Por Atahualpa Fernandez - 05/07/2015
“La mayor tragedia en toda la historia de la humanidad puede haber sido el secuestro de la moralidad por parte de la religión”. Arthur C. Clarke
De todas as imagens cristãs que inundam e circulam por internet há, uma particularmente, curiosa e que é minha favorita. A de um homem de 32-33 anos, supostamente Jesus Cristo (uma espécie de Brad Pitt com traços femininos), batendo suavemente à porta de uma casa. Está vestido com uma túnica branca (as cores da vestimenta variam) e parece querer ouvir se há alguém dentro que responda à sua chamada. Algumas destas imagens vêm acompanhada com a mensagem «Deixe-me entrar», «Já estou chegando e batendo à porta... Quem abrir a porta, eu entro em sua casa», «Agora vou estar com você para sempre» ou algo parecido.
Agora simulemos mentalmente a seguinte cena (tomando a imagem ao «pé da letra»). Uma tranquila manhã de domingo está o amável leitor(a) em sua casa quando ouve alguém chamando à sua porta. Ao abri-la se encontra com um estranho trajado com uma túnica e chinela (ou descalço), luzindo cuidada melena, barba ao estilo e que desde a ótica oficial mais parece um pirado. Ao perguntar o que deseja, escuta a seguinte resposta: «Bom dia. Estou buscando almas perdidas! Me chamo Joshua bar Joseph, mais conhecido como Jesus Cristo; sou carpinteiro, profeta itinerante, exorcista, sanador, missioneiro apocalíptico e tenho superpoderes. Sou filho de um Deus que se engendrou a si mesmo por intermédio de uma ave e minha mãe é virgem. Resumindo, sou filho de Deus, nada menos, Deus encarnado, um terço (1/3) de uma personalidade multíplice constituída pelo Pai, o Filho (este humilde servidor!) e o Espírito Santo, e estou aqui para que me deixes entrar e tomar o controle de teu coração para sempre. Pode comprovar tudo isso que digo com tua fé».
Com todas estas credenciais, que motivos teria o leitor (a) para não deixar entrar este indivíduo? Pense um pouco antes de responder, porque “nada é impossível para aqueles que têm fé” — disse Vorbis. Não posso falar por outros, mas suponho que só um ser humano demasiado desconfiado, demencialmente hipercrítico ou com “síndrome de baixo rendimento crônico” (estupidez), passada a surpresa inicial e superada a incredulidade pela misteriosa força da fé, não abriria a porta de sua casa e de seu coração para a segunda pessoa da Santíssima Trindade, para este estranho sujeito sem pai e seu “Pai” (que também é Ele mesmo), que ressuscitou depois de morto e que lhe elegeu para anunciar a “Verdade” neste mundo atormentado por perguntas existenciais: «Se Deus não existe, tudo está permitido».
Quer dizer (e este é o núcleo do assunto que tratarei em seguida): de que se não existe uma autoridade superior e sobrenatural impulsora de uma ética que nos indique onde está o bem e o mal, se não existe um árbitro mais além da vida com capacidade de dar e impor uma justa retribuição, o ser humano carece de motivos para frear o lado mais escuro, amoral e associal de sua natureza. Este é o preço da «caída», a dívida que todos devemos satisfazer por causa do «pecado original».
É isto assim? É necessária a religião para a moralidade? Devemos ser religiosos para ser morais? Temos que crer em Deus para ser boas pessoas? Sem Deus não “hallaríamos otro lugar donde «colgar» el concepto de Ética”? A vida humana antes da religião implicava necessariamente comer-se uns a outros? Não pode a moral sustentar-se na natureza humana? É necessário aceitar a Deus/Jesus Cristo/Espírito Santo em nossa casa ou em nosso coração para ter ética e comportar-nos de forma virtuosa?
Apesar de que muitas pessoas consideram escandaloso, blasfemo inclusive, negar a origem divina da moralidade, estas perguntas parecem impertinentes àqueles que, sem ter uma religião ou fé em algum Deus, tratam de levar uma vida honrada. De fato, abundam os problemas para os que creem que necessitamos a religião para pôr limites aos vícios da perversa mãe natureza, que a moralidade procede de Deus, que um ser divino e vigilante criou nosso sentido moral ou bem que o adquirimos a partir dos ensinamentos de uma religião organizada. Primeiro, porque nos dias que correm Deus é irrelevante na prática cotidiana da imensa maioria das pessoas, inclusive das que se dizem religiosas (“Nunca se ha llegado a demostrar de modo convincente que rezar por los demás surta efecto; por ejemplo, no existe nadie al que le haya vuelto a crecer un miembro amputado después de pronunciar una oración” – D. Swaab).
Um segundo problema é o de que não podemos dizer simultaneamente, sem cair em tautologia, que Deus é bom e que nos deu a capacidade para discernir entre o bem e o mal, pois neste caso o único que dizemos é que Deus cumpre suas normas (M. Hauser & P. Singer). Terceiro, como demonstrou Marc Hauser em seus experimentos, 90% dos indivíduos têm as mesmas intuições morais independentemente de sua cultura ou religião, com o que a religião não é uma variável relevante na moral (se o fora, as respostas morais dos religiosos e os não-religiosos seriam significativamente diferentes). Vejamos por partes.
A ideia de que não crer em Deus (nem em nenhuma outra entidade antinatural) nos empurra à elite do Diabo, ao fogo infernal, ao castigo eterno num lugar horrível e para sempre, ou de que se não foi Deus quem nos pôs aqui na terra carecemos de sentido e de propósito, foi aniquilada por Charles Darwin. Com sua teoria da evolução por seleção natural, Darwin foi o artífice do terremoto que provocou a radical redefinição da origem e da natureza da moralidade, da forma em que nos vemos a nós mesmos e o lugar que ocupamos no universo, da ideia do bem e do mal e do mundo tal como o conhecíamos antes dele. Nem Copérnico, que nos apartou do centro do Universo, nem Freud, que sinalou que não éramos os donos de nossa própria mente, nem nenhum outro ramo da ciência supôs um corte tão profundo na jugular da compreensão de nossa própria natureza (nem alarmam tanto aos religiosos da mesma maneira). Nada disso é comparável à revolução e o perigo que supõe Darwin.
O problema pode ser resumido da seguinte forma: Pensamos que certas ações são moralmente boas porque Deus assim determinou? Ou pensamos que são boas somente porque essa forma de pensar fez com que nossos ancestrais tivessem mais descendência que os que pensavam de outra maneira? O fato de que nossas crenças morais tenham uma origem natural implica que nossas crenças morais são falsas? É realista, por exemplo, exortar à gente a ser justa (boa ou correta) com os demais se não tem uma inclinação natural para comportar-se assim? Não há verdades morais independentemente da vontade de Deus? Na ausência de um juiz celestial podemos fazer o que queiramos?
Há duas maneiras por meio das quais a teoria evolucionista mina este tipo de ilusão. A primeira é que conduz as pessoas a perder sua fé em Deus e na imortalidade pessoal. A segunda é que a seleção natural dinamita a ideia de que existem uns cimentos objetivos sobre os que apoiar a moralidade. Centremo-nos na primeira das alternativas. A teoria de Darwin faz impossível fundar a moralidade sobre as “bases sólidas” da teologia. É mais bem uma afronta contra ela: para os que creem que a moralidade vem diretamente de Deus criador, a aceitação da evolução abre um abismo moral e serve como recordatório de que é altamente improvável (e quiçá impossível) que exista um Deus bom e onipotente. Também nos leva a apreciar a tremenda incoerência que supõe aceitar simultâneamente a um Deus com propósito e um mecanismo de seleção natural algorítmica e mecânica que não conduz a nenhum objetivo preestabelecido (G. Andrade). Como assinalou em certa ocasião Michael Ruse: “Después de Darwin ya no hay fundamento “ahí fuera” más allá de la naturaleza humana”.
Nada obstante, um argumento que se repete muito no vicioso círculo da atual orgia religiosa é o de que Deus, ou a religião, faz boa às pessoas e que o ateísmo as faz más. A natureza carece da capacidade de produzir nenhum bem, ou tal como formulou Thomas Huxley: “La doctrina de la predestinación, del pecado original, de la depravación innata del hombre y la perdición de la mayor parte del género humano, de la primacía de Satán en este mundo, de la vileza esencial de la materia, de un Demiurgo malévolo subordinado a un Todopoderoso benevolente, que sólo se ha revelado tardíamente, imperfectos como son, me parece muchísimo más cerca de la verdad que las ilusiones “liberales” populares de que todos los niños nacen buenos. […] El progreso ético depende de combatir nuestra naturaleza”. Um tipo de visão ou opinião que supõe, entre outras sandices, que a natureza do ser humano é egoísta, cruel, depravada e competitiva, e que é a religião, ou Deus, a causa de que sejamos bondadosos, cooperadores e altruístas.
Pois bem, atualmente há evidências de sobra de que tudo o que encontramos moralmente atrativo na natureza humana (o altruísmo, o amor, a simpatia, a empatia, a generosidade, a virtude, etc....etc.) são também produto do mesmo processo de seleção natural. Em contra do clichê da chamada “Teoria do Mandado Divino”, segundo a qual a moralidade se sustenta em Deus e que “se ninguém a estabelece, não há nada imoral” (A. Sharpton), o certo é que a natureza humana existe e que os seres humanos “deben haberse preocupado por el funcionamiento de sus comunidades mucho antes de que surgieran las religiones actuales, que sólo tienen un par de milenios de antigüedad. Una escala temporal que no impresiona a los biólogos”(F. de Waal). Depois, não há nenhum problema para que genes egoístas usem indivíduos nada egoístas para conseguir seus objetivos e que, em determinado nível de complexidade e de organização social, compense aos genes fazer com que os veículos que lhes portam atuem de forma altruísta.
E apesar de que se pode dizer mais coisas sobre se o ateísmo nos faz maus ou se a religião nos faz bons, do que não há dúvidas é que nosso sentido moral é inato. Graças a Deus, explica Frans de Waal, “compartimos con otros primates un trasfondo biológico de animales sociables, lo que nos hace valorar las conexiones sociales. Sin este trasfondo biológico la religión podría estar sermoneando sobre la virtud y el vicio hasta que nos quedáramos con la cara azul, sin que nunca captáramos el mensaje. Si somos receptivos es por nuestra apreciación innata del valor de las relaciones, los beneficios de la cooperación, la necesidad de confianza y honestidad, etc. Incluso nuestro sentido de la justicia se deriva de este trasfondo biológico”.
Isto implica que nossa bagagem como animais sociais, nossa moralidade e nossa humanidade é algo que levamos incorporado, um produto da história evolutiva que nos precede, com antecedentes em outras espécies. Portanto, (i) não é certo que as deliberações morais têm lugar em um plano tão elevado, (ii) não é certo que a moralidade tem que vir imposta desde «acima» (e não pode vir de «dentro»), (iii) não é certo que tem algum sentido apelar à bondade ou à justiça se sua ausência ou presença não suscitara poderosas emoções nos humanos, (iv) não é certo que as regras morais não necessitam afiançar-se em «quem» e «que» somos, e (v) não é certo que não tem a moralidade que ajustar-se à razão de ser da espécie.
Mas não somente isso. Tampouco há que olvidar que a teoria de Darwin não só resta argumentos para crer em Deus como “criador” da moralidade, senão que também aporta argumentos para não crer em Deus. Um deles pode ser, por exemplo, todas as provas existentes de um desenho nada inteligente; mas um argumento mais importante é o problema do mal: “Se Deus existe, e se Deus é bom, por que há tanto mal (sofrimento) no mundo ?”. Claro que esta questão é anterior a Darwin, é um “clássico” da teologia e filosofia, mas Darwin multiplica por mil o problema.
Como explica Steve Stewart-Williams, a seleção natural desativa muitas das razões para crer em Deus e repassa os possíveis papéis que “le quedan a Dios (intervenir en el mundo o simplemente poner en marcha la evolución y mirar, etc.) después de Darwin. Es decir, que si el asunto del mal era un problema antes de Darwin lo es mucho más después”. O problema é reconciliar a existência do mal com a de um criador que supostamente é omnisciente, onipotente e bom: “Si lo sabe todo sabe que hay sufrimiento en el mundo (bueno, él creó el mundo así que tiene que saberlo). Si es bueno se supone que desearía eliminarlo y si es omnipotente tiene el poder para hacerlo. Pero el sufrimiento ahí sigue. ¿Por qué no interviene Dios? El problema no es sólo que no intervenga para ayudar; si pudo haber creado cualquier universo ¿Por qué creó uno con sufrimiento? o ¿Por qué creo cualquier universo? […] Además, si Dios no es omnipotente, ¿de qué sirve que le pida que ayude a los míos? Si Dios no lo sabe todo no podemos aceptar sus pronunciamientos sin escrutinio, o tener fe en lo que dice, ya que podría estar equivocado. Por último, si Dios no es bueno, ¿por qué debemos adorarlo y obedecerle?”.
Pessoalmente, estou convencido de que em qualquer tribunal humano a Deus se lhe acusaria quando menos de negligência. Mas não vou abordar este debate, até porque seria inútil e infame discutir a evidência de que a quantidade total de sofrimento no mundo está mais além de toda consideração decente. Sobra dizer que este “pequeno” detalhe toca o coração da crença (ou da fé) em Deus.
Posso imaginar que tudo isso é muito “contraintuitivo” e que muita gente encontra difícil aceitar que a capacidade humana para fazer o bem existe graças a nossa biologia e é produto do mesmo processo “cego” e “brutal” da seleção natural. Afinal, para o bem ou para o mal, parece que as ilusões cognitivas que nos induzem a pensar em um (ou vários) Deus (es) onipresente e observador atento, que fomos criados para uma finalidade especial, que há vida depois da morte ou que os acontecimentos naturais contêm mensagens importantes procedentes de outro mundo, favoreceram de algum modo a nossos genes, razão suficiente para manter intensamente vivas essas ilusões no cérebro humano – ilusões que podem ser tão convincentes que perfeitamente podemos negar-nos a admitir que são uma ilusão. (J. Bering)
Também entendo que o ser humano necessita dotar de sentido a tudo quanto lhe rodeia. Desde algo tão material como um tipo de pedra ou uma espécie animal até questões complexas como a moral, o significado da mirada de nosso animal de estimação ou de uma emoção alheia, tudo necessita ser etiquetado, catalogado e ter um propósito para destacar entre o caos que é a natureza. E quem melhor que o mesmíssimo Deus para dar resposta e sentido a tudo o que não sabemos, para justificar a infantil ou louca satisfação com «não querer compreender» ou para servir de consolo aos que elegeram fazer o terceiro dos sacrifícios que exigia Santo Ignacio de Loyola (aquele que mais regozija a Deus): o sacrifício do intelecto?
Contudo, o fato é que em questão de moral ou ética não há nenhum rastro de uma força misteriosa que sintonize com outro mundo, não há nenhum fantasma em nosso solo, não há nenhum «gancho celestial», não há nenhuma fonte sobrenatural, não há monstros nas profundidades, não há tal coisa como o destino, a providência, o karma, os feitiços, as maldições, os preságios, a retribuição divina ou plegárias respondidas, não há terras regidas por dragões, nem fadas ou duendes, nem poderes ocultos, nem dimensões paralelas, nem espíritos, nem poderes mágicos, nem estranhas causas ainda pendentes de “revelação”.
Por isso não supõe nenhuma bendição ou base sólida a ideia de que Deus criou as normas morais do mundo, pela simples razão de que isto não é certo: é nossa própria natureza, não a de Deus, a origem da moralidade. Para muita gente representa o fim da moralidade, mas se trata unicamente de uma moralidade despojada de superstição, desprovida de insensatas quimeras e despida de promessas ferinamente coloridas com a caprichosa recompensa de salvação eterna.
Assim as coisas, agora que sabemos que os sistemas de crenças das religiões e as culturas tradicionais de todo o mundo — suas teorias sobre as origens da vida, os seres humanos e as sociedades — são objetivamente falsos, há que ser cauteloso, estar atento e alerta à inflação religiosa, às meras ilusões e a toda uma série picassiana de crenças e fabulações criada por uma mente desenhada para crer, explicar ou justificar qualquer coisa... E não deixar entrar em nossa casa ou em nossos corações a tipos com histórias tão delirantes que até uma criança de cinco anos seria capaz de duvidar (Groucho Marx).
Imagem Ilustrativa do Post: Angels and Devil // Foto de: Mario Antonio Pena Zapatería // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/oneras/104945781 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode