Mitos, crenças, folclore e o senso comum jurídico: o desvelamento a partir de Warat

15/03/2015

Por Rubens Casara - 17/02/2015

Toda manifestação humana está impregnada de determinada visão de mundo. De igual sorte, a cultura, em sentido antropológico e os sistemas filosóficos expressam determinadas visões de mundo.[2] Impossível, v.g., pensar o funcionalismo penal desassociado de uma visão de mundo de viés utilitarista, ou o modelo garantista separado das tradições positivista e iluminista.

Os mitos jurídicos nascem e subsistem a partir de determinada visão de mundo. Uma visão de mundo autoritária e conservadora (aquilo que Löwy chamou de “visão ideológica”) tende a produzir mitos autoritários e comprometidos com a manutenção do status quo; uma visão de mundo democrática e utópica abre-se a valores compatíveis com as transformações inerentes ao Estado Democrático de Direito.

O conceito de crença, por sua vez, integra e é conexo ao de mito: não há mito sem crença. A crença é condição de efetividade do mito, que só produz efeitos no meio social se as pessoas acreditam (ou acreditaram) nele.     A palavra “crença” identifica “o fato de acreditar-se em uma coisa ou em uma pessoa”.[3] Etimologicamente, aproxima-se da crendice, ou da superstição. Não raro apresenta-se como sinônimo de fé, de “confiança absoluta (em alguém ou em algo)”.

Do ponto de vista epistemológico, a crença revela estado da consciência, condição psicológica, que se caracteriza pela convicção relativa ao acerto de uma ideia. Na crença, existe a convicção, a certeza, de que determinada representação de mundo do agente cognitivo corresponde à realidade. No plano conceitual, a crença é incompatível com a dúvida. Os mitos necessitam da crença que legitima um sistema de autoridade e justamente por isso, tendem a ser dogmáticos e acríticos.[4]

Outro conceito próxima do de mito é o de folclore, que significa o “conjunto de tradições, artes, conhecimentos e crenças populares de um povo ou grupo transmitido oralmente”[5] ou mesmo a “cultura popular”[6]. Trata-se, sem dúvida, de fenômeno ligado à transmissão de tradição cultural e, justamente por isso exerce função socializadora[7] e, portanto, contribui para que o indivíduo internalize determinados padrões de conduta e valores de uma sociedade.

Com Gramsci, percebe-se o folclore[8] como concepção de mundo e de vida, “em grande medida implícita, de determinados estratos (determinados no tempo e no espaço) da sociedade, em contraposição (...) às concepções de mundo ‘oficiais’ (ou, em sentido mais amplo, das partes cultas das sociedades historicamente determinadas) que se sucederam no desenvolvimento histórico”.[9]

Para Gramsci, o folclore (que teria estreita relação com a ideia de “senso comum”, a que chama de “folclore filosófico”[10]) é uma concepção de mundo não elaborada, assistemática e múltipla (diversificada e estratificada) produzida e preservada pelo povo.[11]

O campo jurídico não escapou do folclore, produzido e preservado pelo povo, o que Gramsci chamou de “folclore jurídico”[12]: “uma massa de opiniões jurídicas populares, que assumem a forma de direito natural”.[13] Outrossim, também algumas noções científicas e certas opiniões, após serem descontextualizadas e em certa medida desfiguradas, “caem no domínio popular e são ‘inseridas’ no mosaico da tradição”[14] passando a constituir novos elementos para o folclore moderno[15] (inclusive o jurídico).

De igual sorte, não há como pensar as diversas etapas da vida social, bem como os fenômenos do mito, da crença e do folclore jurídico desassociados de um determinado imaginário social. Se hoje é possível falar em modernidade (ou em modernidades), isso se deve ao(s) imaginário(s) social(is) implicado(s).[16] Frise-se que, ao contrário do que se poderia pensar, o imaginário social não é um conjunto de ideias ou as ideias de determinado agrupamento social, mas “antes, o que possibilita, mediante a atribuição de sentido, às práticas de uma determinada sociedade”.[17] Assim, a existência e a aceitação de determinadas práticas autoritárias na sociedade brasileira, em especial naquilo que se convencionou chamar de justiça penal, revela um imaginário social autoritário.

Com Charles Taylor[18], entende-se por imaginário social, sobretudo, o modo “como (as pessoas) imaginam a sua existência social, como se acomodam umas às outras, como as coisas se passam entre elas e os seus congêneres, as expectações que normalmente se enfrentam, as noções e as imagens normativas mais profundas que subjazem a tais expectações”. Diz-se imaginário social porque “as pessoas ‘imaginam’ o seu ambiente social, e isso não se expressa, muitas vezes, em termos teóricos, mas se apóia em imagens, narrativas e lendas.”[19]

Assim, se a hipótese de que a sociedade brasileira privilegia a força, em detrimento do conhecimento e do diálogo como forma de resolver os conflitos oriundos da interação social[20] é verdadeira, explica-se a aceitação, tanto no plano teórico, como no âmbito do senso comum, de determinados mitos, com potencial de ampliar ou justificar o uso da força (como, por exemplo, através do poder penal). Como assinalado, o imaginário social, compreensão compartilhada, produz sentido de legitimidade.

Por fim, o mito integra o “senso comum”, da mesma forma que o mito jurídico integra o “senso comum teórico dos juristas”.[21] Por “senso comum” entende-se o conjunto de opiniões e valores que prevalecem em determinada sociedade. Trata-se de um tipo de conhecimento espontâneo (poder-se-ia dizer, vulgar) a partir daquilo que aparenta ser o correto, o normal, ou verdadeiro. As decisões da vida que tomam por base o senso comum partem de analogias, observações, crendices, mitos e generalizações, o que nem sempre garante o acerto da medida adotada.

Ao lado do senso comum, há o “senso comum teórico”; ou seja, o “complexo de significações pré-discursivas que compõem, simultânea e articuladamente, o imaginário gnoseológico das ciências humanas e de seu contorno epistemológico”.[22] Esse sentido comum teórico, como bem explica Warat[23], precisa ser entendido como uma racionalidade subjacente, que opera sobre os discursos de verdade das ciências humanas. Esta racionalidade tem múltiplos modos de emergência (surge como comportamento/ modos de sensibilidade, de percepção e de sexualidade/ hábitos e fantasmas éticos, religiosos e gnoseológicos/ revelações estereotipadas ou preconceituosas/ dispositivos de vigilância e disciplina/ mitos, fetiches e operadores totêmicos/ etc.) e configura a instancia de pré-compreensão do conteúdo e dos efeitos dos discursos de verdade das ciências humanas, assim como também incide sobre a pré-compreensão que regula a atuação dos produtores e usuários desses discursos.

Deve-se a Luis Alberto Warat, como instrumental à sua “semiologia política do direito”,[24] a criação do conceito de “senso comum teórico dos juristas”. Como relata Lenio Luiz Streck[25], com o objetivo de “desvendar ‘as obviedades’ do óbvio, bem como a denunciar o processo de construção/produção desse tipo de discurso, Warat elaborou um precioso conceito – o sentido comum teórico dos juristas – que vem a ser a maneira pela qual a dogmática jurídica instrumentaliza tais ‘obviedades’!”.

Assim, o senso comum teórico é o “sistema de produção da subjetividade que coloca os juristas na posição de meros consumidores dos modos instituídos da semiotização jurídica”;[26]o “conjunto de crenças, valores e justificativas por meio de disciplinas específicas, legitimadas mediante discursos produzidos pelos órgãos institucionais, tais como os parlamentos, os tribunais, as escolas de direito, as associações profissionais e a administração pública”.[27]

De fato, o ator jurídico encontra-se “fortemente influenciado por uma constelação de representações, imagens, preconceitos, crenças, ficções, hábitos de censura enunciativa, metáforas, estereótipos e normas éticas que governam e disciplinam anonimamente seus atos de decisão e enunciação”[28]e essas representações (“costumes intelectuais”), produtos de subjetivação, servem como instrumentos de controle social, na medida em que, aceitas como verdades, ocultam o componente político/ideológico do processo judicial e também os interesses que determinam as políticas criminais.

Para entender a funcionalidade do senso comum teórico, faz-se necessário perceber a função mistificadora da ortodoxia epistemológica, que atua na redução das significações a meros conceitos. Essa estratégia (poder-se-ia dizer “metafísica”) de dissimulação leva à redução da complexidade dos fenômenos e produz uma “démarche conceitual que procura colocar, fora de dúvidas e fora da política, a fala da Ciência”.[29] Todavia, como bem ressaltou Warat[30], a diferença entre doxa e episteme, na qual epistemólogos apostam encontrar a solução para definir o que pode, ou não, ser considerado ciência, revela-se artificial: impossível opor o conhecimento científico à ideologia; na chamada “ciência do direito” manifestam-se representações ideológicas e metafísicas. O senso comum teórico bem exemplifica a “episteme convertida em doxa”, ou melhor, o “emprego estratégico dos conceitos na práxis jurídica, ou, dito de outra forma, a utilização dos resultados do trabalho epistemológico como uma nova instância da doxa”. [31]

Os mitos e o folclore jurídico integram o senso comum teórico, que produz uma racionalidade que se adapta a preconceitos, crenças, conceitos metafísicos, noções apoiadas em opiniões, visões normalizadoras das relações de poder, em suma, uma racionalidade que, ao mesmo tempo, constitui e se adapta às relações simbólicas de dominação.[32] Assim, revela-se necessário desvelar os mitos, o folclore e as crenças autoritárias como condição à criação de uma visão de mundo comprometida com a democracia (e, portanto, com o respeito aos direitos fundamentais). Sem alterar a pré-compreensão dos intérpretes, o direito continuará a servir à dominação do outro e à mantenção do status quo.

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casara  

Rubens Casara é Juiz de Direito do TJRJ, doutor em direito, mestre em Ciências Penais, professor universitário, membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do Corpo Freudiano.

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Referências:

[2] Nesse sentido: LIGUORI, Guido. Roteiros para Gramsci; trad. Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007, p. 92.

[3] Segundo a definição do Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

[4] Autoridade aqui empregada em sentido weberiano (WEBER, Max.Conceitos básicos de sociologia; trad. Rubens Eduardo Frias e Gerard Delaunay. São Paulo: Centauro: 2002, p. 53-56). Com razão, Weber aponta que, hoje, “a forma mais comum de legitimidade é a crença na legalidade” (WEBER, Max.Conceitos básicos de sociologia; trad. Rubens Eduardo Frias e Gerard Delaunay. São Paulo: Centauro: 2002, p. 64), embora reconheça que, em regra, a aceitação de uma autoridade “é quase invariavelmente determinada por uma combinação de motivos, tais como o interesse próprio, ou uma mistura composta de aderência à tradição e uma crença na legalidade” (WEBER, Max.Conceitos básicos de sociologia; trad. Rubens Eduardo Frias e Gerard Delaunay. São Paulo: Centauro: 2002, p. 65).

[5] Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p. 348.

[6] Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p. 348.

[7] Cf. FERNANDES, Florestan. O folclore em questão. São Paulo: Hucitec, 1989.

[8] Interessante a relação traçada por Gramsci entre o folclore e o direito natural (GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, volume 6; trad. Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 136-138).

[9] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, volume 6; trad. Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 133.

[10] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, volume 6; trad. Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 133.

[11] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, volume 6; trad. Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 134.

[12] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, volume 6; trad. Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 138.

[13] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, volume 6; trad. Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 138.

[14] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, volume 6; trad. Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 134.

[15] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, volume 6; trad. Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 134.

[16] Cf. TAYLOR, Charles. Imaginários sociais modernos; Artur Morão. Lisboa: Pilares, 2010, p. 11.

[17] TAYLOR, Charles. Imaginários sociais modernos; Artur Morão. Lisboa: Pilares, 2010, p. 11.

[18] TAYLOR, Charles. Imaginários sociais modernos; Artur Morão. Lisboa: Pilares, 2010, p. 31.

[19] TAYLOR, Charles. Imaginários sociais modernos; Artur Morão. Lisboa: Pilares, 2010, p. 31.

[20] Sobre a natureza e as raízes autoritárias da sociedade brasileira: CASARA, Rubens R Interpretação retrospectiva: sociedade brasileira e processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

[21] WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In: Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 27-34; WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito: interpretação da lei: temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1994, p. 13.

[22] WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 2002, p. 71.

[23] WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 2002, p. 72.

[24] WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In: Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 29.

[25] STRECK, Lenio Luiz. A revelação das “obviedades” do sentido comum e o sentido (in)comum das ‘obviedades’ reveladas. In: O poder das metáforas: homenagem aos 35 anos de docência de Luis Alberto Warat; org. José Alcebíades de Oliveira Junior. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 53.

[26] WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 2002, p. 69.

[27] STRECK, Lenio Luiz. A revelação das “obviedades” do sentido comum e o sentido (in)comum das ‘obviedades’ reveladas. In: O poder das metáforas: homenagem aos 35 anos de docência de Luis Alberto Warat; org. José Alcebíades de Oliveira Junior. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 55.

[28] WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito: interpretação da lei: temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1994, p. 13.

[29] WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In: Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 28.

[30] WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In: Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 30.

[31] WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In: Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 31.

[32] Cf. WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 2002, p. 75.

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