Mordaça não, proteção sim: as publicações para o público infantil sob a ótica da proteção integral

24/09/2019

 Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenador Assis da Costa Oliveira

No dia da comemoração da Independência do Brasil, 7 de setembro de 2019, a protagonista da história foi a censura, enquanto o Direito da Criança e do Adolescente foi utilizado de modo equivocado, não se atendo ao real sentido da proteção de crianças e adolescentes brasileiros, tanto pelos adultos da Bienal do Livro de 2019, como pela Imprensa, por meio de fakenews[1] que disseminaram um conteúdo inadequado, relativo ao livro Gêmeas Marotas, que é impróprio para crianças, disponível em qualquer banca do jornal e pelas redes de WhatsApp.

Defensores da liberdade de expressão de um lado, pessoas utilizando a censura como forma de angariar a simpatia dos evangélicos de outro, mas o fato é que ninguém deixou de publicar conteúdo efetivamente prejudicial às crianças, daí porque a necessária lente da Doutrina da Proteção Integral para evidenciar o verdadeiro sentido da proteção.

A Doutrina da Proteção Integral tem uma longa história internacional de defesa dos direitos de crianças e adolescentes, que remete a uma corresponsabilidade partilhada entre a família, a  sociedade e o Estado,  de respeitar a criança, como pessoa em processo de desenvolvimento, com direitos prioritários absolutos, devendo ser colocada a salvo de qualquer forma de negligência, violência, crueldade e opressão, conforme prevê a Carta Cidadã, em seu art. 227. Dentre vários tratados do qual o Brasil é signatário, o documento internacional mais proeminente e com força de norma internacional cogente é a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, que tem força supralegal, conforme decisão do Superior Tribunal Federal (STF), que garante a força supralegal aos tratados de direitos internacional de Direitos Humanos qual o Brasil faz parte[2].

O artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal, ao garantir os direitos fundamentais, prescreve ser: “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, propiciando que todas as pessoas tenham liberdade de pensamento e expressão, sem prévia censura, o que é basilar em uma sociedade democrática. A questão é adequar a liberdade de expressão e a proibição da censura aos adultos, à proteção integral e prioridade absoluta em relação às crianças e adolescentes.

Há que se destacar que a nossa Constituição Federal ao afirmar prioridade absoluta à infância e adolescência, já estava alinhada aos tratados internacionais e, principalmente, com a Convenção sobre os Direitos da Criança, portanto, a compreensão da prioridade absoluta implica na garantia dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes, apesar da proibição da censura, ou seja, prevê a liberdade de pensamento e expressão, contudo, compatibiliza esta liberdade com a condição peculiar de sujeitos em desenvolvimento quando, no parágrafo § 4º, art. 227, prevê que a “lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.”

Tanto que, no art. 220, a Constituição Federal oferece a regulação da liberdade de expressão, prevendo a não restrição à manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação, mas contempla a obrigação de que sejam reguladas as faixas etárias adequadas, por lei federal, que no caso, é o Estatuto da Criança e do Adolescente, e meios legais para permitir que as famílias possam se proteger de programas ou programação de rádio e televisão que possam inadequados às crianças,  à saúde e ao meio ambiente. Portanto, o uso destes meios legais não pode ser considerado censura, pelo próprio texto constitucional.

Pois bem, apesar da clareza do texto constitucional ao compatibilizar o direito da liberdade de expressão à da não violência ou exploração sexual das crianças e adolescentes e ao permitir que as famílias possam exercer a proteção das crianças, ao deixar claro que a liberdade não pode deixar soçobrar ao mais importante, que é prioridade da proteção, o fato é que a diferença entre censura e classificação desponta como o assunto principal a ser abordado neste momento de crise de interpretação.

A Convenção sobre dos Direitos da Criança é “o instrumento de direitos humanos mais aceito na história universal”[3], posto que ratificado por 196 países, foi ratificado pelo Brasil em 20 de setembro de 1990, acolhendo a ordem de direitos e cuidados indispensáveis à criança (considerado de zero a 18 anos), dentre os quais, destaca-se para fim deste artigo, a previsão do art. 17:

Os Estados Partes reconhecem a função importante desempenhada pelos meios de comunicação, e devem garantir o acesso da criança a informações e materiais procedentes de diversas fontes nacionais e internacionais, especialmente aqueles que visam à promoção de seu bem-estar social, espiritual e moral e de sua saúde física e mental. Para tanto, os Estados Partes devem:

a) incentivar os meios de comunicação a difundir informações e materiais de interesse social e cultural para a criança, de acordo com o disposto no artigo 19;

b) promover a cooperação internacional na produção, no intercâmbio e na divulgação dessas informações procedentes de diversas fontes culturais, nacionais e internacionais;

c) incentivar a produção e a difusão de livros para crianças;

d) incentivar os meios de comunicação no sentido de dar especial atenção às necessidades linguísticas da criança que pertença a um grupo minoritário ou indígena;

e) incentivar a elaboração de diretrizes apropriadas à proteção da criança contra informações e materiais prejudiciais ao seu bem-estar, tendo em vista o disposto nos artigos 13 e 18[4]. (sem grifo no original)

Ao comentar o significado deste dispositivo, na obra lançada neste ano em homenagem aos 30 anos da Convenção dos Direitos da Criança, reforça-se a importância dos meios de comunicação para disseminar informações que sejam favoráveis ao bem-estar social, cultural e moral, enquanto ao Estado cabe encorajar procedimentos que visem a proteção contra os materiais inadequados ao desenvolvimento das crianças[5].

A obra correlaciona o artigo 17 da Convenção e o art. 220 da Constituição Federal aos artigos 71 ao 79 do Estatuto da Criança e do Adolescente, reforçando que o art. 71 remete ao direito da criança e do adolescente à informação, cultura e lazer, mas de forma protegida, ao respeitar a peculiar situação de pessoa em desenvolvimento. E alerta que o Estatuto define como infração administrativa uma série de condutas que causem violação a tais determinações[6].Dentre as quais, destacam-se os artigos78 e 79, que especificamente quanto à publicação escrita, prescrevem a obrigação do cuidado para evitar acesso das crianças às revistas que contenham mensagem pornográfica ou obscenas, hipótese em que deverão estar lacradas e protegidas com embalagem opaca e também que possam conter ilustrações, fotos, legendas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições e que deverão respeitar os valores éticos da pessoa e da família:

Art. 78. As revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com a advertência de seu conteúdo.

Parágrafo único. As editoras cuidarão para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca.

Art. 79. As revistas e publicações destinadas ao público infanto-juvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Ora, “tais dispositivos não pretendem o retorno de uma censura obtusa que vigorou no país nos anos da ditadura”, mas é “evidente que não significa uma liberdade sem isenções e sem nenhum compromisso com a ética”[7], isso porque se tratam de regras específicas ao público vulnerável, de pessoas em desenvolvimento, sujeito às mais variadas influências. A vulnerabilidade, como esclarece Danielle Espezim dos Santos, é intrínseca à própria condição de ser em desenvolvimento[8].

Em comentário ao art. 79, do Estatuto da Criança e do Adolescente, Monique Deheinzelin sinaliza que os valores éticos e sociais da pessoa e da família, a qual as revistas e as publicações precisam respeitar, é relativa à especificidade do pensamento infantil, que é buscar compreender o mundo dos adultos, na observação do que os adultos, em família e, em interação social, fazem e o que é permitido fazer na complexidade da vida humana, portanto, para a autora, a criança vai progressivamente absorvendo as práticas sociais e os conteúdos apresentados pela ética familiar para formar a sua própria compreensão de mundo[9].

Na obra, “Criança, Consumo e Publicidade”[10], são analisados os efeitos da publicidade ao público infantil e, sob a ótica da Doutrina da Proteção Integral, são ressaltados que os argumentos da liberdade de expressão e da autonomia da família não são suficientes para elidir os efeitos da publicidade especializada em convencer as crianças, clamando a todos para pensar o quanto somos responsáveis uns pelos outros, pensar na fraternidade em uma sociedade que vive o seu inverso, um individualismo exacerbado, de acomodação, o qual não podemos nos deixar ilhados e devemos alertar sobre o perigo da mercantilização e da coisificação dos sujeitos. Esta análise se encaixa perfeitamente no que concerne às publicações.

Tânia da Silva Pereira defende o “cuidado” como valor jurídico que, pela Doutrina da Proteção Integral, considera o “cuidado” a base dos direitos fundamentais e parte integrante da vida humana, porque nenhum tipo de vida subsiste sem o “cuidado”, de forma a concluir que “o cuidado representa o denominador comum deste sistema especial de proteção, entre as pessoas, o meio ambiente e a “plena consciência da sua vida, do seu papel no planeta, na sociedade e na família”, defendendo então o cuidado de crianças, adolescentes e idosos, inclusive quanto ao convívio entre eles e fixação dos direitos de convivência”[11].

Entendemos como fundamentais a liberdade de expressão, de opinião, de respeito à diversidade, que constituem a essência do Estado Democrático de Direito. O que nos assombra em toda essa discussão é que em momento algum o ser criança – sujeito de direitos – foi trazido para a centralidade do debate.

A decisão do STF, no tocante ao não recolhimento da publicação da Marvel, foi impecável no sentido de apontar o fundamento da liberdade de expressão, portanto, que jamais deveria ser reverenciada a censura.

No entanto, a discussão pública do tema não tratou dos direitos da criança em relação à classificação indicativa, sequer fez menção a este fato. Entendemos que conteúdos erotizados não são compatíveis com algumas etapas do desenvolvimento infantil. O que assistimos é, mais uma vez, a histórica composição adultocêntrica – os adultos como o centro de tudo, portadores de verdades, de suas verdades, desconectados com o compromisso com a infância.

Não se trata, de modo algum, de uma cruzada contra a manifestação do amor, em suas mais diversas formas, antes, o que se tem que cuidar é evitar que o conteúdo de um beijo entre dois rapazes gere uma falsa tensão, usada para disseminar o discurso do ódio de forma polarizada, como se de um lado estivesse a liberdade de expressão da diversidade sexual e, do outro, o extremo moralismo populista: a intenção deste artigo é fazer a correta distinção: a liberdade de expressão não é absoluta quando o tema é o público infanto-juvenil, ou seja, o ato do Prefeito Municipal do Rio de Janeiro foi efetivamente um ato de censura, contudo, o uso de Fake News para justificar um dos polos da discussão foi feito de forma irresponsável e feriu efetivamente o direito das crianças e dos adolescentes, pela disseminação por adultos, tanto na internet, como pela Folha de São Paulo, do conteúdo do outro livro, este sim proibido, com o sério risco da sexualização precoce, da máxima exposição a tudo, sem nenhum critério.

Reforçamos: pretendemos chamar a atenção dos adultos para que não entrem na polarização, com armas que efetivamente façam mal às crianças e adolescentes, porque a eles a proteção é absoluta e prioritária, como sujeitos de direitos em desenvolvimento físico, mental, emocional e cuja maturidade sexual física precisa acompanhar a maturidade sexual cognitiva. Logo, não podem sofrer estímulos que provocarão reações físicas de antecipação da puberdade, porque a antecipação causa desestrutura emocional, diante da falta de cognição necessária possa sustentar as novas reações físicas do seu próprio corpo, enquanto outras habilidades infantis ainda precisam ser formadas como etapas indispensáveis ao seu saudável desenvolvimento global.

Por isso a Doutrina da Proteção Integral, firmada no ordenamento jurídico brasileiro, com a Constituição Federal de 1988, elegeu a criança e o adolescente[12] como prioridades absolutas. O diapasão da proteção integral foi regulamentado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Neste contexto, mais uma vez, faz-se extremamente relevante compreender que não estamos frente a uma mera “teoria” da proteção, mas diante de um arcabouço normativo. Sim, leis que se pautam, se situam na Proteção Integral. Cada vez mais o aparato normativo tem uma compreensão da necessidade de se cuidar da infância. Podemos situar o Marco Legal da Primeira Infância, Lei n. 13.257, de 8 de março de 2016, como exemplo de crescente zelo, – ou seja, a prioridade das prioridades – a criança do zero aos seis anos de idade.

O grande tema, que foi absolutamente descurado em todo o debate em torno do livro lançado na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, situa-se no tocante ao cuidado com o ser criança, e, portanto, a necessária discussão sobre a necessidade de buscar-se a classificação indicativa para obras literárias, sem disseminação de Fake News para atrapalhar o debate necessário e atual. Somente isso!

Não se trata de defesa da censura ou de uma alienação, no sentido de deixarmos nossas crianças alheias às mudanças sociais, às alterações na composição da família. Não queremos uma “marcha às trevas”. Nada disso! Antes, a classificação indicativa se situa na mais absoluta compreensão de que estamos frente a pessoas em processo de desenvolvimento e, portanto, merecedoras de atenção e cuidados diferenciados e especiais.

Enfim, não queremos censuras, mordaças; queremos proteção! 

 

Notas e Referências

[1]Cronologicamente, no dia 8 de setembro de 2019, a Folha de São Paulo publicou uma notícia informando que a Procuradoria-Geral do Município do Rio de Janeiro havia juntado à ação judicial, que buscava autorização de busca e apreensão na Bienal, imagens do livro “Gêmeas Marotas”, “uma sátira de livros infantis do holandês Dick Bruna que é voltada ao público adulto e mostra personagens em relações sexuais. A notícia original não está mais disponível, mas apenas a errata, informando que esta informação não era mais real, tratava-se de fake news. FOLHA DE SÃO PAULO. STF derruba decisão que autorizava censura a HQ com beijo gay na Bienal do Livro, de 08 de set. de 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/09/stf-derruba-decisao-que-autorizava-censura-a-hq-com-beijo-gay-na-bienal-do-livro.shtml. Acesso em: 11 set. 2019. O fato é que para ilustrar o uso da obra, a Folha de São Paulo publicou sim imagens de desenhos de sexo explícito entre  crianças e também entre animais.” Apesar do aviso anterior da revista CRESCER. Corrente que alerta sobre conteúdo pornográfico em livros infantis é falsa, de 05 de set. de 2019. Disponível em https://revistacrescer.globo.com/amp/Voce-precisa-saber/noticia/2019/09/corrente-que-alerta-sobre-conteudo-pornografico-em-livros-infantis-e-falsa.html. Acesso em: 11  set. 2019. 

[2]SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE466.343-SP, publicado em 03 de dez. de 2008. Relator: Ministro Cézar Peluso. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP= AC&docID=595444. Acesso em: 11 set. 2019.

[3]UNICEF BRASIL. A Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca. Acesso em: 10 set. 2019.

[4]BRASIL. Convenção sobre os Direitos da Criança: Decreto 99.710/90. Publicado em 21 de novembro de 1991. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm. Acesso em: 10 set. 2019.

[5] VERONESE, Josiane Rose Petry. Convenção sobre os Direitos da Criança: 30 anos. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 69.

[6] VERONESE, Josiane Rose Petry. Convenção sobre os Direitos da Criança: 30 anos. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 69-70.

[7]VERONESE, Josiane Rose Petry. Convenção sobre os direitos da Criança: 30 anos. Salvador: JusPodivm, 2019, p. 71.

[8]SANTOS. Danielle Maria Espezimdos.A luta por direitos infanto adolescentes no Brasil: doutrina da proteção integral e o direito fundamental à assistência social. In: VERONSE, Josiane Rose Petry; SILVA, Rosane Leal da (org). A Criança e seus Direitos: entre violações de desafios. Porto Alegre: Editora Fi, 2019, p. 85.

[9] DEHEIZNELIN, Monique. Art. 79. In: VERONSE, Josiane Rose Petry; SILVEIRA, Mayra; CURY, Munir (coord). Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 526.

[10] VERONESE, Josiane Rose Petry. ZANETTE, Sandra Muriel Zadroski. Criança, publicidade e consumo: por uma sociedade fraterna. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 141-142.

[11] PEREIRA, Tania. PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord). A ética da convivência familiar. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 255-256.

[12] E também o jovem, com a Emenda Constitucional n. 65, de 2010.

 

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