No apagar das luzes do ano que antecede sua posse, o governo Bolsonaro ou, mais diretamente, seu futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, negociam e jogam peso para aprovar os projetos de lei que tramitam na Câmara dos Deputados (PL 10.431/2018) e no Senado (PLS 181/2018), que intentam fazer cumprir no Brasil as sanções impostas por resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, incluída a indisponibilidade de ativos de pessoas naturais e jurídicas e de entidades, e a designação nacional de pessoas investigadas ou acusadas de terrorismo, seu financiamento ou atos correlacionados. Os projetos revogam a Lei nº 13.170, de 2015, que disciplina a “ação de indisponibilidade de bens, direitos ou valores em decorrência de resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas – CSNU”.
A Lei 13.170, proposta e sancionada pela Presidenta Dilma Rousseff em 2015, enquadrava-se no mesmo enredo da aprovação da Lei Antiterrorismo. A área econômica do governo impulsionou o projeto, ao argumento de buscar atender às recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI), com vistas a evitar má avaliação ou desqualificação por parte de agências de classificação de risco. A norma em vigor já estabelece, em seu texto, um rito sumário de execução de resoluções do Conselho de Segurança da ONU, ao determinar sanções de indisponibilidade de bens de pessoas físicas ou jurídicas. No formato da norma vigente, o Ministério da Justiça comunica à AGU, para que esta peça em 24 horas ao Judiciário que determine o bloqueio de bens, e o juiz decide também em 24 horas. Somente em seguida abre-se ao acusado a possibilidade de defesa.
A diferença fundamental entre a norma vigente e os projetos que tramitam no Congresso Nacional é que neles dispensa-se a atuação dos demais órgãos. De acordo com os textos apresentados, caberá ao Ministério da Justiça fazer cumprir imediatamente as sanções, sem sequer encaminhar o pedido ao Poder Judiciário. Além disso, os projetos trazem a previsão de que pessoas sejam acusadas de vinculação com atos ou grupos terroristas, a requerimento de autoridade estrangeira, de países indeterminados, e não somente do Conselho de Segurança da ONU, bem como que o governo brasileiro, atendendo a pedido da Polícia Federal ou do Ministério Público Federal, independente de ordem judicial, solicite a outros países a indisponibilidade de ativos em razão de terrorismo, seu financiamento e atos.
São textos que se afiguram claramente inconstitucionais, violando diversos dispositivos que conformam o direito de defesa e o devido processo legal, sepultam os princípios da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa, previstos na Carta de 1988. Operam uma lógica segundo a qual recuperar bens materiais justificam sacrificar direitos conquistados e o dever do Estado de provar a culpa de um cidadão antes de puni-lo. Mais ainda, são formulações cujo conteúdo não disfarça a busca de centralismo de poder nas mãos de um ministério, cujo futuro ocupante pertencia até menos de um mês, aos quadros do Poder Judiciário, e cujos atos sofreram toda sorte de questionamentos de setores jurídicos e cidadãos, nos órgãos de controle e na própria ONU.
A direita conservadora no Congresso Nacional vem buscando, em um terceiro projeto (PLS 272/2016), que se encontra na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, repor dispositivos vetados na Lei 13.260/2016 (Antiterrorismo) para tipificar a ação de movimentos sociais como terroristas. A estratégia de conteúdo vago contida na palavra “terrorista”, que desvia qualquer nuance e elimina contextos, é reeditada para narrar violência contra bens, públicos ou privados, sempre que o conteúdo de manifestações populares contraria interesses dominantes.
Projetos dessa natureza não possuem qualquer intenção outra senão a perseguição e criminalização dos movimentos organizados em luta por seus direitos e de adversários políticos, como publicamente verbalizado pelo presidente eleito Jair Bolsonaro. De outra sorte, a disseminação da ideia de combater o terrorismo em um país onde nunca houve ataques terroristas afigura-se a venda de uma fantasia para angariar apoio a leis despóticas. Nada parece mais eficaz do que criar ameaças para fomentar a produção de normas que supostamente garantiriam a paz social. A “Guerra ao Terror”, assim denominada a doutrina do presidente estadunidense George Bush, após os ataques do dia 11 de setembro de 2001, serviu de mote para diversas agressões a direitos humanos no mundo, e restou marcada pelo uso de medidas policiais de controle sobre a população do país, e pela ação agressiva contra algumas nações, com ocupações e guerras cujas justificativas nunca se comprovaram.
A usurpação de competências delegando ao ministro da pasta da Justiça poder exacerbado para impor sanções, suplantando o papel do Poder Judiciário e dos demais órgãos, é uma declaração de sentido explícito de um autoritarismo mal disfarçado, um caminho para a tirania e a repressão. Sérgio Moro busca para si mesmo o poder centralizador de decidir quem é terrorista e quem sofrerá as sanções dispostas nas resoluções de um organismo sem qualquer controle de legalidade ou validação pelo sistema interno. Na prática, leva para o Ministério da Justiça o poder de um juiz.
São projetos que apontam para uma deformação estrutural em nossa legislação, com inúmeras possibilidades catastróficas no plano concreto. Positivá-los em nosso ordenamento jurídico é afirmar ao mundo que estamos, também no plano individual, dispostos a conceder e a perder direitos, inclusive os jurídicos e políticos. A invenção de inimigos públicos - como “terroristas” – é um método histórica e comprovadamente eficaz de angariar apoio para respostas autoritárias e inócuas, um engodo para justificar governos e legislações de exceção.
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