O poema de Camões, e depois a canção de José Mário Branco recordam-nos que “todo o mundo é composto de mudança”. É verdade. E “tomando sempre novas qualidades”. Mas por vezes exagera-se.
A velocidade e inesperado com que mudam, por exemplo, os sentidos de trânsito, a propriedade e até a existência de estabelecimentos comerciais, as titularidades de chefias e cargos intermédios, entre muitas outras coisas, é um problema para a estabilidade mental e emocional das pessoas normais. E mesmo há necessariamente consequências para o estilo do circular, do comerciar, do atender e do exercer poderes, nem sempre pequenos... Ontem disseram-me que Fulano não é mais gerente, anteontem que Beltrano deixou de ser dono, hoje que o responsável mudou, e a rua por que queria seguir passou a sentido proibido. Não é o mundo que muda assim de feição?
Não me tenho por conservador, mas a questão é inevitável: pode-se confiar assim na segurança das instituições? Porque instituições são todas essas coisas instituídas, e não apenas os órgãos ou certos entes do Estado...
A ordem de Justiça contribui para dar sentido ao Mundo. Um dos primeiros adquiridos nesse sentido foi uma nota na Introdução jurídica de Karl Engish. O direito, citava ele, dá sentido ao mundo.
No fundo, dependemos de narrativas em que os bons triunfam, são honrados, recompensados, e os maus punidos. Se formos inteligentes e não aceitarmos narrativas infantilizadoras (e tantas correm por aí como sereias tentadoras) percebemos que os bons nem sempre são quem parecem ser, o mesmo ocorrendo com os maus. E percebemos também que há matizes intermédios, e que mais que o agente devemos condenar a sua ação criminosa, por exemplo.
Mas o problema é que a mudança dos lugares, das funções, dos protagonistas, nos estraga os dados mais elementares constituintes das narrativas. A peça da vida social, da vida coletiva, necessita de um cenário minimamente estável (como saber em que lei se vive), e quando se diz que certas pessoas “já fazem parte da mobília” se entende que há também personagens, em certos papéis, que contribuem para esse cenário. Ao andarmos sempre a mudar tudo periga a reiteração de funções da intriga, periga cada um saber o seu lugar na trama.
De forma alguma se defende o quietismo, a imobilidade. Há muitas coisas que devem mudar, mas a mudança sistemática de coisas que tínhamos "arrumadas" perturba. Será que nos estaremos a adaptar a esse cirandar permanente? Sim, em certa medida. Mas mal. E com maus resultados. Já admitimos em excesso, por exemplo, a falta a compromissos, a falta a encontros, a falta à palavra dada. É uma erosão no princípio pacta sunt servanda, que teve grandes heróis como o romano Regulus ou o português Martim de Freitas.
No mundo das novidades mirabolantes do politicamente correto, esta alteração frenética de tudo (mesmo de normas: e isso é mais grave ainda) é adjuvante de projetos de mudança mais ou menos fantásticos e fantasiosos, que não têm como base estudos de impacto social, e que parecem ser uma espécie de prova de vida e de criatividade de quem os apresenta. E tudo isso à falta das reformas necessárias para coisas elementares.
Não se enfrenta de frente a falta de liberdade, a falta de dignidade, a falta de solidariedade, e a miséria e desigualdade crescentes. Propõem-se por vezes luxos e medidas decorativas. Do género Maria Antonieta: “Brioches para todos” – quer o politicamente correto, muito chique. Ora, onde se viu pedir pão, que coisa démodée!... E o que falta, nas nossas sociedades, é sobretudo Pão, Justiça e Janelas para abrir a mente e o espírito.
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