Moral, direito e valores humanos: Hispóteses filosóficas (Parte 2)

14/05/2015

Por Atahualpa Fernandez - 14/05/2015

“Me encanta la hipótesis de que la moral humana, este sistema de conductas a menudo atribuidas a los Diez Mandamientos, Kant, etc., en realidad arraigaría en los llantos y sonrisas de los niños. […]La religión pudo ayudar a codificar la moralidad, y no debe subestimarse la importancia de transformar nuestros vagos instintos en un conjunto explícito de leyes. Pero nuestras emociones morales existían mucho antes de que Moisés se hiciera con las tablas del Sinaí”.

JONAH LEHRER

Leia a Parte 1 aqui

Parte 2

Ainda que seja claramente prematuro extrapolar este tipo de resultados às noções "humanas" más sofisticadas de moralidade e justiça, não deixa de proporcionar, em câmbio, excelentes referências para explicar os fundamentos naturais e neurobiológicos adaptativos da moral e do direito. Por exemplo, há ao menos dois traços essenciais da moral e do sentido da justiça humana que não se reduzem ao tipo de moralidade animal documentada por Brosnan e De Waal: i) o alto grau de abstração presente no juízo humano e; ii) a capacidade humana para “expandir o círculo” dos iguais mais além do grupo originário ou da família biológica estendida[1].

Nada obstante, se a razão etológica da moral e do direito não desentranha todos seus mistérios, ao menos sim serve para baixá-los de tão alto (a justiça não foi criada) e para deixar de considerá-los uma "construção humana" arbitrária (a justiça não foi “racionalmente” desenhada). A justiça e a moral são estratégias biológicas da humanidade. A natureza humana foi formada por um processo evolutivo em que se selecionaram estas estratégias em benefício de determinados traços favoráveis a um tipo novo e avançado de vida social: a cultura.

Entre outras coisas, porque nosso complexo sistema de justiça e de normas de conduta são mecanismos adaptativos que se desenvolveram para reprimir nossa natural tendência à “agressão” decorrente da falta de reciprocidade, dos defeitos e conflitos que emergem dos vínculos sociais relacionais elementares através dos quais construímos estilos aprovados de interação e estrutura social. Tais normas, por resolverem determinados problemas recorrentes práticos, modelam e separam os campos em que os interesses individuais, sempre a partir das reações do outro, podem ser válidos, social e legitimamente exercidos. Também plasmam publicamente não somente nossa inata capacidade (e necessidade) de predizer e controlar o comportamento dos demais, senão também a de justificar e coordenar recíproca e mutuamente, em um determinado entorno sociocultural, nossas ações e interações sociais.

E isto é fundamental porque se há algo que a justiça e a moralidade levam implícitas são nossas intuições ou emoções morais inatas. Estas não surgem por meio da fria racionalidade kantiana senão que requerem preocupar-se pelos outros e ter fortes instintos viscerais sobre o que está bem ou mal: a moralidade e o sentido da justiça se originaram “en la interacción cotidiana, y no en ningún nivel de abstracción mental” (F. De Waal). Ainda, se os homens se juntam e vivem em sociedade é porque somente desse modo podem sobreviver. E é precisamente por este motivo (e por esta via) que surgem (e surgiram) determinados valores sociais específicos: o sentimento de pertencia e lealdade para com o grupo e seus membros, o respeito à vida e a propriedade, o altruísmo, a empatia, a antecipação das consequências das ações, a proteção contra o risco pessoal e coletivo... Trata-se de práticas que apareceram de maneira necessária no transcurso da vida comum, dando mais tarde lugar aos conceitos de justiça, moral, direito, dever, responsabilidade, liberdade,  igualdade, dignidade, de segurança e de traição, entre tantos outros.

Poderia dizer-se, pois, que os códigos da espécie humana – dos valores éticos aos direitos humanos – são uma consequência peculiar de nossa própria humanidade, e que esta, por sua vez, “constituye el fundamento de toda la unidad cultural” (H. Maturana). O projeto axiológico e normativo de uma comunidade ética não é mais que um artefato cultural manufaturado e utilizado para possibilitar a sobrevivência, o êxito reprodutivo e a vida em grupo dos indivíduos. Serve para expressar (e com freqüência para controlar e/ou manipular) nossas intuições e nossas emoções morais, traduzindo e compondo em fórmulas “socioadaptativas” de convivência a instintiva aspiração da justiça que nos move no curso da história evolutiva própria de nossa espécie. Daí que as normas jurídicas constituam um produto ou um resultado com bastante articulação funcional: um conjunto de estímulos socioculturais que circulam por um sofisticado sistema de elaboração psicobiológica.

A moralidade e o sentimento de justiça emanam da própria natureza humana (da faculdade de antecipar as consequências das ações, de fazer juízos de valor e de eleger entre linhas de ação alternativas) e não é algo que haja sido imposto à condição humana pela cultura. Nossas manifestações culturais não são coleções causais de hábitos arbitrários: são expressões canalizadas de nossos instintos, ou seja, de nossas intuições e emoções morais. Por essa razão, os mesmos temas morais despontam em todas as culturas; por essa razão, apesar das diferenças superficiais de normas e costumes, as culturas têm sentido imediatamente ao nível mais profundo dos motivos, das emoções, dos hábitos e dos instintos sociais.

Graças ao universo moral e jurídico, plasmado em último termo em normas e valores “explícitos”, os seres humanos conseguiram, na interação própria da estrutura social, um reparto (ao que caberia chamar, com as cautelas necessárias acerca do conceito, “consensuado”) dos direitos e deveres que surgem na vida comunitária. Sem normas, não haveríamos evoluído; não ao menos na forma em que o fizemos. Mas dispomos da moral e do direito e, com eles, promovemos em uns grupos tão complexos como são os humanos aqueles meios necessários para controlar e predizer as más e as boas ações, para evitar riscos, para justificar os comportamentos coletivos e, o que é mais importante, para articular, combinar e estabelecer limites às relações sociais.

Nossa espécie, o Homo sapiens, não chegou à existência desde “nada”, senão que evoluiu gradualmente a partir de uma espécie anterior, que a sua vez evoluiu, também gradualmente, a partir de outra espécie ainda mais anterior, e assim sucessivamente ao longo de um tempo evolutivo imensamente largo. Descendemos de animais que viveram em comunidade durante milhões de anos: o mítico “contrato social” já estava inventado muito antes que a espécie humana aparecesse sobre o planeta. E nenhuma referência à moral ou ao direito pode silenciar estas raízes da natureza humana, a neurobiologia interpessoal respeito aos cérebros dos humanos que as constituem e as implicações (sociais, éticas, jurídicas e políticas) que tem este fato.

Vou rematar com uma breve reflexão sobre as denominadas hipóteses filosóficas ou ideias-limites. Se era inevitável que Hobbes e Rousseau carecessem de uma perspectiva evolucionista, é menos perdoável que alguns dos seus descendentes intelectuais também careçam. John Rawls, por exemplo – ainda que para o problema da estabilidade dos princípios de justiça parta do suposto de que certos princípios psicológicos e evolucionistas são verdadeiros, ou que o são de forma aproximada –, nos pede que imaginemos seres racionais se juntando para criar uma sociedade a partir do nada, tal e como Rousseau imaginou um “proto-humano” solitário e autossuficiente (igual que Hobbes, um “estado de natureza”).

Decerto que se trata de experimentos intelectuais ou ficções teóricas a partir das quais, uma vez admitidas, nos levam a umas determinadas consequências e não a outras. Mas, não exigem alguma forma de suspensão da incredulidade? Quero dizer, se baseiam em dados razoáveis? Já não parece que seja assim. Imaginar ou falar de um ponto de partida umbrático e prévio à sociedade que conhecemos é, na atualidade, um absurdo, pois servem para lembrar-nos de que nunca houve uma comunidade ou sociedade anterior. Como há gente que ainda se convence com esta insensatez de argumento é um mistério para mim.

Ninguém duvida que um “elemento clave del equipamiento para subir al monte del conocimiento es la formulación de buenas hipótesis” (J. L. Ferreira) e que, segundo o tipo de explicação, uma hipótese não tem porque ser tremendamente realista; basta com que o seja em aspectos relevantes para o que se pretende explicar (a literatura de “Eleição Social” está cheia deste tipo de modelos). Mas há hipóteses que não oferecem nenhuma linha de investigação empírica séria e não ajudam a encontrar a verdade (ainda que probabilística).

Por exemplo, a existência de uma “posição original” (ou “situação ideal”), de um ou vários seres imaginários como ponto de partida, não explica a existência da moral ou da justiça humana. A este tipo de hipótese haverá que acrescentar sempre aquilo que queremos explicar: especular ou fantasiar sobre as condições da suposta posição, contrato ou situação inicial, que se esses seres são bons, egoístas, racionais ou razoáveis, que se estão em posição de igualdade, que se possuem livre-arbítrio, emoções…; nunca se deduz nada de sua existência. Todos os argumentos metafísicos para conectar uma coisa com a outra caem na mesma falácia: as verdades morais e jurídicas são imposições razoadas, se criam a um nível de abstração mental e não escapam às categorizações delimitadas às que a filosofia á tão aficionada.

Ainda que não invoquem nenhuma divindade, são hipóteses que seguem propondo um enfoque ou processo descendente em que formulamos os princípios e valores e logo os impomos à conduta humana. O único inconveniente é que, como já dito, os grupos humanos atuais surgiram de antepassados comuns aos humanos e chimpanzés que, não obstante serem animais com certa vida social, nasceram da sociedade de um elo perdido entre símios e macacos, e assim por diante, até chegar ao ponto em que nos encontramos em nossa trajetória evolutiva, como uma espécie de animal essencialmente social, prioritariamente moral, particularmente cultural e decididamente diferente. O que significa que o seres humanos “deben haberse preocupado por el funcionamiento de sus comunidades mucho antes de que surgieran las religiones y filosofías actuales, que sólo tienen un par de milenios de antigüedad. Una escala temporal que no impresiona a los biólogos” (F. de Waal).

Isto implica que um bom ponto de partida é reconhecer nossa bagagem como animais sociais e nossa humanidade como algo que levamos incorporado, que para uma compreensão mais adequada do comportamento humano moral e normativo parece necessário ver a vida ética, jurídica e social humana como um produto da história evolutiva que nos precede, com antecedentes em outras espécies. O verdadeiro “véu da ignorância” é a evolução por seleção natural (nature-nurture), pelo simples fato de que o que ignoramos realmente (e por completo) é o “que” nos tocará na “loteria da vida”. Quanto intelecto humano desperdiçado, quanta “inación palabraria” (E. Galeno).

[1] Em termos mais gerais, nossa capacidade ética e comportamento moral (e jurídico- normativo), contemplados como um atributo do cérebro humano e, portanto, como um produto mais da evolução biológica, estão determinados pela presença (no ser humano) de três faculdades que são necessárias e, em conjunto, suficientes para que dita capacidade ou comportamento se produza: i) a de antecipar as consequências das ações; ii) a de fazer juízos de valor e; iii) a de eleger entre linhas de ações alternativas.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España  


Imagem Ilustrativa do Post: I Think He's Falling // Foto de: Bob Miller // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/12463666@N03/16637567650 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura