MORTES SECAS  

06/02/2019

 

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

De tão sombrios que tem sidos os últimos tempos, não se sabe mais a diferença entre noite e dia. Uma imensa noite que se recusa a passar. Um pequeno dia que se recusa a nascer. Nessa noite contínua que continua, não importando ser verão ou outono, a Lua se alterna ao Sol no céu; sem, no entanto, que se possa encontrar uma luz tão forte ou um tempo tão longo que consiga romper as trevas que imperam nesse pedaço do universo ao qual chamam de Sertão.

As trevas tais que preenchem o opaco da fome e da sede, cujos sinais permeiam este lugar, não são as mesmas trevas causadas pela ausência de luz, ou pela força gravitacional de um buraco negro; tão pouco se trata das cantadas e temidas forças rebeldes, na Bíblia, na Torá ou no Al Corão, Não são trevas naturais nem tão pouco líricas – são trevas culturais. Construídas com afinco e dedicação por seres miseráveis; coronéis; marajás; senadores; deputados; políticos de inúmeros partidos – todos do mesmo partido – de todas as religiões. Pior é constatar que obra tão grandiosa, tão desgraçada, não se pode nem dizer fruto do Satanás, pois até mesmo o maldizido receia passar perto de onde os velhos dinossauros bigodudos de cabeça branca edificaram - com sangue nordestino – seus impérios de roubo, de submissão – de desgraça. Hoje seus filhos – filhas – e netos se regojizam nesse sangue.

No dia-noite interminável as graúnas voam ao longe. Vão em busca de água. E água terão. São pássaros, podem voar. Têm sorte. Espertas. Talvez mais até do que estes imbecis que se julgam no poder. Por força de um português errado, imposto por acadêmicos e definido em dicionário – que do povo nada tem – define-se prefeito, deputado e senador. Por teóricos que de tão ignorantes tornam-se doutores: define-se governo, estado soberano; São esses os imbecis superados pela graúna, que esperta, foge. Para as colinas; para a chuva. Para o sul maravilha. Coitada da Graúna. Nem pode imaginar o que a espera. Fugindo da seca e da fome e da maldita incompetência humana, acabará morta, soterrada, em um desses barrancos garimpados pela corrupção e pela inoperância. Desses a que chamam de sociais e democratas, e sociais-democratas e trabalhadores, Pobre graúna – nascida na fome, crescida na miséria e morta na corrupção. Soterrada, espera mortinha alguém lhe salvar, enquanto do céu observa aos ministros rirem felizes a investidura no novo cargo.

Sob o luar-sol escaldante a terra reclama por perdão. Trincada, salgada e morta. Não é terra, é pedra esfolada. É piso que se pisa e nada que se cresça algo. Os únicos vestígios de vida são a própria morte – por todos os lados. Ossos moídos e ressecados – esqueletos há muito carcomidos – e um ou outro carcará, Insalubres, ao contrário da graúna, preferem esperar que se morra algo para comerem. Tão seco, tão maldito, tão açoitado pelo homem gordo da cabeça branca é este terreno, que há muito não se vive algo que se possa morrer. Nem mesmo ave carniceira tem agora do que se alimentar.

Observando a caatinga definhar, nove seres de raciocínio conturbado já não tem esperança nem mais na morte. São seres pútridos, castigados – muito menos do que Fabiano – não se acham bichos – são cadáveres – uns corpos lastimados e esqueléticos que se esqueceu de pôr ao cemitério.

São nove ao total. Se fossem gente – ou bicho – dir-se-ia família, matilha ou bando. São hecatombe. Mas segundo o novo dicionário – não aquele dos imbecis e dos doutores, mas o dicionário que fala as línguas e ciência do povo – mínima unidade social, constituído de pai-cadáver, mãe-cadáver e filhos-sem-futuro: definição – genocídio.

Seis desses seres são crianças – como fósseis de um futuro que nunca se concretizará, seus olhos vislumbram o abandono material, emocional e patriótico. Não são filhos órfãos de pai e mãe; são filhos órfãos de uma pátria. São menos que bichos. São jogados no mundo e por estes esquecidos. Valem menos que um animal da selva; valem menos do que uma fechadura arrombada em plena noite;

A mais velha dessas coisinhas se parece uma menina. Seria uma adolescente, se a subnutrição e as algúrias do meio em que vive já não tivessem lhe roubado a juventude antes mesmo que deixasse de ser criança; Em seus braços que mais parecem duas varas de bambu, leva um pequeno primata. Este serzinho que se agarra ao seu pescoço como um miquinho o faz à mãe, é seu irmão. Na verdade, definir o gênero se faz mais por força da sintaxe desta língua lusitana do que pelo que parece realmente ser aquele pequeno esqueleto, Não se pode precisar o sexo da criaturinha. Só se pode precisar os sintomas da grave epidemia que aflige toda essa gente: a corrupção.

A pele da criança, nua e seca, contrasta com o que talvez seja a coisa mais bela em quilômetros: um trapinho cor-de-rosa feito de bom tecido que protege o corpo da garota mais velha do sol-luar, dos abutres – e dos coronéis.

Um pouco atrás da adolescente-idosa, vem o pai-cadáver. Traz consigo mais três filhos-sem-futuro. Segurando a sua mão direita, um pequeno sem-futurinho de pés descalços, cara inchada e olhos profundos. Parece um pequenino fantasma, ou alienígena. Um ser humanoide que de humano mesmo apenas se reconhece as lágrimas na iminência de saltar-lhe à face. À esquerda do matuto homem vem mais duas de suas crias. Ambas aparentam o sexo feminino, pelos cabelos médios encaracolados e pelos traços um tanto mais finos nos rosto. Certeza, certeza não se pode ter – a única coisa certa para essa gente, mais do que a morte, é a seca.

A menor das duas crianças – que olhando bem, agora parecem meninos mesmo - além da doença da corrupção, traz consigo as parasitoses típicas desse povo e dessa região. E de parasitas, não se quer dizer aqueles que vivem à custa do suor sagrado do povo brasileiro, mas de parasitas naturais, aqueles que não fazem o parasitismo por burrice ou ignorância, mas por uma condição genética preestabelecida: são lombrigas e amebas e teníases e amarelões. São tantas que nem se pode precisar os nomes, as espécies e as doenças. Alguns trapos lhe vestem parcialmente o corpo. Uma blusa quadriculada que mal tapa a barriga inchada; uma calça lascada que mal lhe tapam as vergonhas. Logo atrás dessa alminha esquecida pelo capitalismo seu irmão compartilha de seu sofrimento pelos olhos. Seu corpo não parece tão doente, mas sua alma é de irremediavelmente moléstia.

O pai-cadáver, matuto, mestiço; quase pode não se dizer gente – para esse tipo até inventou-se um nome : homem de gabiru. Um ser que se diz humano mas que não se desenvolve como se deve um. Nem em biologia, nem em direitos; Não é um ser, é um fato científico; é uma subespécie; uma perspectiva de direitos; uma probabilidade que nunca se efetivará como ocorrência;

Mais atrás vai o velho. Este ser que já cumpriu seus anos de servidão e agora é apenas um estorvo; um peso morto; Algo cuja existência se resume mais a atrapalhar do que a viver. É magro como a própria fome. As costelas saltam-lhe ao corpo como um detalhe exagerado de uma escultura impressionista.

À esquerda do homem cadavérico segue sua companheira. Com um pequeno serzinho grudado ao pescoço e alguns pertences de cozinha à cabeça, seus pés descalços suportam uma dor maior que o próprio sertão; uma verdadeira Átila, que tem sobre si o céu dos castigos e abaixo o chão dos perdões; É um elo, um pilar, uma existência profana que funde o paraíso ao inferno dentro da profundidade que é a pessoa humana. Seu fardo é carregar o peso de uma vida que já nasce condenada à perpetuação – não da espécie – mas da mísera condição social que faz de toda e qualquer vivência neste lugar chamado Sertão um homicídio com requintes de crueldade.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Central Tower // Foto de: Nick // Sem alterações

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