Moral, direito e valores humanos: Hispóteses filosóficas (Parte 1)

13/05/2015

Por Atahualpa Fernandez - 13/05/2015

“La Metafísica es la búsqueda de malas razones para explicar lo que denominamos instinto; pero la búsqueda de estas razones no deja de ser también un instinto.”

F. H. BRADLEY

Parte 1

A organização social tem que ver, entre outras coisas, com a forma como a moral e o direito são capazes de controlar a conduta humana e regular as relações interpessoais que são geradas e estabelecidas em seu interior. Mas também tem que ver logicamente com um tipo de neurobiologia interpessoal[1] respeito aos cérebros dos humanos que as constituem. Esse panorama social e moral complexo é reflexo dos distintos que podem chegar a ser os cérebros das pessoas e do modo como estão conectados com o mundo exterior e com as mentes de outros indivíduos - quero dizer, com a interação entre cérebros humanos, de como o cérebro dirige o comportamento humano (social e moral) e, ao mesmo tempo, de como o entorno influi em nosso cérebro e em nossa biologia.

Poderíamos considerar a moral e o direito como o conjunto de valorações que fazem os humanos sobre o que é “bom” e o que é “mau”, o que é “justo e o que é “injusto”; um conjunto de eleições e decisões de um animal moralista, ao que “el proceso amoral y sin dios de la selección natural” equipou com um refinado e, talvez, excessivo sentido moral (S. Pinker). Daí que nem todo mundo estaria disposto a atribuir caráter moral à decisão entre um café e um chá na sobremesa. Pareceria frívolo e insensato. Por isso se soe circunscrever a moral ao conjunto de valorações e eleições em termos de bem e mal (que levem juntas a etiqueta “bom” e “mau”, “justo e “injusto”) no âmbito das relações e comportamentos sociais, e com um horizonte temporal amplo (ao menos no que se refere às consequências dos atos).

Desse modo, decisões de vida ou morte, saúde e enfermidade, colaboração e conflito, ajuda, indiferença ou prejuízo, fidelidade ou traição, culpa e responsabilidade... etc etc... são  morais no sentido estrito. Alguns aspectos de nossa moralidade são indubitavelmente universais. A moral mesma, como tal, é universal. Como animais valorativos, com trajetórias vitais, com “histórias” pessoais que se imbricam e implicam nas histórias grupais, se ordenam de acordo com elas e se projetam no futuro, não podemos escapar da comparação permanente e da hierarquização de nossos atos, crenças e intenções (e os dos demais) em uma escala moral. O que é “bom” e “mau”, “justo” e “injusto”, para o ser humano como indivíduo membro de um grupo e para o próprio grupo que o alberga e sem o qual não pode prosperar, é moral.

Podem existir, e de fato existem, diferenças em dita escala entre culturas, igual que há entre indivíduos ou para um mesmo indivíduo ao largo do tempo. Mas todas essas diferenças são somente uma casca sobre um núcleo duro de valorações morais que compartem todos os seres humanos como espécie (com exceção, evidentemente, de casos considerados patológicos, como os psicopatas). Estas valorações se acham codificadas de alguma forma em nossas mentes e na substância biológica da qual esta surge, evolucionada por seleção natural: nosso cérebro.

De fato, a evidência de todos os tipos de estudos neurobiológicos sugere que existe uma rede “neuromoral” no cérebro: um “órgão” ou hardware dedicado à moralidade. Esta rede, seguindo a lei de Murphy, pode avariar-se e dar lugar a umas respostas emocionais atenuadas ante a possibilidade de fazer dano aos demais e realizar condutas antissociais ou delitivas. Da forma mais simples possível de explicar: se a moralidade é inata no ser humano (F. de Waal; P. Bloom), se existe um “sentido moral”, deve haver uns mecanismos cerebrais, um assento no cérebro, para essa moralidade inata.

Dito isto, assumirei algumas evidências que qualquer leitor (a) interessado na neurobiologia dos valores aceitaria sem nenhum esforço. Primeiro, que a moral e os juízos morais são estados funcionais da atividade cerebral. Hoje em dia esta é uma forma muito comum de conceber a mente. Segundo, que a existência e evolução da ética —e o direito — se entenderia melhor se pudéramos identificar as redes neuronais implicadas nos juízos morais e jurídicos.[2]

Estas assunções levantam, contudo, algumas dificuldades filosóficas. A ética (e o direito) abarca uma parte importante da natureza humana desenvolvida ao longo da filogenia como resultado da evolução por seleção natural. Por outra parte, os campos da ética e do direito incluem valores e preferências morais e jurídico-normativas. Agora: O que nos faz ser o que somos? Como a arquitetura neuronal possibilita nossos comportamentos morais e ético-jurídicos? São estes valores e preferências também o resultado da evolução? Inclui a natureza humana o conteúdo da ética e do direito, quer dizer, dos valores éticos e jurídicos? Há correlatos neuronais “responsáveis” tanto pela normalidade como pelos defeitos que emergem de nossos vínculos sociais relacionais (e das relações jurídicas)? Com que sentido e como o cérebro dirige o comportamento moral e social e, a sua vez, como o mundo social influi em nosso cérebro e em nossa biologia?

Relacionar componentes genéticos e valores humanos é uma operação  proibida, dado que parece conduzir à chamada falácia naturalista, formulada por David Hume. Isto é, se inferimos valores a partir de fatos, estamos cometendo um erro lógico. Deixarei de lado os aspectos lógico-formais da «falácia naturalista» que enunciou o pensamento analítico dentro da filosofia porque já resolvidos de maneira convincente por Richard Hare[3]. Ademais, apesar do desinteresse dos filósofos (e juristas) para aceitar os valores como um fenômeno natural, há uma lista de regularidades sociais que estão presentes em muitos primates não humanos: reparto de comida, reciprocidade de alianças, assistência mútua, justiça retributiva, reconciliação, consolo, empatia e mediação do conflito.

Estes traços da conduta poderiam considerar-se, em opinião de Jessica Flack e Frans de Waal, como um sentido da regularidade social que antecipa o 'sentido moral' humano; isto é, para encontrar em nossa natureza os fundamentos naturais e neurobiológicos adaptativos da moral (e do direito), sempre e quando os valores e imperativos morais/jurídicos se considerem uma parte da história natural da espécie humana e fruto de nossas interações sociais diárias. Esta descrição evolutiva que Flack e de Waal fazem das capacidades humanas para o juízo moral não é um sem-sentido científico ausente de transfundo filosófico. A Ilustração escocesa entendeu que o «sentido moral» era o elemento que, baseado na compaixão, conduz à eleição ética humana.

Como indicam as primeiras intuições de Darwin (1871) acerca da natureza humana, nascemos com determinados instintos morais, em um marco em que a educação intervém para graduar os parâmetros e guiar-nos até a aquisição de sistemas morais e jurídicos particulares. Há algo, pois, no cérebro humano que nos permite adquirir um sistema de valores e princípios ético-jurídicos e que permite sustentar a existência de universais morais em um sentido forte do termo (E. Tugendhat; M. Hauser).

Darwin também assinalou, em sua explicação da evolução da conduta cooperativa, que qualquer animal com instintos sociais bem definidos — como os afetos parental e filial— «inevitablemente adquiriría un sentido o conciencia moral, tan pronto como sus poderes intelectuales hubieran devenido tan bien, o casi tan bien desarrollados como los del hombre». Decerto que sendo esta uma situação hipotética — já que nenhum animal alcançou jamais o nível das faculdades mentais humanas (linguagem incluída) —, a questão reside não somente em definir se a conduta moral humana é um produto da seleção natural, senão também em saber se é um atributo exclusivo do ser humano, ou não.

Terrence Deacon sustentou que o passo final em direção aos valores humanos chegaria hipoteticamente em nossa espécie a partir de algumas modificações cerebrais que se fixaram através da filogênese: as capacidades cognitivas de alto nível teriam evolucionado na espécie humana devido a um aumento do córtex pré-frontal. Como informaram Alan Sanfey e colaboradores, o córtex pré-frontal dorsolateral, por exemplo, se ativa em uma tarefa de avaliação de intercâmbios justos e injustos como é o chamado 'jogo do Ultimatum'. Dominique de Quervain e colaboradores também assinalaram que o córtex orbitofrontal medial atua quando tratamos de integrar os custos e benefícios de castigar membros egoístas do grupo. À  vista de ambos experimentos, o de Sanfey e o de Quervain, se poderia dizer que o valor da equidade depende de um circúito particular, de certas redes neuronais de nossos cérebros.

Mas, apesar de que o desenvolvimento da moralidade e a evolução, a natureza humana e o cérebro se estreitam cada vez mais, os seres humanos não são os únicos primates com sentido da equidade. Traços de empatia (provavelmente vinculados com os “neurônios espelho”), do sentido da justiça e de sentimentos morais primários entre animais não humanos, por exemplo, foram descobertos tanto em cativeiro como em estado selvagem. Entre os dois mais interessantes dos estudos publicados, nos quais participou Frans de Waal, se encontra a evidência empírica de que a equidade (o sentido da igualdade ou o rechaço à desigualdade e à injustiça) não se refere já aos "grandes símios" (bonobos, chimpanzés, gorilas) senão a primatas evolutivamente mais modestos como os monos capuchinos da espécie Cebus apella.

Em um deles, os sujeitos, atuando como castigadores altruístas, respondiam sistematicamente mostrando sentimentos de ofensa quando eram recompensados com as mais valoradas uvas em lugar de pepinos, quer dizer, quando o experimentador se saltava as regras naturais de reciprocidade, o que induz a pressupor características elementares de justiça nesta sociedade de primatas (Sarah Brosnan e F. de Waal). O outro, mais recente, refere-se à capacidade dos monos capuchinos para identificar rostos.

Como é bem sabido, não somente a linguagem, a política, a justiça, o direito e a moral constituem partes do universo intersubjetivo. A capacidade para formar grupos de cooperantes que se prestam ajuda mútua é, no mundo da antropologia, a melhor explicação de que se dispõe para entender qual foi o mecanismo evolutivo que levou, dentro da linhagem humana, às vantagens adaptativas de uns seres tão indefesos desde o ponto de vista das armas naturais (colmilhos, garras, etc.) como são os de nossa espécie. A suposição tradicional para essa formação de grupos estáveis e cooperantes estava na capacidade humana para reconhecer rostos, fundamento mesmo da familiaridade: ao saber quem é e quem não é membro do grupo, este conta com um mecanismo excelente de coesão.

Pois bem, o estudo de F. de Waal e Jennifer Pokorny indicou de maneira bem convincente como os monos capuchinos contam também com a capacidade para identificar rostos familiares. E averiguaram mostrando aos capuchinos fotografias ante as quais a tarefa de reconhecimento se lograva inclusive se as imagens se lhes suprimia a cor, deixando os tonos em escala de cor cinza. O que indica que apesar dos capuchinos serem monos do Novo Mundo, distantes de nós por dezenas de milhões de anos de evolução separada, sua conduta é, em determinadas ocasiões, demasiada humana.

Quer dizer, além de que são capazes de apreciar o trato injusto e de rechaçar compromissos que o impliquem (inclusive se sacam mais vantagem aceitando um intercâmbio em inferioridade de condições do que se negando a ele), agora aparece outro signo de humanidade ou, melhor dito, outro indício de que determinados traços que configuram a condição humana foram obtidos por uma via em que também se encontram outros símios, que só necessitam para alcançar o grau de pensamento humano algo mais de cérebro. A moralidade, portanto, “no es una innovación tan exclusivamente humana como nos gusta creer”. (F. de Waal)


 

Veja a Parte 2 amanhã (14/05), também as 15h!


Notas e Referências:

[1] Denominação utilizada por Daniel Siegel e cuja ideia básica se organiza  ao redor de três princípios fundamentais: 1) a mente humana emerge a partir de padrões no fluxo de energia e informação dentro do cérebro e entre cérebros; 2) a mente se cria desde a interação dos processos neurofisiológicos internos e as experiências interpessoais; 3) a estrutura e a função do cérebro em desenvolvimento estão determinadas pelo modo em que as experiências, especialmente nas relações interpessoais,modelam a maduração geneticamente programada do sistema nervoso. Em síntese, que a mente surge da atividade cerebral, cuja estrutura e função estão diretamente modeladas pelo entorno (físico e cultural), pela experiência individual e pelas relações interpessoais.

[2] Sobra dizer, como esclarece A. Cortina, que o estudo das bases cerebrais da conduta moral não proporciona, por si só, um fundamento para extrair obrigações morais: “La pregunta por el fundamento de la obligación no es la misma que la pregunta por las bases con las que tiene que contar un ser para ser capaz de vida moral.”

[3] Nota bene: Simétrica à falácia naturalista, a “falácia moralista” consiste em inferir um fato de um desejo, valor, imperativo ou enunciado moral ou deôntico. Enquanto a falácia naturalista consiste em inferir o “dever ser” do “ser”, a falácia moralista consiste em inferir  o “ser”  do  “dever ser”. Como é obvio, ambas são falácias e insustentáveis logicamente.  Steven Pinker já chamou a atenção sobre a frequência com que diversos intelectuais bem intencionados e “politicamente corretos” caem (e/ou insistem) na «falácia moralista», quer dizer, na ideia de que devemos dar forma aos fatos, de tal modo que apontem às consequências mais moralmente desejáveis. Claro que há uma marcada e crucial diferença entre o 'ser' da ciência e o 'dever ser' da ética (J. Greene). Nada obstante, parece evidente que as declarações científicas podem ajudar a reavaliar nossos conceitos de moralidade e juridicidade. O certo é que não podemos inferir nada acerca da natureza humana a partir de  meros ideais políticos e/ou de vagas elucubrações acadêmico-filosóficas.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España  


Imagem Ilustrativa do Post: Thinking // Foto de: Moyan Brenn // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/aigle_dore/5238574678 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


 

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