Na boca do lixo

16/12/2020

Estava em São Paulo. Tenho pessoas queridas lá. Caminhava. Vi de longe a moça revirando o lixo. Dei lentidão aos passos e me ofereci à vista de um ângulo em que seus olhos topariam comigo. Esbocei um sorriso que ela não recusou, embora haja buscado o seu destino ao redor. Supus que ela supôs improvável alguém dirigir-se a ela. Quando alcancei seu lado, fez-se curiosa. Perguntei: “Trabalhando?” Pôs cabisbaixa, com vagar demorado, sua cabeça bonita e muito suja. Ela não falou. Também não falei.

Questionei-me, ou censurei-me, não sei: eu estaria falando com ela ou “experimentando” falar com ela? Compartilho essa dúvida que me veio e já me vem outra: eu estava elegendo-a interlocutora, ou estava sendo “legal” comigo mesmo, “curtindo” uma pessoa miserável em pleno exercício da sua miserabilidade? Enquanto escrevo, outra questão ainda: ao publicar eu não estaria, em linguagem bíblica, tocando trombetas para anunciar meu ato “piedoso”? Em resumo: ela era sujeito? Ela era objeto?

Objeto da minha curiosidade? Pensava nisso e me veio o que me narrara amigo meu: uma mulher, um andrajo, enquanto esmolava posta na calçada, segurava duas crianças. Elas pendiam dos braços que lhes enlaçavam a cintura. Talvez dormissem, mas meu amigo não ficou seguro de que viviam. A mulher clamava desde o chão. Desespero. Ninguém quer ver isso. A mulher ao chão não era sujeito; era objeto da desconsideração geral. É claro que sei que se me veio o assunto é porque o assunto me inclui.

A “minha” moça, de repente, tomou posição. Empertigou-se, dignificou-se, cancelou o silêncio: “Não estou catando porcaria; as pessoas jogam muita coisa boa fora. Se eu quisesse eu ganhava um bom dinheiro em outro lugar. Tiro três salários com o que recolho aqui”. Respondi: “Que bom que seja assim. E deve haver muitas surpresas, não? Coisas interessantes...”. “Tem”, disse ela, “e tem bastante comida. Sabendo escolher, não faz mal. Não preciso comer do lixo, mas como estou aqui, aproveito”.

Talvez eu devesse ter ficado por aí, mas quis prosseguir. Permiti-me a minha vontade de conversar. Perguntei-lhe sobre as telas postas sobre os cestos que recebem o que vem dos edifícios: “Essas grades trancadas a cadeado... Isso ocorre porque o lixo é espalhado quando as pessoas mexem?”. A resposta foi a de quem conhece suas circunstâncias: “Não, a gente não bagunça nada. É que se estavam amontoando muitas pessoas... Agora ficaram poucos lugares para catar, mas ficou mais seguro”.

Refleti: “Ela percebe a coisa, mas se abstrai da situação: afirma desnecessidade de estar ali, declara haver mais segurança quando há menos pares seus nas proximidades. Seria desconforto com minha intromissão? Seria algum tipo de preconceito de classe?”. Pareceu-me que fui alcançado no que pensava, pois ela emendou: “Olha, um pouco de nós cabe, o pessoal deixa, o pessoal sabe quem somos e não escorraça, mas, se amontoa gente demais, aí, mistura, aí fica pobre demais num lugar só”.

Agradeci o acolhimento gentil. Então, despeço-me, não sem antes oferecer-lhe um café quente com bolo gelado, segundo o gosto que ela queria ver atendido: “É que no lixo a temperatura é sempre igual”, explicou. Ah!, e perguntou-me se eu era professor de alguma universidade. Indaguei o porquê da sua intuição. “É que às vezes vem aluno entrevistar catador, mas é a primeira vez que vem professor”. É, eu, que fazia contas do meu papel na conversa, não imaginava que ela fazia contas de mim.

A mulher “do” meu amigo, com os filhos que carrega por instinto, vivos, mortos, ou por logo morrer, nada sabe. A “minha” mulher sabe que lhe sobrou o lixo. Angustia-se em extrair dignidade dessa condição. Ambas são tão só contingência, sem liberdade de existência. Restaram onde estão. Não podem sair dali: uma, por nem saber que existe; a outra, por não ter liberdade para pensar seu existir. Eu, o outro das duas, não sei o que é pior, mas sei que uma sente dor. Ela me o disse com seu triste olhar.

 

Imagem Ilustrativa do Post: four assorted-color trash // Foto de: Paweł Czerwiński  // Sem alterações

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