Na terra de Tobias

24/10/2015

Por Leonardo Isaac Yarochewsky - 24/10/2015

Quem procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar, se é que já não encontrou, o fundamento jurídico da guerra”.

Tobias Barreto

Tobias Barreto (1839-1889) nasceu na Vila de Campos do Rio Real, hoje Tobias Barreto, no estado de Sergipe, no dia 7 de junho de 1839. Filho de Pedro Barreto de Menezes e de Emerenciana Barreto de Menezes. Iniciou os estudos em sua cidade natal. Em 1861 mudou-se para a Bahia, ingressou no seminário, não se adaptou, passou só uma noite. Mudou-se para uma república de amigos em Salvador. Estudou filosofia e matérias preparatórias. Quando o dinheiro acabou, voltou para Vila de Campos. Durante alguns anos viveu lecionando latim na cidade de Itabaiana, Sergipe. Almejando lecionar na Faculdade de Direito do Recife, Tobias Barreto mudou-se para aquela capital reconhecida pelos estudos jurídicos, entre os alunos destacavam-se Rui Barbosa, Joaquim Nabuco e Castro Alves.

Depois de idas e vindas e alguns percalços em razão de sua origem humilde e da sua cor, Tobias Barreto voltou para o Recife, onde passou a lecionar na Faculdade de Direito. Hoje, a Faculdade é consagrada como "A Casa de Tobias". Tobias Barreto de Meneses morreu no Recife, Pernambuco, no dia 26 de junho de 1889.

Em Sergipe, estado natal de Tobias Barreto, como membro do CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária) acompanhado da Ouvidoria Geral do Sistema Prisional, realizei nos últimos 19 e 20 de outubro a inspeção em quatro unidades prisionais e um hospital de custódia. Sem entrar em minudencies que farão parte do relatório que será apresentado ao CNPCP, pude constatar, in loco, o que já é do conhecimento de todos: o sistema prisional está completamente falido. Trata-se de um sistema cruel, inumano, indigno e abjeto.

Como dissemos em nosso “Da Reincidência Criminal[1], “a privação de liberdade é a consequência mais visível da pena de prisão. Contudo, outros sofrimentos, algumas vezes obscuros, infligem ao preso um sofrimento até maior: a falta de privacidade; a privação de ar, de sol, de luz, de espaço em celas superlotadas; os castigos físicos (torturas); a falta de higiene; a violência e os atentados sexuais cometidos pelos próprios companheiros de infortúnio; a humilhação imposta inclusive aos familiares dos presos; o uso de drogas como meio de fuga, etc.”.

No Complexo Penitenciário Dr. Manoel Carvalho Neto, uma das unidades por nós inspecionada, com capacidade para 800 presos, havia 2.500 presos, ou seja, três vezes mais a capacidade máxima do presídio. Em celas onde deveriam estar no máximo 6 presos, havia 18 ou 20 presos. É bom deixar claro, para que não se cometa injustiças com a terra de Tobias, que esta situação do Sergipe é a realidade do país.

Neste particular, recomenda-se a leitura do valioso e incomparável parecer apresentado pelo jurista Juarez Tavares que subsidiou a ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, movida pelo PSOL, dia 27 de maio de 2015, perante o Supremo Tribunal Federal, pelo reconhecimento do “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário brasileiro. No rico e substancioso parecer de cinquenta páginas há relatos e dados impressionantes que revelam a constante violação dos direitos humanos, da Constituição da República e de normas e tratados de direito internacional.

Como bem disse Tobias Barreto, “os criminalistas que ainda julgam-se obrigados a fazer exposição dos diversos sistemas engendrados para explicar o direito de punir, o fundamento jurídico e o fim racional da pena, cometem um erro, quando na frente da série colocam a vindita. Porquanto a vindita não é um sistema; não é, como a defesa direta ou indireta, e as demais fórmulas explicativas ideadas pelas teorias absolutas, relativas e mistas, um modo de conceber e julgar, de acordo com esta ou aquela doutrina em abstrata, o instituto da pena; a vindita é a pena mesma, considerada na sua origem de fato, em sua gênesis histórica, desde os primeiros esboços de organização social, baseada na comunhão de sangue e na comunhão de país, que naturalmente se deram logo depois do primeiro albor da consciência humana, logo depois que o pitecantropo falou... et homo factus est”.

Presentemente não há como negar que a pena é uma clara manifestação do poder. Não sendo a pena racional, distingue-se das demais sanções jurídicas por exclusão. Como salienta Zaffaroni [2], “a falta de racionalidade da pena deriva de não ser um instrumento idôneo para a solução de conflitos. Logo, toda sanção jurídica ou imposição de dor a título de decisão de autoridade, que não se encaixe nos modelos abstratos de solução de conflitos dos outros ramos do direito, é uma pena”.

Aqui, não se pretendeu discutir ou rediscutir as teorias legitimadoras (manifestas) da pena, mas tão somente apontar os males que decorrem do encarceramento, sobretudo, do encarceramento torturante, desumano, ignóbil e, por tudo, violador dos direitos fundamentais.

No dia 21 (quarta-feira), deixando acolhedora cidade de Aracaju e o estado natal de Tobias Barreto, a caminho do aeroporto, um veículo a minha frente me chamou atenção. Não, não era um Porsche, um Masserati ou uma Ferrari, era um carro de escolta de presos de uma das unidades que visitei.  Complexo Penitenciário Dr. Antônio Jacinto Filho, unidade que adotou o modelo de cogestão (parceria público e privada) com a empresa denominada REVIVER (nome bizarro para uma empresa que lucra com o sistema penal). Mas, o que me chamou a atenção, na espécie de camburão, foi os dizeres gravados no veículo: “Reviver é possível”. Será?

Belo Horizonte, primavera de 2015.


Notas e Referências:

[1] YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. Da reincidência criminal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2005.

[2] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991.


Sem título-1 .

Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).

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Imagem Ilustrativa do Post: Transmundo // Foto de: jeronimo sanz // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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