O ser humano vive mergulhado numa realidade simbólica. E é isso que nos diferencia dos demais seres; ou seja, nossa capacidade criativa de imaginação, de criar narrativas, de mergulhar num universo linguístico que constitui nosso modo de viver, estabelecendo relações sociais a partir disso. É nessa dimensão humana que surgem os "mitos".
No senso comum, mito significa ilusão, mentira, engano, superstição, tendo a ideia de algo falso. Essa visão reducionista não contempla o universo complexo dos mitos, que são ressignificados, nos estudos da mitologia, literatura, antropologia, história, psicanálise etc. Entretanto, apesar da dificuldade de definição, o antropólogo Everardo Rocha afirma que, na perspectiva da antropologia social, o "mito é capaz de revelar o pensamento de uma sociedade, a sua concepção de existência e das relações que os homens devem manter entre si e com o mundo que os cerca". E, para além dessa perspectiva dos "mitos", temos a mitologia política. No Brasil, figuras políticas, tais como Getúlio Vargas e Lula, ainda têm forte apelo mitológico.
Hoje, a verbalização entusiasmada do "mito" é capturada por eleitores de uma figura política com projeção nacional recente. "Mito, mito, mito!". Assim o candidato à presidência, Jair Messias Bolsonaro, é recebido por fãs, em aeroportos, solenidades, encontros e nas ruas. Num processo inverso ao "desencantamento do mundo" (expressão weberiana), vemos nascer, no pior e mais distorcido sentido do termo, um encantamento mágico e ritualístico de veneração ao mito político Bolsonaro, mais conhecido como "Bolsomito".
Esse sedutor e perigoso encantamento mítico ocorre por causa de um sentimento generalizado de descrença e negação da política. Não é fácil para a população brasileira acordar quase todos os dias com um novo escândalo de corrupção nos noticiários. E, também, com a saúde, educação, moradia, o transporte e vários outros setores públicos sucateados. Como acreditar na política? Como sair dessa crise? A falta de horizonte político é morada dos oportunistas e anda de mãos dadas com a tentação de ruptura do pacto social (o "contrato" social que, talvez, minimize as chances de nos matarmos mutuamente).
Nesse sentido, as crises potencializam delírios, paranoias e medos. E isso repercute no labirinto psíquico e interno das pessoas, pois elas se sentem fragilizadas e vulneráveis. Nesse vácuo político, as pessoas sentem necessidade de buscar uma crença, praticar um ato de fé, produzir um "encantamento", de modo a magificar a esperança política. As pessoas ficam bastante suscetíveis àquilo que o historiador francês, Raoul Girardet, chama de "efervescência mitológica", conforme lembra o também historiador André Azevedo da Fonseca.
Esse campo é fértil para a fabricação de salvadores da pátria e demagogos profissionais, formando uma magia política reconfortante. O discurso fácil, que reduz a complexidade do mundo, tem forte apelo emotivo: bandido bom é bandido morto; o cidadão de bem tem que se armar; o Estado tem que ser cristão e as minorias que se curvem; fora comunismo e ideologia de gênero etc.. O imaginário social fica refém da manipulação discursiva que elabora frases prontas e acabadas, sem qualquer reflexão crítica. Não é à toa o comportamento de torcida de futebol de parte dos eleitores de Bolsonaro.
Um dos principais alimentos retóricos desse salvacionismo político é o discurso histriônico de "combate" à corrupção. Na história brasileira, basta nos lembrarmos da vassourinha (Jânio Quadros), do caçador de marajás (Fernando Collor), e de seus respectivos destinos. Sempre é bom acender o farol da desconfiança com políticos excessivamente moralistas. Por isso é que, quando se encontra uma pessoa muito desequilibrada na defesa de algo, pode ser que essa pessoa esteja tentando esconder ou camuflar a deficiência ou a falta desse "algo".
O psicanalista Walter Trinca, nos estudos sobre a inveja, diz que "na comparação com o 'outro', o invejoso se sente incapaz e impotente, por isso ele quer remover a fonte de sua infelicidade, que é o 'outro" com quem ele se compara. [...] Na inveja, o ódio ao outro toma conta da mente e impede a presença da autorrejeição. Com isso, o invejoso consegue preservar um pouco de sua própria validade e de sua autoestima". Psicanaliticamente, talvez o mesmo raciocínio se aplique ao político excessivamente moralista; isto é, ele age de forma descontrolada para disfarçar sua própria imoralidade e evitar o sentimento de autorrejeição, conseguindo preservar falsamente sua mitologia política perante o público. E, retornando a Bolsonaro, é moral receber auxílio-moradia no valor de quase 4 mil reais, por mês, tendo casa própria, e, ao mesmo tempo, criticar a abrangência do programa Bolsa Família, que tem média de menos de 200 reais mensais por família?
Então, ao invés de torcer o nariz para o crescimento do fenômeno social Bolsonaro, é necessário compreendermos como essa mitologia política foi gestada, ou, nas palavras do filósofo Moysés Pinto Neto, é "preciso entender para desativar". Nesse sentido, a filósofa Márcia Tiburi afirma que "é a sociedade do espetáculo, como campo de relações mediadas por imagens, como capitalização da imagem, que dá as condições de possibilidade do ridículo político".
O espetáculo dos gritos de "mito", nos aeroportos, ajuda-nos a entender essa performance mitológica que o desgaste da política nos legou. É o político de estimação, sendo confeccionado com todos os holofotes de popstar. Eleitores são metamorfoseados em fã-clube.
Desse modo, o problema do mito na política é a cegueira ideológica que essa espetacularização gera, pois a narração mítica trabalha com um ideal de perfeição em que, se não se admitem erros, defeitos e críticas, não há dialética. O mito está heroificado, ou seja, o local de fala é inabalável. Essa é a perspectiva "mitológica" de Bolsonaro. Então, cuidado, pois a chance de frustração é enorme. A história é fértil em exemplos decepcionantes.
Por outro lado, política é complexidade, contradição, conflito, desconstrução, problematização, decisão etc. Política não deve operar na lógica enviesada da torcida de futebol e nem deve ficar refém de "encantamentos" mágicos que subtraem sua verdadeira função – que é a mediação de interesses diferentes e a tomada de decisões racionais, necessárias para harmonizar esses opostos.
Por fim, Joseph Campbell diz que "os mitos servem para nos conduzir a um tipo de consciência que é espiritual". O mito também tem uma linda função de encantamento do mundo, no melhor sentido do termo, bem como de mergulho no imaginário de mares desconhecidos (como exemplo: a mitologia egípcia, grega, romana, africana etc.). Não esqueçamos que foi o mito de Eros e Psiquê que fundou a Psicologia, conforme nos fala o psicanalista Christian Dunker. Daí, a sua importância.
Assim, o mito não pode servir de para-choque fantasioso para blindar políticos populistas, demagogos e pseudo salvadores da pátria. Por isso é importante perceber que a mitologia política, em torno de Bolsonaro, nasceu no caldo de desespero e desesperança política. Mas, o sentido de "mito", nesse contexto, é claro: ilusão, mentira ou farsa. Enfim, não podemos cair, novamente, nas armadilhas de uma tragédia anunciada. O timoneiro da embarcação política não pode ser um aventureiro.
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