MORTE E LUTO INFANTIL NA PANDEMIA DE COVID-19: o papel da escola como instrumento difusor da proteção integral da criança    

20/03/2021

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Rêgo, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry

A pandemia causada pela COVID-19 causou uma profunda mudança nos mais variados âmbitos da vida, exigindo atenção e discussão. Dentre as inúmeras questões está o luto infantil decorrente da morte de um ente querido e seus desdobramentos, exigindo um esforço para assegurar seus direitos. Entre tantos direitos a serem garantidos à criança está o direito à saúde, envolvendo, portanto, a saúde psíquica. Por certo, a criança enquanto sujeito de direito, deve ter seus direitos assegurados pelo Estado, pela família, pela sociedade e pela escola. O presente artigo possui como foco o papel da escola, vez que esta não opera somente com os conhecimentos universais produzidos ao longo da história, mas, também com os desafios educacionais surgidos em decorrência dos fatores sociais que emergem na sociedade em que está inserta. Assim, o presente possui como objetivo discutir o papel da escola na condição de instrumento assegurador da proteção integral dos direitos da criança frente a temática da morte e do luto de crianças que perderam entes queridos durante a pandemia.

Primeiramente, há que se ressaltar brevemente o nascedouro da doutrina da proteção integral de crianças e adolescentes. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 já externava preocupação com a infância: “Artigo XXV - (...) 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais”

É importante frisar que a afirmação dos direitos humanos, bem como dos direitos fundamentais do homem propiciou o reconhecimento da criança como sujeito de direitos. A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de novembro 1989, é o instrumento de direitos humanos mais aceito na história universal, trazendo, inclusive, pela primeira vez a doutrina da Proteção Integral à Infância.

A Constituição Federal de 1988, em sintonia com tais concepções, promoveu uma verdadeira mudança de paradigmas atinentes à criança e ao adolescente quanto sua condição no seio da família e da sociedade, ao considerá-los como sujeitos de direitos –, assegurando-lhes a proteção integral dada sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento.

Por sua vez, a Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente – também em consonância às conquistas em prol de crianças e adolescentes decorrentes da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, reconheceu que crianças e adolescentes têm direitos subjetivos e exigíveis, à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Então, tendo por base, que a doutrina de proteção integral implica na garantia a inúmeros direitos, inclusive o direito à saúde, há que se reconhecer a importância de assegurar-se à criança o direito à saúde psíquica, inclusive, diante da experiência do luto, hoje tão corriqueiro diante da pandemia. Nesse contexto, inquestionável o papel da família, mas também da escola enquanto locus de desenvolvimento.

Falar de morte e de luto não é, de praxe, algo agradável às pessoas dentro da cultura ocidental. Aqui convém abordar o conceito de luto. Freud ([1917]2010, p. 171-172 define o luto como: "[...] a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal, etc”. É importante frisar que o luto não está exclusivamente vinculado à perda concreta diante da morte, mas também às perdas simbólicas que podem estabelecer analogia à ideia da morte, como separações, perdas de objetos, abandonos, adoecimentos, etc. Para Freud ([1917]2010), é esperado que o luto, enquanto fenômeno natural, seja superado ao longo do tempo e impedi-lo, para além de inapropriado, seria prejudicial. Em termos psíquicos, o luto se caracteriza por um abatimento doloroso, pela perda de interesse pelo mundo externo e por toda atividade que não esteja ligada ao objeto perdido. Freud ([1917]2010) entende que o trabalho de luto consiste no fato de o enlutado, a partir do exame da realidade, compreender que o objeto amado não mais existe.

Sem dúvida, vê-se que a pandemia trouxe uma nova realidade no contexto do luto pela perda de pessoas amadas, ocorrendo, inclusive, por razões de segurança, a impossibilidade de realizar os rituais de despedidas comumente utilizados pela nossa cultura. O luto em si, muitas vezes, embarra em barreiras para sua elaboração, pois abordar a questão da morte e do luto não é algo fácil em nossa sociedade, causando inquietações e angústias, sobretudo, quando o interlocutor é uma criança.

Conforme já dito, o luto também está vinculado às perdas simbólicas que podem estabelecer analogia à ideia da morte, como separações, perdas de objetos, abandonos, adoecimentos, etc. Hoje, é possível observar a perda da rotina presencial escolar, às visitas à família e amigos, aos passeios, etc. E assim, segundo Giaretton et al (2020, p. 01): “A escola é um espaço de mediação da realidade, influenciando na elaboração das vivências do desenvolvimento do aluno, como no luto de perdas reais e simbólicas.” 

Por certo, é difícil para qualquer pessoa deparar-se com a morte de alguém querido independentemente da fase da vida por qual passa. Mas para as crianças, sobretudo, as de tenra idade, a morte é algo nebuloso, haja vista que tendem a percebê-la como um estado transitório que pode ser revertido, pois ainda não possuem a compreensão de alguns conceitos básicos relacionados à morte.

Para Bromberg (1998) o significado atribuído pela criança à morte dependerá de alguns fatores como a sua idade, o vínculo estabelecido com quem faleceu, o seu desenvolvimento psicológico, bem como dependerá da forma como seu cuidador lida com a morte.

Sengik e Ramos (2013) ressaltam que embora a morte do pai ou da mãe provoque um grande sofrimento na criança, há que se falar com a criança sobre a perda, pois, ao contrário do que se pensa, não aumentará o seu sofrimento, mas sim o amenizará, além de contribuir no processo de elaboração do luto. É muito comum que os adultos ocultem, mintam ou até mesmo usem de eufemismos junto a criança com frases como: “viajou”, “virou estrelinha”. Quando isso ocorre, a criança tende a perceber que existe algo obscuro, pois observa o semblante entristecido das pessoas ao seu redor, as palavras cuidadosamente sussurradas, como se existisse um segredo.  Caso a criança perceba, pode deixar de acreditar no adulto e até mesmo deixar de perguntar.

Nesse contexto, segundo Aberastury (1984), a criança sente-se confusa e um sentimento de desesperança toma-lhe conta, pois acredita que já não tem a recorrer. No mesmo sentido, Kovacs (2002) afirma que a criança possui uma aguda capacidade de observação e, diante da evitação do adulto em abordar a perda, pode manifestar sintomas, sentindo-se confusa e desamparada, sem ter com quem conversar. Portanto, o adulto deve responder às perguntas da criança sobre a morte, evitando eufemismos.

Sengik e Ramos (2013) ressaltam que a criança pode sentir a ausência da pessoa falecida como uma ameaça de rompimento com outras figuras com quem mantem vínculos. Contudo, faz parte do desenvolvimento da criança assimilar a perda por meio da fala, do choro, do desenho ou da brincadeira. E nesse momento, é importante que o adulto pontue a irreversibilidade da morte, ou seja, que a pessoa que morreu não vai mais voltar.

Torres (1999) realizou inúmeros estudos sobre o desenvolvimento do conceito de morte em crianças, apontando conceitos importantes como irreversibilidade, a não funcionalidade e a universalidade. A irreversibilidade implica reconhecer a impossibilidade de se retornar a um estado prévio, ou seja, que o corpo físico não tem como permanecer vivo depois da morte. A não funcionalidade está ligada ao reconhecimento de que as funções vitais cessam com a morte. E a universalidade diz respeito ao fato de que tudo que está vivo também morrerá.

Independentemente da fase de desenvolvimento da criança e da aquisição ou não de conceitos, Giaretton et al (2020) defendem que depois do meio familiar, a escola segue como um segundo ambiente de socialização, caracterizando-se como um espaço de segurança e afeto para a criança, o que é esperado, pois desde muito cedo, passa a frequentá-la ocupando grande parte de seu tempo. Também é esperado que nesse contexto o(a) professor(a) assuma um papel afetivo e referencial para a criança, dando continuidade à relação estabelecida com os pais, o que pode propiciar o estabelecimento de um vínculo fundamental em seu desenvolvimento. Sem dúvida, a escola é um espaço de aprendizado, de construção de vínculos e de compartilhamento de momentos alegres e tristes, como as peradas. Daí a necessidade de a escola estar preparada para lidar com as diversas emoções dos alunos.

Por isso, a morte e o luto não devem ser ignorados no âmbito escolar, tratando-os como tabus, mas antes, devem ser objeto de muito acolhimento e apoio. Kovacs (2010) realizou uma pesquisa com professores do ensino fundamental, sendo questionado se os mesmos acreditavam que a temática da morte deveria ser abordada nas escolas. 33% dos professores acham que é um tema importante e interessante, 26% acreditam que podem auxiliar a criança ao deparar-se com a morte, 23% acham que é um tema difícil e delicado e; 15% acreditam que é natural. Os professores reconhecem que não estão preparados para lidar com a morte e evitam falar sobre o assunto, mas têm ciência de que todas passarão por tal situação. Na referida pesquisa, a maioria dos professores acreditam que não compete aos mesmos abordar o assunto com os alunos, pois seria papel da família, o que pode interferir na elaboração do luto da criança, pois não raramente a família também silencia.

Quando tal situação ocorre, a criança pode sentir-se inadequada ante aos próprios sentimentos e a necessidade de externá-los. Por isso, é comum a criança apresentar mudanças comportamentais como forma de expressar que não está bem, apresentando agressividade, isolamento, alterações de sono, etc. Pode, ainda, apresentar queixas de natureza física, como febre, dor de cabeça, vômito, etc.

A escola pode materializar seu papel de agente de saúde psíquica criando espaços de escuta, discussão e reflexão para abordar os mais diversos assuntos presentes no imaginário da criança, inclusive os mais delicados como morte e luto. Tal medida além de contribuir para o desenvolvimento da criança, acaba por auxiliar a família da criança a ajudá-la a elaborar o luto.

Kovacs (2010) ressalta que a escola deve investir nas preparação dos professores para que saibam lidar com a temática. Segundo Naletto (2005) a morte e o luto não deveriam ser tratados apenas diante de sua concretização, mas deveria ser objeto de um trabalho a longo prazo, onde os professores pudessem pensar em estratégias e em planos de ação para lidar com a temática da morte e luto, sobretudo, se sobrevém de forma repentina, o que pode ser uma fator complicador na elaboração do luto. Para a referida autora, os professores devem estar aptos a levar seus alunos a pensar acerca da vida e da morte, a dar apoio ao aluno, caso necessite e não somente apto a repassar o conteúdo escolar.

Silva (2011) enfatiza que o(a) professor(a) pode valer-se de recursos lúdicos como brincadeiras e jogos que explorem a questão da transitoriedade da vida com as crianças. Uma das formas para trabalhar a temática em sala de aula sem constranger o aluno que esteja passando por um luto é utilizar brincadeiras que estimulem a socialização, pois a criança tende afastar-se dos colegas em razão do luto. Outra estratégia é o desenho por meio do qual a criança poderia externar o desejo que o ente querido retorne a vida, caso ainda não tenha formado o conceito de irreversibilidade.  

Pode-se, ainda, discutir a morte a partir de outras perdas, as quais simbolicamente, poderiam ajudar na compreensão daquelas, como a perda dos primeiros dentes, os quais precisam cair para que os dentes permanentes possam nascer, como a árvore que nasce, cresce e morre.

Por outro lado, em que pese o fato de o(a) professor(a) ser um elemento essencial no âmbito escolar, assumindo um papel importante nesse processo, não há como exigir que o(a) mesmo(a) comporte-se como alguém dotado de superpoderes, pois sua forma de direcionar o processo estará intimamente ligada a sua constituição psíquica, as suas próprias vivências de luto e seus mecanismos para superá-lo. Logo, é possível que o professor não esteja preparado para acolher o luto do aluno. De uma forma geral, a dificuldade existe não somente em decorrência da complexidade da temática, mas porque a pandemia acaba afetando a todos de forma direta e indireta.

Kovacs (2010) entende que a escola não substitui a função da família, porém, enquanto os alunos nela permanecerem é fundamental que a escola os acolha e dê apoio. A importância de acolher o luto da criança não somente na família, mas também na escola está no fato de que a perda quando não elaborada, pode provocar prejuízos a longo prazo. Ou seja, é necessário viver o luto. Nesse sentido, é importante que pais e professores sejam honestos com as crianças, inclusive, demonstrando seus próprios sentimentos. Torres (2002) enfatiza que o adulto deve ser prudente em relação às explicações fornecidas à criança, vez que devem estar em consonância com a fase desenvolvimental e, caso necessário, algumas crenças próprias de cada fase devem ser desfeitas a fim de evitar maiores prejuízos.

Enfim, é inevitável que a criança sofra com a morte de uma pessoa amada, e dependendo da fase de desenvolvimento por que passa e da forma de lidar com a morte de seu cuidador, é possível que vivencie a ausência como um abandono, por isso é essencial que lhe seja assegurado um espaço a fim de que manifeste seu sofrimento e possa elaborar seu luto. Sem dúvida, espera-se que esse espaço de acolhida seja viabilizado pela família de imediato, mas pode (e deve) ser viabilizado também pela escola, pois não é apenas um locus de interação social e difusor de conhecimento, mas também um espaço de efetivação proteção integral dos direitos da criança. Não se discute que a escola, por sua função social, também é responsável pelo desenvolvimento das relações de cada sujeito, pois no seu espaço tais relações podem ser construídas, ressignificadas e até desconstruídas. No caso da temática da morte e luto é imprescindível que se leve em consideração a fase de desenvolvimento por que passa a criança, bem como é importante que o(a) professor(a) possa preparar-se para tratar a temática e manejar estratégias de apoio àquela. É importante, pois, não ignorar o luto da criança, o que implicaria impô-la outra morte, qual seja, a morte social ante o sentimento de inadequação.

 

Notas e Referências

ABERASTURY, Arminda. A percepção da morte na criança e outros escritos. Porto Alegre: Artmed, 1984.

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TORRES, Wilma da Costa. A criança diante da morte: desafios. 2ª ed. São Paulo: Casa do Psicólogo.

 

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