Monteiro Lobato e a saga do Jeca Tatu

04/10/2016

Por Luiz Ferri de Barros – 04/10/2016

Com dois lançamentos ocorrendo neste mês (abril de 2014), um para a leitura adulta – Contos Completos –, outro de sua insuperável coleção infantil – Reinações de Narizinho –, a obra de Monteiro Lobato segue viva e atual, desafiando o tempo.

Mas é a edição eletrônica de seus livros, iniciada em 2012 com Urupês no formato e-book, que melhor sintoniza o autor com o século XXI. Afinal, a permanente atualidade de Lobato, pode-se dizer, vem do fato de ele ter sido, em sua complexidade, como homem e como autor, um conservador que nutria ideias e atitudes de vanguarda, a par de autêntica paixão pela inovação.

Polêmico, e incomparável polemista ele mesmo, Monteiro Lobato se indispôs com o Movimento Modernista de 1922 antes mesmo que este se configurasse, pela crítica impiedosa que fez em 1917 a Anita Malfatti. O artigo “Paranóia ou mistificação”, publicado por Lobato no jornal O Estado de São Paulo, repudiando a exposição da pintora que voltara de anos de estudos no exterior, foi, de certa forma, o estopim da Semana de Arte Moderna de 1922, pois em torno da figura de Anita Malfatti, em apoio e desagravo, reuniram-se os artistas que vieram a consagrar a Semana de 22 como um marco revolucionário nas artes brasileiras.

Porém essa revolução já começara antes, dela fazendo parte e sendo um dos pioneiros o próprio Monteiro Lobato, por vezes considerado “pré-modernista”. Em geral, porém, ele não é classificado em escolas literárias específicas nos manuais de história da literatura brasileira e, por vezes, sequer é mencionado, a despeito de sua inegável importância como contista de primeiro time, inovador na linguagem e temática; um regionalista singular, que rompe com o romantismo para enxergar de forma realista e crítica o país e a gente brasileira.

No que se refere às interligações entre Monteiro Lobato e o modernismo, fato indubitável é que o Jeca Tatu de Lobato, personagem de Urupês, primeiramente publicado em jornal em 1914, precede Macunaíma de Mario de Andrade em quase 15 anos, eis que o romance símbolo do modernismo é de 1928.

Se o refrão do Macunaíma de Mário diante da vida é “Ai que preguiça!”, a resposta do Jeca Tatu de Lobato para qualquer sugestão que se lhe faça de melhoria de vida é “Não paga a pena”. Essa analogia de traços psicológicos do herói sem nenhum caráter da raça com o caboclo do Vale do Paraíba decadente do ciclo do açúcar e do café é apenas parte da similaridade das obras que deve ser apontada, não obstante as marcantes diferenças entre elas.

Uma das diferenças é que o retrato da nacionalidade pintado por Mario de Andrade é ficcional, satírico e simbólico, enquanto Monteiro Lobato, afinal, busca ser realista – embora use de humor e de recursos expressionistas, exagerando as figuras da realidade para melhor evidenciar suas características.

Na visão lobatiana do homem como produto do meio, a indolência do Jeca é fruto da mandioca, principalmente, que ele assim descreve: “um pão já amassado pela natureza. Basta arrancar uma raiz e deitá-la nas brasas. Não impõe colheita nem exige celeiro. O plantio se faz com um palmo de rama fincada em qualquer chão. Não pede cuidados. Não a ataca a formiga. A mandioca é sem vergonha”. Diante da facilidade de alimento, o Jeca se entrega à preguiça.

Jeca Tatu, como dito, surge em Urupês, texto primeiramente publicado em 1914 no jornal O Estado de São Paulo e, posteriormente, incorporado ao primeiro livro de Lobato, de que serve como título, em 1918.

Guardadas as proporções históricas, o livro Urupês foi talvez um dos maiores best sellers da literatura brasileira em todos os tempos. Promovendo uma edição independente, na primeira impressão o autor produziu 1.000 exemplares, com a expectativa de vendê-los em cinco anos. Passados três anos apenas, em 1921, as vendas haviam superado 21.000 exemplares e, em 1925, 30.000 exemplares. Com isto, não apenas Monteiro Lobato consagrava-se como escritor como, igualmente, revolucionava o mercado livreiro brasileiro, tornando-se em poucos anos influente editor, atuante por muitas décadas, sendo a fundação da Cia. Editora Nacional a mais conhecida de suas iniciativas editoriais.

O livro é uma coletânea de contos, em geral histórias de caboclos com finais trágicos. No entanto, especificamente Urupês não é um conto. Esse texto que empresta o nome ao volume e traz à vida Jeca Tatu poderia ser considerado um ensaio, ou antes, um manifesto.

Nele, citando nominalmente José de Alencar no primeiro parágrafo, Monteiro Lobato explicitamente rompe com o romantismo, decretando a seguir a morte de Peri, “incomparável idealização dum homem natural como o sonhava Rousseau”.

Adiante denunciará que esse indianismo de outrora se transmutara em “caboclismo”, sendo então moda e sinal de fidalguia declarar-se a ascendência cabocla. Mas Lobato, num floreio de linguagem que por vezes se permitia, diz que os verdadeiros ancestrais seriam os degredados (“um dos quatrocentos de Gedeão trazidos por Tomé de Souza num barco daqueles tempos”) – e essa é a introdução que usa para a arrasadora descrição da raça que o Jeca Tatu representa: “... entre as raças de variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígene de tabuinha no beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna, nada a põe de pé”.

Com Jeca Tatu Monteiro Lobato alcança a consagração e lança-se ao centro turbulento das polêmicas de raça e da nacionalidade, para daí não mais sair, nem mesmo postumamente.

Ainda que em sua crítica e denúncia o autor deplore a forma de viver do Jeca e utilize sátira em sua caracterização, o que seria inevitável em especial pelo jeito manhoso e solerte que atribui ao tipo, Lobato não nutre raiva ou desprezo pelo caipira indolente e ignorante que descreve, o único que “ao meio da natureza brasílica [...] não fala, não ri, não ama. Só ele, no meio de tanta vida, não vive...” E, ao inteirar-se de conhecimentos de saúde pública relacionados a verminoses, Monteiro Lobato dirá sobre o Jeca Tatu, no prefácio à 4ª edição de Urupês, em 1919: "Está provado que tens no sangue e nas tripas um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte. Tens culpa disso? Claro que não."

Outros momentos marcantes merecem destaque para compreender-se como Jeca Tatu, a partir do livro best seller lançado em 1918, acaba por incorporar-se tão profundamente ao imaginário nacional.

Em 1924 Monteiro Lobato escreve, para o laboratório Fontoura, o folheto propagandístico Jeca Tatuzinho, promovendo hábitos sanitários e de higiene e o uso de medicamentos para o combate de doenças como o amarelão e outras. Estima-se que mais de 100 milhões de cópias do folheto tenham sido distribuídas até 1982, data do centenário do nascimento do escritor, segundo a globo.com, sendo também a historieta considerada a peça publicitária mais bem sucedida da história da propaganda brasileira. Jeca Tatu deixava de ser um estereótipo sociológico apresentado literariamente ao mundo intelectual e iniciava sua carreira como personagem popular.

Décadas depois, Jeca Tatuzinho inspira o ator e cineasta Mazzaropi. O filme Jeca Tatu, de 1959, é um dos maiores campeões brasileiros de bilheteria, vendendo 8 milhões de ingressos e mantendo-se na liderança por longo tempo, para somente ser superado, na década de 1970, por Dona Flor e Seus Dois Maridos com 10 milhões de ingressos vendidos. Outros seis filmes de Mazzaropi incluem-se entre as grandes bilheterias do cinema nacional; aqui temos de novo o Jeca a fincar raízes e firmar sua popularidade na cultura nacional. Seu segredo, para Paulo Emílio Sales Gomes, um dos pioneiros estudiosos de cinema no Brasil, foi "tocar o fundo arcaico da sociedade brasileira e de cada um de nós". Foi também o que fez Monteiro Lobato.

Mas o Jeca de Mazzaropi cativa, também, porque o cinema apimentou sua personalidade e suas histórias, explorando vantajosamente para a comédia os traços solertes e maliciosos do tipo descrito por Lobato. O Jeca de Mazzaropi é um sujeito de bom coração, mas parece corporificar as artes e feitos de Pedro Malasartes, o malandro ancestral que originado no folclore português até recentemente vicejava na cultura valeparaibana.


Originalmente publicado na Revista da OAB/CAASP. Nº 10. São Paulo, Abril de 2014.


Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.

Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.

E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br..


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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