Por Vera Regina Pereira de Andrade - 16/05/2016*
“As únicas coisas eternas são as nuvens...”
Mário Quintana
“Se afasto do meu jardim os obstáculos que impedem o sol e a água de fertilizar a terra, logo surgirão plantas de cuja existência eu sequer suspeitava. Da mesma forma, o desparecimento do sistema punitivo estatal abrirá, num convívio mais sadio e mais dinâmico, os caminhos de uma nova justiça.”
Louk Hulsman
1. Entre o passado e o presente: a perspectiva do olhar
Mário Quintana, o poeta, com a leveza expressiva que lhe é peculiar, disse que “As únicas coisas eternas são as nuvens...”; sociólogos nos dizem que a eternidade das instituições é proporcional à sua funcionalidade; historiadores nos dizem da historicidade das instituições e, portanto, de sua contingência e provisoriedade. Nenhum método punitivo, nenhum sistema penal na história, veio para ficar e ficou, e de nenhum se pôde dizer, com Vinícius de Moraes, que “seja eterno enquanto dure”, pois esta eternidade (a pena) é violência e dor.
É precisamente para esta dimensão, de mudança e permanência, que, de alguma maneira somos remetidos, ao enfrentar o tema Direito Penal mínimo e abolicionismo penal. E o objetivo central da minha abordagem será ilustrar um pouco a imensa complexidade em que o tema[1] está imerso, e os cruzamentos possíveis entre abolicionismo e minimalismo e, ainda eficientismo penal, questionando alguns lugares comuns ou topois deste debate, como a corriqueira e mal colocada oposição entre minimalismo e abolicionismo. E o farei apontando para algumas necesssidades que julgo básicas, para fundamentar algumas teses ou argumentos nucleares.
2. Necessidade de buscar a diferença e, portanto, de pluralizar
Tese: É necessário, em se tratando de abolicionismo e minimalismo, situar o lugar da fala, ou seja, de que abolicionismo e minimalismo se fala
É que “o” abolicionismo e “o” minimalismo, no singular, não existem. Existem diferentes abolicionismos[2] e minimalismos, e a primeira tarefa é tentar compreendê-los.
2.1 O abolicionismo
2.1.1 O abolicionismo como perspectiva teórica e como movimento social: a dupla via do abolicionismo da academia à rua – práxis
Inicialmente, há que se referir a dupla via abolicionista, enquanto perspectiva teórica e movimento social, eis que o abolicionismo suscitou, desde o início, a relação entre teoria e prática e, rompendo com os muros acadêmicos, aparece, simultaneamente, como teorização e militância social e, portanto, como práxis.
- O abolicionismo como movimento social
Uma das características mais comuns de seus líderes é a de terem fundado grupos de ação ou de pressão contra o sistema penal e de haverem levado adiante movimentos ou organismos com participação de técnicos, presos, liberados, familiares e simpatizantes, isto é, pessoas com alguma experiência prática no campo da criminalização. Foucault fundou o Grupo de Informação sobre os cárceres ( Groupe d’ Information sur les Prisons)
- Hulsman iniciou a Liga Coorhhert, a qual, entre outras ações, apresentava todos os anos um pressuposto alternativo para o Ministério da Justiça. Mathiesen fundou o KROM (1969) norueguês, abreviatura del Norsk forening for Kriminal reform ( Associação norueguesa para a reforma penal) e seus contrapontos escandinavos são o KRUM ( Suécia, 1966) e o KRIM (Dinamarca e Finlândia, 1967) organizações que, sob amparo dos projetos abolicionistas, declaram como objetivo estratégico a abolição do sistema carcerário. Existem também na Inglaterra (RAP - radicais alternativas à prisão) e encontram defensores inclusive nos Estados Unidos da América . (FOLTER, 1989, p. 59, . SCHEERER, 1989, p. 20 e LARRAURI, 1987, p. 95)[3]
- O abolicionismo como perspectiva teórica: variantes
Enquanto perspectiva teórica, existem diferentes tipos de abolicionismos, com diferentes fundamentações metodológicas para a abolição, a saber, entre seus principais protagonistas:
- a variante estruturalista do filósofo e historiador francês Michael Foucault;
- a variante materialista de orientação marxista, do sociólogo norueguês Thomas Mathiesen;
- a variante fenomenológica do criminólogo holandês Louk Hulsman e poderia ser acrescentada ainda a variante fenomenológico-historicista de Nils Christie. Outros protagonistas importantes da perspectiva teórica abolicionista são Sebastian Scheerer (Alemanha), e Heinz Steinert (Áustria) (Zaffaroni,1991, p. 98)
Nesta esteira, o abolicionismo já foi caracterizado por “antiplatonismo”, precisamente para designar que inexiste uma “ essência “ do abolicionismo, ou uma teoria totalizadora abstrata, que abarque todos os aspectos de suas distintas variantes.[4]
Não partilhando de uma total coincidência de pressupostos,[5] os abolicionistas também debatem questões chaves como o objeto e os caminhos da abolição, ou seja, sua extensão, métodos e táticas, bem como seu impacto na sociedade.[6]
2.2 O minimalismo
O Minimalismo também nasce bifurcado entre modelos teóricos e reformas práticas; entre a dimensão teorética e a pragmática.
2.2.1 O Minimalismo como perspectiva teórica e como reforma penal ou minimalismo reformista
- Minimalismo como perspectiva teórica
Enquanto perspectiva teórica o minimalismo apresenta profunda heterogeneidade, e estamos, também, perante diferentes minimalismos. Há minimalismos como meios para o abolicinismo, que são diferentes de minimalismos como fins em si mesmos, e de minimalismos reformistas. Entre os modelos teóricos minimalistas mais expressivos estão o do fillósofo e criminólogo italiano Alessandro Baratta, (de base interacionista-materialista) o do penalista e criminólogo argentino Eugenio Raúl Zaffaroni (de base interacionista, foucaudiana e latino-americanista) e o do filósofo e penalista italiano Luigi Ferrajoli (de base liberal iluminista). Também aqui predomina a diferente fundamentação.
- Minimalismo como reforma penal ou minimalismo reformista
Trata-se do movimento reformista em curso que, sob o signo despenalizador do princípio da intervenção mínima, do uso da prisão como última ratio e da busca de penas alternativas a ela (com base no binômios criminalidade grave /pena de prisão x criminalidade leve/penas alternativas), desenvolve-se desde a década 80 do século XX e, no Brasil, a partir da reforma penal e penitenciária de 1984, com a introdução das penas alternativas ( Leis 7.209 e 7.210/84) e culmina na atual lei das penas alternativas ( Lei 9.714/98), passando pela implantação dos juizados especiais criminais estaduais ( Lei 9.099/95)para tratar “dos crimes de menor potencial ofensivo” .[7] Regra geral, estas reformas têm se caracterizado, segundo a lógica do sistema penal, por uma “eficácia invertida”, contribuindo, paradoxalmente, para ampliar o controle social e relegitimar o sistema penal.
Vou me ocupar do abolicionismo e do minimalismo como perspectiva teórica, principalmente.
3. Necessidade de contextualizar: quando?
E para tanto é necessário situar o contexto no qual emerge e a partir do qual adquirem significação: tal é o contexto de crise de legitimidade ou deslegitimação dos sistemas penais.
Abolicionismo e minimalismo (sucedidos depois pelo eficientismo, que será chamado pelo que significa e ressignifica neste debate) são, desta forma, as matrizes que passam a ocupar o cenário do controle social e das políticas criminais nas sociedades capitalistas[8] a partir da década de 70 do século XX. O contexto, portanto, em que emergem, é o da deslegitimação dos sistemas penais que então tem lugar como resultado de um amplo espectro de desconstruções teóricas[9] e práticas (fatos), a que Stanley Cohen denominou “impulso desestruturador”, em cujo centro se encontra a consolidação do paradigma da reação ou controle social na forma de uma revolução de paradigmas em Criminologia).
Co-constituindo e respondento à deslegitimação, da qual são criadores e critaturas, enquanto o abolicionismo protagoniza a sua abolição e substituição por formas alternativas de resolução de conflitos, o Minimalismo defende, associado ou não à utopia abolicionista, sua máxima contração.
4. Necessidade de situar: o que é
4.1 O objeto da abolição e da minimização
O objeto da abolição ou minimização (como também de estudo) não é o Direito Penal (que é a programação normativa e tecnológica do exercício de poder dos juristas), mas o sistema penal em que se institucionaliza o poder punitivo do Estado e sua complexa fenomenologia a que os abolicionistas chamam de “organização cultural do sistema de justiça criminal” e que inclui tanto a engenharia quanto a cultura punitiva , tanto a máquina quanto sua interação com a sociedade, de modo que se o sistema é, formal e instrumentalmente, o “outro” , informal, difusa e perifericamente somos todos Nós ( que o reproduzimos, simbolicamente).
Por sistema penal entende-se, portanto, neste contexto, a totalidade das instituições que operacionalizam o controle penal( Parlamento, Polícia, Ministério Público, Justiça, Prisão) a totalidade das Leis, teorias e categorias cognitivas (Direitos+ ciências e políticas criminais) que programam e legitimam, ideologicamente, a sua atuação , e seus vínculos com a mecânica de controle social global ( mídia, escola,Universidade), na construção e reprodução da cultura e do senso comum punitivo que se enraiza , muito fortalecidamente, dentro de cada um de nós, na forma de microssistemas penais.
O abolicionismo, valorizando sobremaneira esta dimensão cultural e simbólica será, em grande medida, um grande esforço por captar as práticas discursivas do sistema penal. (DE FOLTER, 1989, p. 58)
4.2 O retrato da deslegitimação ou crise (estrutural) de legitimidade
Por que o sistema está deslegitimado? A deslegitimaçâo, explicitada na teoria e na prática (obervação empírica)constitui, antes de mais nada a radical demonstração de que o sistema penal está nú, pelo desvelamento de suas múltiplas incapacidades; ela explicita a inteira nudez do sistema penal e particularmente prisão, reduzida que está a espaço de neutralização e de extermínio indireto.
Entender a deslegitimação é entender que o sistema penal está nu, que todas as máscaras caíram e que ele agora exerce, abertamente, sua função real , mas é entender, também, que, pela via da nudez, uma nova e mais perigosa relegitimação está em curso, e que se apropria de outras práticas discursivas da sociedade tecnológica, em detrimento do discurso científico que operava sua legitimação histórica, a saber: o espetáculo midiático e dramatúrgico o o medo do inimigo criminalidade que ele constrói em escala massiva.
Assim é possível compor o retrato da deslegitimação com argumentos concorrentes das desconstruções abolicionistas e minimalistas:
a) O sistema penal vigente constitui uma herança da doutrina escolástica medieval, assentada no maniqueísmo (bem x mal) e numa visão expiatória da pena como castigo pelo mal, opondo, numa relação adversarial, autor e vítima, e mantendo a sociedade nesta relação polarizadora;[10]
b) a marca do sistema penal é a “eficácia invertida” (ANDRADE, 2003a e 2003b), ou seja, a contradição entre funções declaradas ou promessas que não cumpre, e funções reais que cumpre sem declarar; que cumpriu em silêncio embora hoje desnudadas;
c) É, portanto, estruturalmente incapaz de cumprir as funções que legitimam sua existência, a saber, proteger bens jurídicos, combater e prevenir a criminalidade, através das funções da pena (intimidando potenciais criminosos, castigando e ressocializando os condenados), e fornecendo segurança jurídica aos acusados e segurança pública à sociedade. E não pode porque sua função real é construir seletivamente a criminalidade e a função real da prisão (violência institucional) é “fabricar os criminosos” (teses que, desde Michel Foucault até a Criminologia da reação social e crítica e o abolicionismo se afirmaram como irreversíveis);
d) além de funcionar seletivamente - criminalizando os baixos estratos sociais e reproduzindo as desigualdades sociais, o sistema penal engendra mais problemas do que aqueles que se propõe a resolver, sendo produtor de sofrimentos desnecessários (estéreis) que são distribuídos socialmente de modo injusto, com o agravante dos seus altos custos sociais e do autêntico mercado do controle do crime que, em torno de si, estrutura;
e) Apesar da extensão dos danos que provoca o sistema penal “só atua sobre um número reduzidíssimo de casos” (ZAFFARONI, 19991, p.106) como revelam, p.ex. as cifras ocultas: a impunidade é a regra, a criminalização a exceção, confirmando que a intervenção mais intensiva do sistema penal na sociedade é simbólica e não a instrumental: é a ilusão de segurança jurídica!;
f) Mais que um sistema de proteção de direitos é um sistema de violação de direitos humanos, violando todos os princípios da sua programação. Na América Latina a deslegitimação é proveniente dos próprios fatos é o fato empírico mais deslegitimante é a morte (fatos);
g) o sistema penal rouba o conflito às vítimas, não escuta as vítimas, não protege as pessoas mas o próprio sistema, não resolve nem previne os conflitos e não apresenta efeito positivo algum sobre as pessoas envolvidas nos conflitos (não pode ser considerado, diferentemente de outras como a justiça civil, como um modelo de “ solução de conflitos;
h) é um sistema sumamente difícil de ser mantido sobre controle e
i) não é uma resposta legítima a situações-problema, mas apresenta as características de um problema público (HULSMAN, 1993,P. 197); h)sendo ele próprio um problema, deve passar por um processo de abolição.[11]
4.3 A abolição
Ainda que a abolição reconheça níveis macro e micro mais ou menos acentuados nos diferentes abolicionistas, por valorizarem a dimensão comunicacional e simbólica do sistema penal , estão de acordo em que abolição não significa pura e simplemente abolir as instituições formais de controle, mas abolir a cultura punitiva, superar a organização “cultural” e ideológica do sistema penal, a começar pela própria linguagem e pelo conteúdo das categorias estereotipadoras e estigmatizantes (crime, autor, vítima, criminoso, criminalidade, gravidade, periculosidade, política criminal, etc), que tecem, cotidiamente, o fio desta organização (pois tem plena consciência de que de nada adianta criar novas instituições ou travestir novas categorias cognitivas com conteúdos punitivos ).
Na síntese de Hulsman (1997, p.212) “A justiça criminal existe em quase todos nós, assim como em algumas áreas do planeta o ‘ preconceito de gênero’ e o ‘preconceito racial’ existem em quase todos. A abolição é, assim, em primeiro lugar, a abolição da justiça criminal em nós mesmos: mudar percepções, atitudes e comportamentos.”
Trata-se de desconstruir toda uma semântica própria da discursividade penal e, sem reticências, de abolir a instituição da prisão, substituindo-a, no próprio processo de transformação cultural e institucional, por outras formas de controle.[12] E nestas outras formas de controle o leque é amplo e o universo riquíssmo. Os abolicionistas validam muitas táticas, intra e extrasistêmicas, desde processos de descriminalização legal, judicial, ministerial, despenalização, transferência de conflitos para outros campos do Direito, como civil e administrativo, modelos conciliatórios (mediação penal de conflitos, conciliação cara a cara), terapêuticos, indenizatórios, pedagógicos; leque ilustrado por Louk Hulsman (19991,p.99-100) p. ex, na conhecida metáfora dos cinco estudantes.
O abolicionismo, portanto, e isto deve ficar claro, não implica a ausência de controle social, “não pretende renunciar à solução dos conflitos que devem ser resolvidos; apenas, quase todos os seus autores parecem propor uma reconstrução dos vínculos solidários de simpatia horizontais ou comunitários, que permitam a solução desses conflitos sem a necessidade de apelar para o modelo punitivo (vertical e ) formalizado abstratamente.” (ZAFFARONI, 1991, p. 105)[13]
Trata-se de ultrapassar a mera cobertura ideológica de ilusão de solução hoje simbolizada no sistema penal, para buscar, efetivamente, soluções (punirxsolucionar) deslocando o eixo tanto de espaço, do Estado para a comunidade, quanto de modelo, de uma organização cultural punitiva, burocratizada, hierarquizada, autoritária, abstrata, ritualística e estigmatizante para uma organização cultural horizontal, dialogal , democrática e local de resposta não violenta a conflitos que passa por uma comunicação não violenta.
O que fica evidente é que os abolicionismos têm atrás de si uma agenda de valores básicos – uma teleologia – a qual Louk Hulsman (19991, p.158 et seq) vem detalhando, e entre eles está o respeito à diferença e a solidariedade para com a vida (das pessoas, dos animais e da natureza) como pressupostos básicos para a sua preservação. Não se trata, apenas, de um novo humanismo, de base antropocêntrica, mas de um novo vitalismo. O abolicionismo está associado a uma outra cosmologia, de revitalização do tecido social. O abolicionismo é, neste sentido, um autêntico ícone da cidadania (individual e coletiva)
O outro aspecto fundamental é o da localidade das lutas abolicionistas, pois “ é evidente que a política abolicionista requer um modo de pensamento estratégico, cujo ponto de partida é uma situação concreta; por este motivo a ação abolicionista é sempre local”´(ZAFFARONI, 1991, p. 107)
O abolicionismo não se coaduna com as receitas totalizadoras e valoriza as lutas micro de modo que, sem correr o risco de dormir com o sistema penal e acordar sem ele, podemos exercer práticas abolicionistas cotidianamente, às vezes até sem o saber, sempre que levamos a sério a ultrapassagem do modelo punitivo e esta via, de certa maneira, co-responsabiliza a todos nós.[14]
4.4 A minimização
Os modelos minimalistas estão às voltas com a limitação da violência punitiva e com a máxima contração do sistema penal, mas também com a construção alternativa dos problemas sociais.
É possível divisar, nesta perspectiva, duas linhas: a) modelos que partem da deslegitimação do sistema penal ( concebida como uma crise estrutural de legitimidade) para o abolicionismo ou minimalismos como meio; e b) modelos que partem da deslegitimação (concebida como uma crise conjuntural de legitimidade) para a relegitimação do sistema penal ou minimalismos como fim em si mesmo.
4.4.1 Modelos que partem da deslegitimação (crise estrutural de legitimidade estrutural) para o abolicionismo – minimalismos como meio.
Os primeiros são os modelos que, partindo da aceitação da deslegitimação do sistema penal, concebida como uma crise estrutural irreversível, assumem a razão abolicionista porque não vêem possibilidade de relegitimação do sistema penal, no presente e no futuro. São minimalismos como meio, ou seja, estratégias de curto e médio prazo de transição para o abolicionismo. Tais são, entre os mais expressivos, os modelos de Alessandro Baratta e Raúl Zaffaroni.
O modelo de Baratta[15] é um modelo contextual e aberto que se estrutura sobre a razão abolicionista e o minimalismo como tática a médio e curto prazo. Delineado como Política criminal alternativa em seu clássico “Criminologia crítica e Crítica do Direito Penal”, continuado em seus “Princípios do direito penal mínimo: para uma teoria dos direitos humanos como objeto e limite da lei penal”, culmina com o modelo do “Direito Penal da Constituição” e do “Garantismo positivo”, cuja continuidade foi sepultada com sua morte, em maio de 2002, no apogeu de um exuberante protagonismo na história da Criminologia Ocidental.
O modelo de ZAFFARONI (1991, p 106), denominado “Realismo marginal latinoamericano” foi enunciado sobretudo em seu também clássico “Em busca das penas perdidas” (em resposta e em homenagem latino-americana ao clássico Penas perdidas, de Louk Hulsman).[16]
4.4.2 Modelos que partem da deslegitimação (crise conjuntural de legitimidade) para a relegitimação: minimalismo como fim.
- O modelo minimalista denominado garantismo, de Luigi Ferrajoli, representativo da segunda linha enunciada e exposto em eu clássico “Direito e Razão”, parte da deslegitimação do sistema penal, mas acredita que ele possa ser relegitimado, e o minimalismo é apresentado como fim em si mesmo – um direito penal mínimo para uma sociedade futura.
Enquanto o abolicionismo põe em relevo os custos do sistema penal, o Direito Penal mínimo de Ferrajoli centra-se nos custos potenciais de uma anarquia punitiva, sustentando que o Direito penal mínimo estaria legitimado pela necessidade de proteger, a um só tempo, as garantias dos ‘desviantes’ e ‘ não desviantes’.
Diante do exposto, quero salientar a necessidade de buscar a intersecção e, portanto, de reunir.
5. Necessidade de buscar a intersecção e, portanto, de reunir
Tese: A oposição abolicionismo x minimalismo e o correlato posicionamento a favor ou contra é equivocado e, até certo ponto, uma falsa questão. [17]
É que abolicionismo e minimalismo não podem ser encerrados numa dicotomia ou bipolarização estática, pois os minimalismos teoréticos, partindo da deslegitimação, não são bipolares, mas complementares ou contraditórios. E, assim, se dialetizam com os abolicionismos, seja porque os modelos incorporam a razão abolicionista (Alessandro Baratta e Raúl Zaffaroni) e a ela são reconduzidos, taticamente; seja porque instauram a polêmica, ou seja, a antítese dialética em relação a ela (Ferrajoli) , o que desemboca no plano da argumentação.
De outra parte, ainda no campo das idéias, posicionar-se pelos modelos minimalistas que são comprometidos com o abolicionismo ignorando este compromisso é inconseqüente perante os modelos e relegitimador perante o sistema penal. Não é conseqüente sustentar como fim minimalismos que se propõem como meios. O minimalismo de Ferrajoli, ao contrário, se propõe como fim, e neste sentido polemiza com o abolicionismo, e de certo modo contribuiu para vulgarizar a oposição abolicionismo x garantismo, que não tem lugar quando se abre o leque minimalista; quando se tem por referência outros modelos e outros pressupostos analíticos.
No campo da prática, no entanto, abolicionismos e minimalismos oferecem ferramentas de trabalho preciosíssimas para ser apropriadas cotidianamente, na prática do sistema, em todos os níveis, e na militância societária, para conter violência e proteger direitos humanos, aqui e agora, relativamente a todas as ações e decisões do sistema, mas também para avançar.
E, considerando que as lutas abolicionistas são sempre locais, multiplicam-se as possibilidades de ações e decisões abolicionistas utilizando-se os instrumentais abolicionistas e minimalistas nesta direção, sob o próprio crivo da Constituição e da cidadania. As obras dos abolicionistas está cheia de relatos, de base antropológica e etnográfica, nesta direção.
Um exemplo: utilizados o instrumental abolicionista e minimalista, especialmente os princípios minimalistas de Alessandro Baratta, associados aos princípios constitucionais de liberdade, seria humanamente inadimissível a criminalização de uso e tráfico de (algumas) drogas, e o genocídio doloroso provocado por esta criminalização.
6. Necessidade de confrontar abolicionismo e eficientismo para resignificar os minimalismos: bipolaridade e pendularismo
Tese: A antítese bipolar do abolicionismo não é o minimalismo, mas o eficientismo penal, e o rumo da política criminal contemporânea que ele protagoniza associado, paradoxalmente, ao minimalismo reformista, que é, em definitivo, um minimalismo como fim.
De fato, o que está em curso na era da globalização neoliberal, não é a hegemonia de práticas minimalistas e abolicionistas, porém a mais gigantesca expansão e relegitimação do sistema penal orquestrada pelo eficientismo penal (ou “ Lei e ordem”), a partir de uma leitura da crise do sistema como crise conjuntural de eficiência. Como o sistema penal está nú , como a comprovação de sua “eficácia invertida” opera-se pela mera observação da realidade, a defesa oficial do sistema consiste justamente em apresentar a sua crise como uma crise de eficiência, ou seja, em atribuí-la a distorções conjunturais e de operacionalização do poder punitivo, negandose, solenemente, a sua deslegitimação.[18]
O discurso oficial da “ Lei e Ordem” proclama, desta forma, que se o sistema não funciona, o que equivale a argumentar, se não combate eficientemente a criminalidade, é porque não é suficientemente repressivo. É necessário, portanto, manda a “Lei e a Ordem”, em suas diversas materializações públicas e legislativas, criminalizar mais, penalizar mais, aumentar os aparatos policiais, judiciários, e penitenciários. É necessário incrementar mais e mais a engenharia e a cultura punitiva, fechar cada vez mais a prisão, e suprimir cada vez mais as garantias penais e processuais básicas, rasgando, cotidianamente, a Constituição e o ideal republicano.De última, a prisão retorna à prima ratio[19]
Com efeito, na passagem da década de 80 para a década de 90, o furor internacionalista do minimalismo viu-se cruzado pelo fogo simbólico dos Movimentos de Lei e Ordem, com a recepção, progressiva e hegemônica,de norte a sul do capitalismo, da matriz norte-americana do eficientismo, então globalizado.
O barulho mideático dos “sucessos” no “combate à criminalidade” das Políticas de Tolerância Zero implantadas nos Estados Unidos, sobretudo pelo Prefeito Rudolf Giuliani, de Nova York, ecoou em solo tupiniquim com vertiginosa sedução. Numa sociedade zelosa por encontrar respostas relegitimantes para o eleito problema número 1 da sociedade (a segurança pública contra o máximo inimigo interno criminalidade), o brado norte-americano da “solução” demarcou uma intensa corrida institucional para a clonagegem do combate restaurador do paraíso perdido. Nossos governantes, secretários de segurança pública, ministros e, sobretudo policiais, migraram em busca de cursos, palestras e estágios, na mesma intensidade que a ideologia de Lei e Ordem e suas “janelas quebradas” emigraram para a América Latina em intensa colonização doutrinária, replicando, com nova metodologia, a doutrinação da ideologia da segurança nacional, agora vertida em segurança pública. Consumidores ávidos por segurança pública e privada consomem vorazmente o espetáculo mediático do eficientismo penal, o show teledramatúrgico de sangue e lágrimas, como se, do lado das vítimas, o salvacionismo ancorasse e pudesse ancorar, no braço protetor do sistema penal.
Do governo e o Parlamento à Academia, pois os Manuais de Direito Penal e Criminologia não ficaram, em absoluto, à margem deste processo, as demonstrações do hino à Intolerância 100%, naturalmente contra a criminalidade violenta de rua, se mostraram implacáveis. É o momento em que a demanda por segurança pública através do sistema penal e das Políticas criminais passa a colonizar a pauta dos partidos políticos, de todos os matizes ideológicos, realizando a poderosa intersecção da esquerda e da direita punitiva nos confins de um mercado eleitoral avidamente consumidor de criminalização primária (produção de leis penais). Diluindo, portanto, ideologias partidárias, o hino à intolerância faz também seus reféns minimalismos reformistas, cujas reformas, ao invés de minimizar, tem ampliado, sucessivamente, o sistema penal e o controle social.
A crise do sistema penal nesta era da globalização neoliberal se complexifica: sem deixar de ser uma crise crescentemente aguda de legitimidade, passa a se associar a uma crise de expansão; expansão que é também, relembrando Foucault, o seu sucesso.
É possível, por esta via, resignificar os minimalismos; apontar fronteiras móveis onde parece edificar-se muros. E ainda que não seja possível fundamentá-la, é possível enunciar aqui, por esta via, a seguinte tese: Enquanto o minimalismo teórico crítico tem se dialetizado com o abolicionismo, o minimalismo pragmático reformista tem se dialetizado com o eficientismo e relegitimado, paradoxalmente, a expansão do sistema penal.E isto significa que os diferentes minimalismos ( teóricos e reformistas) são pendulares, apresentando diferentes potencialidades de apropriação, pela razão abolicionista ou pela razão eficientista; para fins transformadores ou conservadores. Daí resultam combinatórias, pares explicitados ou silenciados.
O dilema do nosso tempo não é, portanto, a escolha entre minimalismo e abolicionismo, mas a concorrência, absolutamente desleal, entre a totalizadora colonização do eficientismo e a aversão ao abolicionismo, mediados pelo pretenso equilíbrio prudente de minimalismos de híbrida identidade.[20]
É urgente tomar partido com clareza uma clareza capaz de tocar a vida, porque é vital desemaranhar e agir por dentro dos labirintos do controle penal.
Se é pela permanência do sistema que concluímos, podemos retornar ao ponto do qual partimos: à máxima sociológica de que a eternidade do sistema tem o tempo de sua funcionalidade. Mas como esta eternidade é violência e dor, a responsabilidade pela mudança, que reconhece níveis macroestruturais e microculturais e políticos profundos, não é apenas do “Outro”, sujeito ou Instituição, é de todos nós, e se trata de um autêntico problema da relação entre cidadania e poder; problema que está no coração desta XIX Conferência Nacional dos Advogados.
Notas e Referências:
* O presente artigo foi originalmente publicado na Revista Seqüência, nº 52, p. 163-182, jul. 2006. Divulgação no Empório do Direito autorizada pela autora.
[1] É também um dos temas enfrentados com mais intensa passionalidade: o abolicionismo, pela aversão , quando não satanização, e o minimalismo, pela atração, definindo o campo majoritário dos simpatizantes.
[2] Há que se distinguir entre abolicionismo em sentido lato e estrito e que, em qualquer temporalidade, no passado ou no presente, não fala uma só voz. O abolicionismo a que me refiro aqui, é o “ abolicionismo em sentido mais amplo quando, não somente uma parte do sistema de justiça penal, mas o sistema em seu conjunto é considerado como um problema social em si mesmo e, portanto, a abolição de todo sistema aparece como única solução adequada para este problema. ” ( DE FOLTER, 1989, P.58) Trata-se do “abolicionismo radical do sistema penal, ou seja, sua radical substituição por outras instâncias de solução de conflitos, que surge nas duas últimas décadas como resultado da crítica sociológica ao sistema penal (ZAFFARONI, 1991, p.97). E neste sentido difere de outros abolicionismos em sentido estrito, historicamente existentes, como a abolição da pena de morte e da escravidão.
ZAFFARONI (1991,p. 98) afirma que “O abolicionismo representa a mais original e radical proposta político-criminal dos últimos anos, a ponto de ter seu mérito reconhecido até mesmo por seus mais severos críticos. “ E no mesmo sentido DE FOLTER (1989, p. 58) afirma tratar-se do “desafio mais radical no âmbito desta nova teoria criminológica ”.
[3] Não restam dúvidas acerca da existência de grupos que tem como meta a abolição do sistema carcerário: “Os criminólogos conhecem a atuação destes grupos. Sabem que a abolição do trabalho forçado como pena se atribui ao KROM com a mesma unanimidade com que se atribui a este pequeno grupo a evitação da instalação de casas de arresto para jovens. Têm notícias sobre as atividades de Michel Foucault no grupo abolicionista francês que se opõe à existência de cárceres e até talvez saibam algo do KRAK alemão e seus enfrentamentos com a repressão no âmbito da justiça penal.” (SCHEERER, 1989, p. 20)
[4] Daí a feliz metáfora de DE FOLTER, 1989, p.58): “Podemos dizer que o abolicionismo é a bandeira sob a qual navegam barcos de distintos tamanhos transportando distintas quantidades de explosivos. Enquanto a maneira em que deverão explodir não há uma única idéia. ”
[5] Embora o abolicionismo não tenha permanecido confinado ao norte da Europa, especialmente à escandinávia, (Dinamarca, Finlândia, Suécia, Noruega, Islândia)sua principal matriz e local de origem de seus mais notórios representantes - sem dúvida lá floresceu, nos últimos anos, uma rica e exuberante literatura (ZAFFARONI, 1991, P. 97-8) com impacto global. “A grande variedade de literatura que surgiu deste contexto social trata temas que vão desde as estratégias para uma reforma radical até as questões filosóficas concernentes à culpa e à pena. ” ( SCHEREER, 1989, p.20)
[6] Enquanto alguns vêem ao sistema de justiça penal como supérfluo e desnecessário, podendo abolir-se sem gerar uma crise do sistema ( Hulsman), outros crêem que é a pedra angular da repressão cuja abolição implicaria necessariamente a transformação da sociedade como um todo.” (SCHEERER, 1989,p. 20)
[7] Assim, por exemplo, percebe-se que um continuum discursivo nas 3 grandes reformas minimalistas é dado pelo topoi da pena: o argumento da falência da prisão, da superlotação, da necessidade de minimizar o seu impacto nocivo, de não estigmatizar...mas quando aplicada, que o seja com rigor, da economia para o Estado, da necessidade de otimizar seu cumprimento, etc.). A tônica aqui é minimizar e diversificar a pena.
[8] Se quisermos enquadrá-las no marco das disciplinas oficiais e suas categorias cognitivas tradicionais – precisamente do que o abolicinismo quer se libertar - podemos dizer que ambas perspectiva, incompletas porque contextuais, apresentam uma dimensão criminológica desconstrutora, consubstanciada na crítica contundente e consistente ao sistema penal e à sociedade punitiva - e uma dimensão político-criminal ], que daquela deriva e somente adquire sentido desde o seu interior.
[9] Em outro lugar, referi-me a cinco desconstruções convergentes: interacionista, materialista, foucaudiana, abolicionista e feminista (ANDRADE, 2003a)
[10] “(...) a organização cultural de referência separa artificialmente certos indivíduos de seua ambiência particular e isola pessoas que se sentem vitimadas das pessoas que são consideradas, neste cenário específico, como ‘ agressores’. Neste sentido, a organização cultural d ajustiça criminal cria ‘indivíduos fictícios’ e uma interação ‘ fictícia’ entre eles.” Associa-se a isto o focalização na “ atribuição de culpa”. (HULSMAN, 1993,p. 153)
[11] Dste inventário, Louk Hulsman advoga três razões fundamentais para abolir o sistema penal: 1) causa sofrimentos desnecessários distribuídos socialmente de modo injusto; 2) não apresenta efeito positivo algum sobre as pessoas envolvidas nos conflitos e 3) é extremamente difícil de ser mantido sob controle. Zaffaroni (1991,p.107-108) argumentando sobre a pertinência do abolicionismo para a América Latina afirma: “As três razões apontadas por Hulsman para destacar a total deslegitimação do sistema penal são de uma evidência inegável em nossa região marginal: as mortes, privações de liberdade e vitimizações que recaem sobre os setores majoritários e carentes de nossas populações; a total indiferença pelas vítimas dos órgãos que exercem o poder penal; a perda completa de controle sobre as agências executivas dos sistemas penais e a crescente minimização da intervençao dos órgãos judiciários; e a prática de delitos gravíssimos por parte de integrantes dos órgãos penais. Por outro lado, a experiência latino-americana, demonstrando a incapacidade dos setores penais para resolver os conflitos gerados pela poluição, pelo white collar, pelos crimes econômicos e de trânsito, afasta qualquer pretensão neste sentido. Até agora, em relação aos (...) crimes do poder existe uma inoperância geral de nossos sistemas penais que, nos poucos casos emque atua é instrumentalizado como meio de eliminação competitiva, deixando vulneráveis os menos poderosos. (...) “últiplos são os casos demonstrativos de que, em nossa região marginal, os poderosos só são vulneráveis ao sistema penal quando, em uma luta que se processa na cúpula hegemônica, colidem com outro poder maior que consegue retirar-lhes a cobertura de invulnerabilidade. “ ( ZAFFARONI, 1991, p.108)
[12] Trata-se da abolição das atividades da máquina e de sua recepção na sociedade Daí, por exemplo, Louk Hulsman falar em abolicionismo acadêmico e como movimento social.
[13] “ Christie é explicito sobre esse aspecto, especialmente quando, a partir das experiências comunitárias dinamarquesas, observa que, se estabelecidos estes vínculos que nossa civilização industrial ou tecnocientífica verticalizante destrói (algo parecido com o que Freud chamava ‘ vínculo libidinal ‘ ) , a pena produziria uma dor a ser repartida entre todos e, por isto, haveria uma tendência para sua abolição. Experiências latino-americanas impostas pela necessidade e pela marginalização, nas quais o sistema penal não atua, têm também gerado um sistema próprio de resolução de conflitos. ” (ZAFFARONI, 19991,p.104)
[14] A afirmação de Louk Hulsman (1993,p.143) neste sentido, que costuma irritar seus críticos é a seguinte: “Não quero propor um programa no lugar da justiça criminal e não lembro de tê-lo feito. Acredito que quando você propõe um tal programa como acadêmico, você permanece dentro da organização cultural da justiça criminal.
[15] Esclarece-nos o próprio Baratta (1983, p. 159), quem deixou claro, já na passagem da década de 70 para a década de 80, sua posição substantivamente abolicionista: “ O princípio cardeal do modelo de uma política criminal alternativa não é a criminalização alternativa, mas a descriminalização, a mais rigorosa redução possível do sistema penal. ” “Isto não significa, convém repeti-lo, um desinteresse pelos problemas sociais ‘ objectivos’, mas uma forte relativização do momento ‘ penal ‘ ou ‘ correcional’.
“Também nada tem a ver com uma atitude de simpatia zoófila pelos desviantes desmitificada de uma vez por todas por Gouldner (...)”(BARATTA, 1983, p. 158 e 159)
E continua: “Numa política criminal alternativa, ...o momento penal só pode ter um papel relativo e, em certos casos, ‘provisório’. “A relativização do momento penal como técnica de construção e de resolução de problemas sociais significa, antes de mais nada, a sua integração numa perspectiva extra-penal mais complexa de reconstrução dos problemas em vista de uma resposta adequada e orgânica a estes.” ( BARATTA, 1983, p. 160) “ Todavia, a idéia reguladora de uma política criminal alternativa permanece a da ultrapassagem do sistema penal. Orientar a reforma sobre esta idéia reguladora não significa renunciar a reformas possíveis, mas significa, é preciso sublinhá-lo mais uma vez, escolher e avaliar as reformas na base da sua possibilidade de transformar radicalmente o sistema no interesse das classes subalternas. Noutras ocasiões(...) tentei definir, em linhas gerais, o modelo de uma política alternativa que utilizaria como idéia reguladora ou ‘utopia concreta’ a ultrapassagem do direito penal. Propor uma tal perspectiva não significa adiar qualquer reforma possível no presente à espera do advento, bastante longínquo ( ou talvez mesmo impossível?) de uma sociedade que saiba dispensar a pena, mas afirmar um critério para orientar e escolher a política criminal.Nas teorias radicais da política criminal, como o são as teorias ‘ abolicionistas ‘, o critério funciona no sentido de avaliar as reformas como se o seu destino pudesse ser o de ultrapassar o sistema penal tradicional e esta ultrapassagem fosse efectivamente possível.” ( BARATTA, 1983, p. 161)
“Nesse sentido, um representante dessa perspectiva radical propõe uma tática baseada na distinção estratégica entre reformas políticas (que servem para conservar o sistema na suas funções reais) e reformas negativas ( que produzem reais transformações qualitativas do sistema e servem para o ultrapassar parcialmente ) (cf Mathiesen Th., 1974)
É preciso também salientar que as perspectivas radicais de reforma deste tipo podem ser propostas e são propostas em relação com as teorias da sociedade e com os modelos de sociedade futura bastante diferentes uns dos outros e que não é possível reuni-los sob as mesmas características, excepto sob um ponto de vista estritamente formal.
Para a perspectiva ‘abolicionista’ da reforma penal encontrou Gustav Radbruch uma expressão que merece ser citada, quando escreveu que ‘ a melhor reforma do direito penal não é a sua substituição por um direito penal melhor, mas a sua substituição por qualquer coisa de melhor.’ Do ponto de vista formal esta expressão pode servir para qualificar todas as teorias que pertencem à perspectiva ‘abolicionista’, todos os projectos de políticas e práticas que não hesitam em ultrapassar a linha separadora entre sistemas penais alternativos e alternativas do sistema penal. ” (BARATTA, 1983, p. 162)
“Todavia, a idéia reguladora de uma política criminal alternativa permanece a da ultrapassagem do sistema penal. Orientar a reforma sobre esta idéia reguladora não significa renunciar a reformas possíveis, mas sinifica, é preciso sublinhá-lo mais uma vez, escolher e avaliar as reformas na base da sua possibilidade de transformar radicalmente o sistema”
[16] Esclarece-nos também o próprio ZAFFARONI (1991,p 106) “Em nossa opinião, o direito penal mínimo é, de maneira inquestionável, uma proposta a ser apoiada por todos os que deselegitimam o sistema penal, não como meta insuperável e, sim, como passagem ou trânsito para o abolicionismo, por mais inalcançável que este hoje pareça; ou seja, como um momento do ‘unfinished’’ de Mathiesen e não como um objetivo ‘fechado’ ou ‘aberto’. O sistema penal parece estar deslegitimado tanto em termos empíricos quanto preceptivos, uma vez que não vemos obstáculos à concepção de uma estrutura social na qual seja desnecessário o sistema punitivo abstrato e formal, tal como o demonstra a experiência histórica e antropológica. ” “Deste ângulo, o direito penal mínimo apresentar-se-ia como um momento do caminho abolicionista.”(ZAFFARONI ,1991, p.105)
[17] A respeito, trata também Zaffaroni ( 19991,p. 112) de reduzir as distância entre abolicionismo e minimalismo , asseverando que nossa posição marginal na rede planetária de poder inadimite perda de tempo “ em detalhes neste debate que pode levar ao imobilismo ou à demora de uma ação que, eticamente, não podemos adiar. Perdermo-mos nesta discussão entre posições que não estão distantes umas das outras seria ainda mais absurdo do que imaginar a hipótese de que nossos libertadores tivessem retardado as guerras de independência do continente até chegarem a um acordo sobre a posterior adoção da forma republicana ou monárquica constitucional de governo, unitária ou federativa, com ou sem autonomia municipal, etc. É evidente que, se tivessem se comportado de modo tão absurdo, o juízo histórico sobre eles teria sido bem diverso.”
[18] Cf. ZAFFARONI, BATISTA, 2003, p. 68.
[19] Trata-se do fortalecimento do estado penal e da sociedade punitiva, sob o influxo do mercado e do poder mediático. Se, perante um sistema penal considerado deslegitimado, as perspectivas teóricas abolicionistas e minimalistas somente podem sustentar a necessidade de sua ultrapassagem e, no caminho, de sua máxima contração, perante um sistema penal considerado ineficiente, é necessário, ao revés, incrementar todas as suas dimensões, em busca da eficiência perdida(?), maximizando-o. O sistema penal é, no marco da globalização neoliberal, sistema penal máximo x cidadania mímima. A respeito ver ANDRADE, 2003b.
[20] O fato é que “ a maioria das pessoas ainda acredita que o sistema de justiça penal é uma resposta razoável ao crime – e talvez a melhor. A maioria das pessoas pensa que seria tolice abandonar isso sem favor de alguns ideais vagos. Na opinião deles, tal estratégia – uma vez utilizada – resultaria mais provavelmente em uma catástrofe social ou ao menos emuma sociedade na qual poucas pessoas gostariam de viver. ( SCHEERER, 1997:219).
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. Vera Regina Pereira de Andrade é professora de Criminologia na graduação e na pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina, Pós-Doutora em Criminologia e Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires e pela Universidade Federal do Paraná e doutora e mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina..
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