Modularidade mental: A “mente moral” (Parte 1)

20/05/2015

Por Atahualpa Fernandez - 20/05/2015

 

        «¿Me contradigo? Pues bien, me contradigo (soy inmenso, contengo multitudes).»  Walt Whitman

Que a mente humana não é uma unidade, que não há um só condutor ao volante, e que está constituída por múltiplas subunidades é uma ideia já veterana que foi repetida por muitos autores de muitas disciplinas, desde filósofos a psicólogos e cientistas. Mas um dos aspectos mais complexos e ao mesmo tempo mais interessantes para qualquer investigação que se proponha ao estudo das funções do cérebro humano (o órgão que dita toda nossa atividade mental e o que nos faz humanos) é o caráter modular deste. E a ideia de que a mente é modular implica que os processos mentais estão de alguma forma “compartimentados” já desde o momento do nascimento, quer dizer, que existem estruturas inatas que definem certos domínios próprios ou especializados no cérebro por meio dos quais o conhecimento passa a ser produzido[1].

Segundo a definição (neurológica e funcional) mais corrente e compatível com o desenvolvimento da Neurologia, um módulo funcional não é uma zona ilhada do cérebro, senão um mecanismo neurológico de processamento de informação que está especializado em realizar uma função, isto é, que nos permite resolver um problema concreto. Não se trata de estrutura, senão de função; não se trata de algo localizado em um lugar do cérebro (por exemplo, um nódulo de células em uma região do cérebro), senão de redes neuronais que enlaçam zonas diversas do cérebro e que interagem entre si à medida que ocorrem ditos processos, cada uma delas com um tipo de “especificidad funcional para realizar una tarea concreta, y que interactúan de maneras realmente complejas” (R. Kurzban). Modularidade mental (estrutura modular da mente), portanto, significa que nosso cérebro opera em redes que integram a informação de distintas áreas e que atuam de maneira simultânea para poder dar lugar ao repertório das complexíssimas condutas que nos caracterizam como espécie humana.

Pois bem, a proposta hipotética mais decidida e acabada acerca da existência de módulos cerebrais encarregados do processamento de determinadas funções mentais foi realizada dentro do denominado “funcionalismo cognitivo” de Jerry Fodor (autor do conceito) e Noam Chomsky. Chomsky fala de vários "órgãos mentais" que se desenvolvem cada um de maneira específica de acordo com o programa genético, da mesma forma como o que ocorre com o desenvolvimento dos demais órgãos do corpo.

Pese as grandes diferenças que levanta a teoria modular de um e outro autor, os principais pontos comuns que cabe considerar para os efeitos deste artigo são: (i) a mente é um estado funcional do cérebro (o que faz o cérebro, um conjunto de funções do mesmo; coisa que implica negar qualquer dualismo que, como o cartesiano, outorgue à mente um estatuto ontológico separado do biológico próprio do cérebro e independente dele); (ii) os acontecimentos cerebrais que conduzem às funções mentais o fazem mediante processos computacionais (se baseiam, pois, no estado “ativado” ou “desativado” dos elementos básicos que se interconectam: os neurônios); (iii) cada função cognitiva pode considerar-se um “módulo” de nossa arquitetura mental (o equivalente de um “órgão” cujo domínio é específico ou próprio: linguagem, capacidade numérica, teoria da mente, reconhecimento facial, etc.); (iv) os módulos funcionam a partir de componentes cerebrais em grande medida inatos (ainda que necessitem de elementos ambientais para chegar, durante a ontogênese do indivíduo, à maturidade dos órgãos mentais).

A modularidade mental tem sido entendida de maneira muito diversa pelos distintos autores do funcionalismo computacional. A proposta mais interessante aos efeitos do que aqui se aborda é a de Chomsky, por duas razões. A primeira, que sua arquitetura cognitiva é compatível em boa medida com os descobrimentos das neurociências. A segunda, muito relacionada com a anterior, que se dispõe de algumas descrições empíricas acerca dos componentes neurológicos de tais órgãos mentais. Também é importante considerar outro um aspecto crucial: o da interação entre os processos cerebrais e o entorno formado, pelo que a nossa espécie se refere, por um grupo em estreita convivência social.

Tomemos, por exemplo, uma função mental muito bem conhecida: a da linguagem[2]. O modelo chomskiano de desenvolvimento da competência linguística passa pela presença nos componentes genéticos da natureza humana de umas capacidades que outorgam a qualquer recém nascido a possibilidade de desenvolver uma língua determinada. Estes componentes têm que ser tão potentes e completos como para permitir que a linguagem criadora de grande precisão sintática e semântica se logre em um tempo muito breve – uns poucos anos – e sem um programa específico de ensino.

Mas os componentes inatos não podem ser tão amplos como para impor a gramática de uma linguagem em particular. Qualquer criança, da etnia que seja, aprenderá a língua do grupo em cujo seio cresce. Todo ser humano nascido com um cérebro normal está equipado com a capacidade e o desejo de aprender uma língua: o meio apenas determina qual será a língua aprendida. A dimensão social da linguagem impõe, assim, suas pautas.

Pois bem, demonstrar que existem módulos de domínio próprio ou específico que governam o sentido da vista ou, inclusive, que a linguagem também é constitutivamente modular, parece algo que as ciências neurocognitivas já trilharam (e continuam trilhando) o caminho do êxito. Agora: Cabe estender o mesmo modelo de desenvolvimento de competências a outros módulos/órgãos mentais? Quero dizer: É possível entender que nossa mente também está dotada de um módulo específico para algo que tem um componente tão aparentemente difícil de manejar como, por exemplo, a moral ou a justiça? Existe uma rede “neuromoral” no cérebro, um “órgão” ou hardware dedicado à moralidade? Há correlatos cerebrais específicos que ditam o sentido do bem e do mal, do justo e do injusto? Nossos juízos morais dependem da integração funcional de múltiplos sistemas cognitivos, nenhum dos quais parece estar dedicado de maneira específica à realizar juízos morais?


Notas e Referências:

[1] Em realidade já aparecem interessantes (ainda que sucintos) esboços a respeito nas epistemologias de Descartes e Kant e nas psicologias de Thorndike, Vygotsky e De Groot. A ideia básica da modularidade é a de que a mente não é tanto um dispositivo para resolver problemas de qualquer tipo, senão mais bem um conjunto de subsistemas persistentes e interdependentes desenhados para desempenhar tarefas delimitadas, habitualmente ambientais: distintas partes no cérebro que fazem coisas diferentes. Este conceito modular da mente humana, a ideia de que a mente-cérebro está “dividida” em módulos e que a função do módulo consiste em processar um conjunto específico de informação de um modo determinado (como as aplicações de um iPhone),  deu (e continua dando) lugar a muito debate, sendo a base diferencial com outras teorias psicológicas. Um dos autores que na atualidade mais defende a visão de uma mente modular é Robert Kurzban.

[2] Como se dá com tantas ideias na ciência social, a centralidade da linguagem é levada a extremos no desconstrucionismo, no pós-modernismo e em outras tantas doutrinas relativistas, hermenêuticas e analíticas. Os textos de oráculos como Derrida estão crivados de aforismos como: “Não é possível escapar da linguagem”, “O texto é autorreferente”, “Linguagem é poder” e  “Não existe nada fora do texto”. O prêmio para a afirmação mais extrema tem que ser para Roland Barthes, por sua declaração: “O homem não existe anteriormente à linguagem, seja como espécie, seja como indivíduo”. Sofismas  intelectuais. De fato, a língua não poderia funcionar se não se assentasse sobre uma vasta infraestrutura de conhecimento tácito sobre o mundo e sobre as intenções de outras pessoas; isto é, as palavras sempre são interpretadas no contexto de uma compreensão mais profunda das pessoas e suas relações. No âmbito do jurídico, por exemplo, a própria existência de normas ambíguas, nas quais uma série de palavras expressa pelo menos dois pensamentos, prova que pensamentos não são a mesma coisa que séries de palavras e que estamos equipados com faculdades cognitivas complexas que nos mantém em contato com a realidade. A linguagem, assim entendida, é a magnífica faculdade que usamos para transmitir pensamentos e informação de um cérebro para outro, e podemos cooptá-la de muitos modos para ajudar nossos pensamentos a fluir. Mas linguagem não é o mesmo que pensamento, nem a única coisa que separa os humanos dos outros animais, a base de toda cultura, a morada do ser donde reside o homem, uma prisão inescapável, um acordo obrigatório, os limites de nosso mundo ou o determinante do que é imaginável. A ideia de que o pensamento é o mesmo que a linguagem constitui um bom exemplo da que poderia denominar-se uma estupidez convencional, ou seja, uma afirmação que se opõe ao mais elementar sentido comum e que, não obstante, todo mundo se crê porque recorda vagamente havê-la ouvido mencionar (S. Pinker). Mais recentemente, por exemplo, se há visto as limitações insalváveis de afirmações do tipo que o “ser que pode ser compreendido é linguagem” e até mesmo a relação estabelecida nos textos aristotélicos entre a linguagem e o sentido do justo e do injusto: certas observações e experimentos indicam que já outros primatas reagem como se tivessem algo parecido a um sentido de justiça, ainda que careçam de linguagem; sem linguagem pode haver compaixão, cooperação e quiçá algo assim como um sentido de justiça. Da mesma forma, nem toda cultura é linguística. Uma grande parte da cultura (humana e não humana) é independente da linguagem e se transmite por imitação não mediada por palavras: por exemplo, a cultura de diversos primatas que carecem de linguagem, como os chimpanzés e outros monos (F. de Waal), assim como a transmissão de determinados ofícios e a propagação das modas entre os humanos (J. Mosterín).  Dito de outro modo, a linguagem é simplesmente o conduto através do qual as pessoas compartilham seus pensamentos e intenções, suas experiências de prazer e de sofrimento - enfim, a que permite o reparto (socioafetivo) da subjetividade -, e, com isso, adquirem o conhecimento, os costumes e os valores daqueles que as cercam  e no contexto da realidade em que plasmam suas respectivas existências.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


Imagem Ilustrativa do Post: Mind The Trap // Foto de: Camilo Rueda López // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/kozumel/6834322224/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura