Coordenador: Gilberto Bruschi
O dever de motivação das decisões judiciais, utilizado de forma ampla, ao menos nos países de cultura civil law, é medida essencial em razão da relevante valorização da jurisprudência nos dias atuais, o que induz cada vez mais a participação do juiz na solução dos conflitos.
Com efeito, não se pode confundir a atuação dos juízes como sendo a de um legislador, mesmo havendo uma gama de escritores manifestando-se favoravelmente a tal hipótese, uma vez que é concebível definir que ambos são criadores do direito (law-makers); contudo, cada um em sua área de atuação, cumprindo a função que lhe fora constitucionalmente atribuída.[1]
Ocorre que, devido à necessidade de maior atuação do Estado em áreas estrategicamente relevantes, a exemplo do bem-estar social, ocorreram por necessidade algumas modificações na área de desempenho do Poder Legislativo, o qual se viu compelido a nortear sua atuação com mais ênfase às políticas públicas. Isso acabou por influenciar o crescimento de normas jurídicas e, consequentemente, a existência de muitas destas normas com conceitos vagos e indeterminados que dependem de uma correta interpretação.[2]
Essas circunstâncias acabaram por permitir que o Poder Judiciário, em 1ª e 2ª instância tornasse, em muitas situações, o intérprete da norma jurídica, e não apenas o aplicador dela. Diante desses casos onde o magistrado vê nas mãos a responsabilização por interpretar a norma, o que pode ser feito apenas mediante o processo, tendo em vista o princípio da inércia de jurisdição, aumenta ainda mais o dever/compromisso de motivação das suas decisões.
Neste jaez, visando dar concretude ao direito com a busca efetiva da prestação da tutela jurisdicional é que o legislador pátrio cuidou em dar os contornos necessários para evitar a elaboração de uma decisão com fundamentação deficitária.
Foi amparado nesta tendência, dentre tantas outras, como a necessidade de autolimitação do poder do Estado[3], que o artigo 489, § 1º,[4] do Código de Processo Civil foi criado, na visão de muitos como a revolução necessária para a solução de diversas das mazelas encontradas no sistema Judiciário.
Entretanto, é importante estabelecer a premissa de que o novo texto legislativo não cria para o julgador um ônus argumentativo antes inexistente. O que efetivamente se consubstancia é a demonstração de que a este cabe o dever de motivar todas as suas decisões[5].
Nunca antes houve preocupação por parte dos tribunais brasileiros acerca de uma correta fundamentação, tanto que não se mostra difícil encontrar em qualquer grau de jurisdição, decisões onde a ausência de motivação é assente, tolerando-se omissões acerca de questões essenciais do litígio[6].
Neste compasso, verifica-se que o legislador se preocupou em delimitar, de certo modo, a atuação do juiz quando da prolação de suas decisões, uma vez que o referido dispositivo é taxativo ao mencionar como não será considerada fundamentada a decisão, não expressando, precisamente, o que seria uma decisão devidamente motivada. O que faz é apenas apontar requisitos mínimos para a decisão não ser passível de nulidade.
Vale lembrar que a obrigação relativa à motivação das decisões judiciais decorre, precipuamente, de preceito constitucional. Não por menos, mesmo ciente da obrigação estabelecida na Carta Repúblicana, o legislador reformista cuidou de estabelecer no Novo Código de Processo Civil, no capítulo chamado de “Normas Fundamentais do Processo Civil”, mais precisamente em seu artigo 11, a mesma redação contida no texto constitucional[7], o que reforça, desde o início, o dever de motivação das decisões.
Tem-se que aí há a exigência de uma regra delimitando a necessidade de fundamentação para a boa manutenção e aprimoramento da mencionada garantia ao criar uma exigência imperativa que determina, tanto ao Legislativo quanto ao Judiciário, zelarem por manter a cobrança de motivação no tocante às decisões judiciais em seu mais alto requinte[8].
O objetivo do código ao delimitar a atuação do julgador na questão relativa à fundamentação não significa dizer que sua atuação estará pautada no afastamento de todos os pontos levantados pelas partes no decorrer do processo. O intuito é fazer com que o magistrado analise todos os seus fundamentos, ou melhor, todas as proposições capazes de infirmar, em tese, seu convencimento e, assim, ser possível a prolação de uma decisão que pode ser tanto de procedência quanto de improcedência, ambas devidamente motivadas[9].
Por assim dizer, o dever de fundamentação analítica não cria um jogo de perguntas e respostas, onde o juiz deverá responder tudo o que for levantado pelas partes.
A ideia central do dispositivo é fortalecer princípios indispensáveis ao Devido Processo Legal decorrentes de uma ordem constitucional, consectários do Estado Democrático de Direito, e, em decorrência disso, a busca por uma eficácia extraprocessual própria do Poder Judiciário.
Obviamente que o julgador, preenchendo os requisitos elencados no §1º do artigo 489, estará tacitamente afastando os fatos sem relevância ou carentes de argumentos que as partes levaram ao seu conhecimento, e que de forma alguma influenciam para o desfecho da lide.
No mais, a criação de um dever de motivação indutiva não gera uma obrigação tão somente para o órgão julgador. Competirá também às partes o incremento argumentativo, o que não consiste, necessariamente, em longas petições.
O objetivo é levar ao conhecimento de quem julga, argumentos coerentes e que possibilitem uma concreta análise da situação.
Assim, a Lei, visando determinar um dever de fundamentação mais acentuado, excluiu a possibilidade de motivação genérica, como a hipótese de limitar-se a paráfrases de dispositivos legais (art. 489, §1º, incisos I e III), além de não ser considerada motivada decisão que ofenda o princípio do contraditório, limitando-se, tão somente, ao postulado por apenas uma das partes (art. 489, §1º, inciso IV).[10]
Vale ressaltar que o Congresso Nacional, em um ato de pura humildade, reconheceu a precariedade de inúmeros textos legislativos, tendo em vista que, em diversas situações, estes possuem palavras de sentido impreciso, vago e ambíguo, mesmo ciente de que poderia decorrer, de certo modo, da própria textura aberta do direito[11].
Ainda assim, se valendo da premissa de que o legislador não utiliza palavras inúteis, tal fato, infelizmente acontece. Para tanto, instituiu-se através do art. 489, §1º, II, e §2º, do Novo Código de Processo Civil, a necessidade de o juiz justificar as razões pelas quais está empregando determinado conceito jurídico ao caso em concreto[12].
A tentativa do legislador em elevar um tema complexo e de eminente importância a caráter normativo deve ser, acima de tudo, parabenizada, tendo em vista o considerável avanço em relação ao CPC de 1973.
Ademais, surtirá efeito pedagógico em relação aos aplicadores do direito para melhor motivação de suas decisões, em tempos onde os enunciados normativos possuem significados vagos e imprecisos.[13]
Nesta toada, as partes têm o direito de conhecer o caminho lógico percorrido pelo julgador quando da prolação de sua decisão no que possa chamar de duas linhas convergentes, representando a motivação como instrumento de comunicação, expondo às partes a razão de ser do provimento jurisdicional[14].
Reforça-se que o código adotou o gênero provimento jurisdicional no que relacionado à decisão judicial em seu sentido amplo, ou seja, decisão interlocutória, sentença e acórdão, não esquecendo, inclusive, dos provimentos monocráticos prolatados pelos tribunais[15].
Analisando essa situação, defende-se que o dever de motivação das decisões judiciais, além de permitir o exercício adequado sobre a interpretação e a solução dos conflitos e de textos abertos, exercerá o devido controle acerca da correta utilização da jurisprudência pátria[16].
Para tanto, “necessário, pois, à intelecção dos pronunciamentos que encerram a prestação jurisdicional, a motivação, aliás como preconizado no próprio texto legal, constitui solenidade substancial destes”.[17]
Não se pode deixar de mencionar a importância da motivação das decisões no que toca à uniformização da jurisprudência, razão pela qual o legislador acrescentou, durante calorosas discussões na Câmara dos Deputados, os incisos V e VI ao §1º do art. 489, o que traz à tona a necessidade de regular a regra da motivação a um sistema onde a padronização da jurisprudência será preponderante.
A inclusão dos mencionados incisos, no âmbito do dever de motivação das decisões judiciais, tem por corolário desenvolver o controle sob a aplicação da jurisprudência, uma vez que os dispositivos em destaque compelem o julgador a, sempre que invocar ou afastar alguma decisão anterior ou enunciado de súmula, abduzir de forma prévia a sua razão de decidir. Melhor exemplificando, os motivos imprescindíveis que justificaram a aplicação da tese jurídica ou enunciado de súmula utilizado.
O juiz deverá, ainda, justificar se aquela mesma razão será ou não igualmente aplicável[18].
Nesta senda, Neil MacCormick disciplina que “justificar [uma decisão] exige que o falante estabeleça a sua pretensão, defesa, ou decisão na asserção de que porque os fatos F1, F2,. .. Fn estão presentes, o julgamento j deve ser pronunciado. Mas esse ‘porque’ exige um comprometimento com a regra universal, ‘sempre que f1, f2,. .. fn, então j’ ”.[19]
Contudo, uma ressalva deve ser posta em questão, considerando que, mesmo a tese jurídica possuindo imensa relevância para o sistema processual posto, esta, em nenhuma hipótese, poderá ser comparada às decisões judiciais, ante a hipótese de ser generalizável, podendo ser identificada a partir de uma decisão judicial, e não o inverso[20].
Ademais, a tese jurídica é formada por decorrência da decisão judicial, motivo pelo qual tem como matéria-prima a decisão, enfatizando, ainda, que o precedente trabalha fundamentalmente sobre fatos jurídicos relevantes que integram o caso sub examine por parte da jurisdição, e que, por essa razão, influenciaram o pronunciamento da decisão nos termos em que foi prolatada.
Assim, por tais motivos, as regras que estipulam o que é uma decisão não fundamentada poderá, ao menos, ser utilizada como um rastro deixado pelo legislador acerca do que, em boa parte dos casos, é uma decisão judicial mal fundamentada.
Desta feita, a inovação trazida pelo Novo Código de Processo Civil deve ser aclamada, obviamente algumas discussões acerca de determinados quadros de fundamentação devem ser realizadas, considerando que o direito, por não ser uma ciência estática, estará sempre promovendo novas situações que ensejam um estudo mais aprofundado da norma.
Notas e Referências:
[1] CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores?. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 74.
[2] MEDINA, José Miguel Garcia. Fundamentação das decisões judiciais no Estado Democrático de Direito: importância da jurisprudência. Jornal Carta Forense.
[3] DINAMARCO, Cândido Rangel et al. Teoria Geral do Novo Processo Civil. São Paulo; Malheiros, 2016. p. 72.
[4] Art. 489. São elementos essenciais da sentença: (...) § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I – se limita a indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo; II – empregue conceitos jurídicos indeterminados sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invoque motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V – se limita a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
[5] DUARTE, Zulmar et al. Processo de Conhecimento e Cumprimento de Sentença. Comentários ao CPC de 2015. São Paulo, Método, 2016. p. 560.
[6] DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit. p. 73.
[7] Art. 11. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.
[8] SILVA, Beclaute Oliveira. Novas Tendências do Processo Civil. Estudos Sobre o Projeto o Novo Código de Processo Civil. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 193.
[9] MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. O Projeto do CPC. Críticas e Proposta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, pp. 128-129.
[10] OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de, DUARTE, Bento Herculano. Princípios do Processo Civil. Noções Fundamentais. São Paulo: Editora Método, 2012, p. 75.
[11] HART, Herbert Adolphus Lionel. O conceito de direito. Trad. A. Ribeiro Mendes. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996.
[12] De acordo com a tese do professor alemão Friedrich Muller, que tem sido aceita atualmente no Brasil, texto normativo e norma não se confundem. A norma jurídica seria o resultado da interpretação de um texto normativo. Muitas vezes, a interpretação de textos normativos abertos (cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados) permite extrair um princípio (norma de menor densidade). Friedrich Muller (apud ROQUE, André Vasconcelos. Novas Tendências do Processo Civil. Estudos Sobre o Projeto o Novo Código de Processo Civil. Salvador: JusPodivm, 2013, pp. 255-256). Rigorosamente o enunciado normativo não se confunde com norma. MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. 3. ed. ver. e atual. São Paulo: RT, 2012. p. 187.
[13] Idem ibidem, p. 254-255.
[14] ASSIS. Araken. O Processo Civil Brasileiro. Parte Geral. V. I. Revista dos Tribunais. São Paulo. 2015. p. 440-441.
[15] Idem Ibidem. p. 563.
[16] ROQUE, André Vasconcelos. Op. cit, p. 257.
[17] TUCCI, José Rogério Cruz e. A motivação da sentença no processo civil. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 107.
[18] ROQUE, André Vasconcelos. Novas Tendências do Processo Civil. Estudos Sobre o Projeto o Novo Código de Processo Civil. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 260.
[19] MACCORMICK, Neil. Why Cases have Rationes and What These are, em Laurence Goldstein (org.) Precedent in law. Oxford: Clarendon, 1987, pp. 155-182, esp. 162 (tradução livre dos autores). apud DERZI, Misabel de Abreu Machado e BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Novas Tendências do Processo Civil. Estudos Sobre o Projeto o Novo Código de Processo Civil. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 335. Ronald Dworkin sustenta que a dignidade da decisão judicial não está na criação do direito pelo juiz, mas na possibilidade de este decidir a partir de princípios e fundamentos. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2013. p. 253.
[20] MITIDIERO, Daniel. Fundamentação e Precedente – Dois Discursos a Partir da Decisão Judicial. Revista de Processo. Ano 37, vol. 206, abril/2012. Direção, Arruda Alvim. Coordenação, Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, pp. 70-71.
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