“Morte em vida é viver embaixo da sua bota”: sobre uma juventude humilhada, torturada e assassinada           

14/12/2021

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

“Morre hoje, depois de amanhã já faz dois dias”. Estava entre um artigo e outro, entre uma palavrinha e outra, quando essa fala, dita por um jovem morador da periferia do Rio de Janeiro, me encontrou e me preencheu. Entre tantas questões tocadas em apenas uma frase: a morte, um acontecimento quase que cotidiano nas favelas brasileiras, engendrada nas vidas da classe trabalhadora e de seus filhos, seja ela em vida ou não.

Nos últimos 5 anos, 35 mil crianças e adolescentes foram mortas de forma violenta no Brasil. Ainda de acordo com o levantamento elaborado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em conjunto com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021), que faz um panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, lançado em outubro de 2021: no ano de 2020, aproximadamente 787 mortes de crianças e adolescentes, com idades entre 10 e 19 anos, foram identificadas como mortes decorrentes de intervenção policial, no Brasil. É no estado de São Paulo onde há a maior predominância dos casos, chegando a 44% do total, seguido pelo Amapá, Sergipe, Pará e Rio de Janeiro. Esse dado revela uma média perversa e inaceitável de mais de 2 mortes de crianças e adolescentes por dia no Brasil. [1]

Entre junho de 2016 e novembro de 2021, segundo pesquisa desenvolvida pelo Instituto Fogo Cruzado, a polícia do Estado do Rio de Janeiro esteve envolvida em 10 das 13 maiores chacinas registradas no estado. O número de mortos das 13 chacinas foi de 141 pessoas, ao passo que nas 10 chacinas, em que a polícia do Rio esteve envolvida, foram registradas aproximadamente 115 mortes, aproximadamente 81% das mortes.[2]

Em 2021, ocorreu a chacina mais letal da história da cidade do Rio de Janeiro, com 28 mortos. O massacre aconteceu na favela do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio de Janeiro, no dia 6 de maio. A entrada da polícia no local foi motivada pela operação policial que objetivava acessar 21 pessoas que eram investigadas por suspeita de aliciar menores para o tráfico de drogas. Foi identificado que 13 das pessoas assassinadas pela polícia não tinham nenhum envolvimento com a investigação.[3] Mesmo com informações como essas, a maioria dos policiais ainda procuram justificar suas ações injustificáveis na divisão capitalista perversa do que será coisa e do que será sujeito. O Estado frequentemente afirma que os mortos eram assassinos, traficantes, bandidos, como se isso justificasse seus assassinatos. Os inimigos responsáveis por todos os problemas da sociedade são construídos, a partir dos interesses do capital, fundados nessa divisão: existem indivíduos de bem e coisas - que são meros alvos que merecem ser destruídos, eliminados e a quem deve ser retirados todos os direitos, inclusive o direito à condição de pessoa. Ou seja, a lógica do Estado capitalista é construir inimigos que serão exterminados por serem inimigos, em um ciclo vicioso e cruel. [4]

Ainda, de acordo com o relatório do Instituto Fogo Cruzado, as ações da polícia de alta letalidade além de continuarem acontecendo cotidianamente, cresceram e só nesse semestre chegaram em 67% (quando comparadas ao mesmo período de 2020). No último ano escolar convencional antes da pandemia, em 2019, 32% dos tiroteios que aconteceram na cidade do Rio ocorreram no entorno de escolas, como apontam os dados do relatório elaborado pelo Instituto Fogo Cruzado. O referido relatório também afirma, nesse sentido, que muitas das crianças baleadas foram alvejadas na escola ou a caminho dela, bem como dentro de casa.

As frequentes violações de direitos e violências sofridas por todo esse segmento precarizado da classe trabalhadora são diárias, bem como atravessam todas as esferas da vida dele: educação precarizada, falta de saneamento básico, pouco ou nenhum acesso à saúde e justiça. Além de outras violências escancaradas por parte estatal, humilhações, torturas, ou como canta e denuncia Don L: “Morte em vida é viver embaixo da sua bota”.

Como vimos, muitas vezes essa sequência rotineira de violências que ocorrem desde a infância culmina na morte biológica, assim como, no mesmo cenário, os processos de criminalização culminam no cárcere. Desse modo, é imprescindível uma problematização que se direcione para além dos policiais envolvidos nas ações, bem como questione o modo como toda a sociedade se organiza, sua estrutura. Para a melhor compreensão da realidade, transcendendo sua aparência fenomênica é fundamental levar em consideração a historicidade, dialética e concreticidade do objeto e da realidade social, ou seja, é necessária uma análise que busque compreender as relações sociais que estruturam a sociedade. Ainda, a partir da leitura de “Punição e estrutura social” (“Punishment and Social Structure”) de Rusche e Kirchheimer, podemos afirmar que cada sociedade vai pensar nas melhores formas de punir e controlar a classe trabalhadora, visando sua manutenção.

Desse modo, não faz parte do repertório do acaso que cerca de 80% das vítimas letais dessas operações da polícia sejam jovens negros. As relações e instituições sociais se fundam nos processos históricos de colonização e escravidão, tendo a violência como norma e a desumanização do colonizado como instrumento mantenedor do capital. Portanto, nessa sociedade capitalista, é certo que aqueles grupos que detém os meios de produção não abrirão mão do derramamento de sangue do negro, pobre e jovem, é a moeda que mantém a estrutura. Assim, as saídas e ações de mudança em direção ao cuidado dos nossos jovens têm que, necessariamente, abarcar a luta pela garantia de alguns direitos básicos, a organização e o fortalecimento do poder popular, sempre visando a derrubada do capitalismo.

 

Notas e Referências

Rusche, G. & Kirchheimer, O. (2004). Punição e estrutura social – Coleção Pensamento Criminológico nº 3. Rio de Janeiro, Brasil: Revan.

Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil -  Relatório da UNICEF, 2021

[1]https://noticias.r7.com/sao-paulo/em-media-a-cada-40h-uma-crianca-morre-por-violencia-policial-em-sp-23032021

https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/nos-ultimos-cinco-anos-35-mil-criancas-e-adolescentes-foram-mortos-de-forma-violenta-no-brasil

https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/10/4957276-policia-matou-2-criancas-e-adolescentes-por-dia-no-brasil-em-2020.html

[2]https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/12/07/chacinas-rio-de-janeiro-policia-morro-favelas.htm; https://fogocruzado.org.br/relatorios-rj/.

[3] Número que pode ser ainda maior, porque aproximadamente 11 corpos ainda não foram identificados.

[4]https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-07/maioria-dos-mortos-na-chacina-do-jacarezinho-nao-era-suspeita-em-investigacao-que-motivou-a-acao-policial.html;

 

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