizadas pelo crime que lhes é cometido, até mesmo por altas autoridades do governo federal. Segundo o MMFDH, a Ilha Marajó/PA tem os maiores índices de violência sexual[3], relações incestuosas e de exploração sexual infantojuvenil perpetrada pelos próprios pais que submetem suas filhas e filhos. Ao apresentar os dados, a ministra Damares Alves afirmou que este cenário era devido à falta de calcinhas para as meninas e que a solução estaria em instalar uma fábrica de calcinhas na região com o benefício extra de gerar empregos na região. 

Diante destas declarações, é importante refletir que as relações sexuais mantidas dos pais para com suas filhas ou filhos não devem ser naturalizadas como fator cultural, pois são violências nitidamente tipificadas como crime na legislação brasileira e precisam ser tratadas como tal. Sua ocorrência, por sua vez, não pode ser reduzida à justificativa de pobreza, nem sequer responsabilizar a falta do uso de calcinha pelas crianças. O respeito ao espaço e corpo do outro deve ser mantido inclusive enquanto dignidade da pessoa humana. O estilo de vestimenta, horário de circulação nas ruas, o fato de ser do sexo feminino também não podem ser motivos pelos quais responsabilizam o acontecimento dos crimes. A sociedade enraizada pelo poderio masculino (DANTAS; VASCONCELLOS, 2017) se apropria desses argumentos incabíveis para a ocorrência da violência sexual, principalmente quando contra meninas.

Diante desses apontamentos, ressalta-se que é preciso pensar em mecanismos para coibir a violência, e não na responsabilização dos comportamentos das vítimas. Mesmo com todos os progressos frente a esse assunto, um posicionamento desse, expressado pela ministra ao representar o governo de uma nação, aponta para um recrudescimento da defesa dos direitos políticos de crianças e adolescentes brasileiros. O contínuo crescimento da violência sexual no país, por outro lado, reforça a necessidade de não paralisar a luta para que as políticas públicas e a sociedade se empenhem em ações de prevenção, combate, apoio às vítimas e responsabilização dos agressores. 

O Estado, por sua vez, deve ter uma atuação macro ao garantir os direitos fundamentais que estão previstos na Constituição Federal e corroborados no ECA. Para a intervenção no tema é preciso a apropriação de todos os fenômenos que refletem na violência e sua respectiva propagação. O envolvimento dos atores da rede de proteção, as pesquisas e estudiosos qualificados no tema são de suma importância para elaboração desses mecanismos. Outrossim, a propagação de discursos com base no senso comum e desligados da complexidade da matéria por órgãos oficiais de proteção, alimenta o retrocesso para o enfretamento da violência e exploração sexual infantojuvenil.

 

Notas e Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal 1988.

______. Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13431.htm>. Acesso em 31 jul.  2019.

______. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília: Congresso Nacional.

______. Ministério da Saúde. Direitos sexuais, direitos reprodutivos e métodos anticoncepcionais. Brasília: Secretaria de Atenção à Saúde (Departamento de Ações Programáticas Estratégicas), 2006.

______. Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes. Governo Federal, Brasília, 2013. Disponível em: <https://www.mdh.gov.br/biblioteca/crianca-e-adolescente/plano-nacional-de-enfrentamento-da-violencia-sexual-contra-criancas-e-adolescentes.pdf/view>. Acesso em 31 jul.  2019.

CARVALHO, Cíntia de Sousa et al. Direitos sexuais de crianças e adolescentes: avanços e entraves. Psicol. clin, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 69-88, 2012.   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652012000100006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 31 jul.  2019.

DANTAS, F.B.C.; VASCONCELLOS, M. M. VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA A MULHER: culpabilização da vítima. Revista online FADIVALE, Governador Valadares, ano XIII, n. 14, 2017. Disponível em <http://www.fadivale.com.br/portal/revista-online/revistas/2017/Fernanda-Bethania-Cardoso-Dantas.pdf>. Acesso em 31 jul.  2019.

LEITE, V. J. Sexualidade adolescente como direito? A visão de formuladores de políticas públicas. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2013.

MAROLA, C. A. G.; SANCHES, C. S. M.; CARDOSO, L. M. Formação de conceitos em sexualidade na adolescência e suas influências. Psicol. educ., São Paulo, n. 33, p. 95-118, dez.  2011 .   Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci _arttext&pid=S1414-69752011000200006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 31 jul.  2019.

[1] Dados disponíveis neste site: https://www.mdh.gov.br/informacao-ao-cidadao/ouvidoria/balanco-disque-100

[2] É um sistema do Departamento de Ouvidoria do Nacional de Direitos Humanos, que funciona 24 horas por dia e permite a população em geral, inclusive de forma anônima, a ligar gratuitamente para denunciar qualquer violação de direitos humanos, a qual será avaliada e encaminhada para órgão competente.

[3] O discurso da Ministra proferido em Brasília-DF, foi publicado e está disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=jN9NrmoW1CM&t=255s

 

 

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