MIGNONNES  

07/11/2020

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

O Filme MIGNONNES dirigido por Maimouna Doucoure, em sua estreia como diretora, conta a história de AMY, uma menina senegalesa, com 11 anos de idade, que reside com sua Família na França.

Pelo fato de ter nascido mulher, Amy se vê predestinada a seguir uma vida de submissão, presa às tradições e aos costumes rígidos da religião muçulmana, seguida pela Família. Ela guarda dentro de si, porém, um enorme senso de não pertencimento à realidade na qual vive inserida. Não se identifica com os rituais religiosos, não se identifica com a forma de vestir e de viver das mulheres que a rodeiam.

Dentro desse ambiente de opressão, Amy fica muito abalada ao presenciar, escondida embaixo da cama da mãe, seu choro sofrido, ao saber que o marido irá se casar com outra mulher, e, pior, que virá morar com a nova esposa no mesmo apartamento em que residem. Ao mesmo tempo, a mãe é quase que “ forçada “ a deixar seus sentimentos de lado, e anulando-se por completo como pessoa, seguindo a tradição, comunica o fato às outras mulheres da comunidade, registrando ainda a sua “ alegria “ em receber o casal.

Tentando fugir dessa realidade, bem como dos sentimentos de revolta e de tristeza que a capturam, ela se junta à um grupo de meninas de sua escola, que formam um grupo de dança: MIGNONNES (Lindinhas na tradução).

O convívio com as meninas simplesmente deixa Amy fascinada, e reforça sua percepção, ainda que infantil, de que não há como ser feliz no ambiente onde vive. Acima de tudo, o convívio com as meninas traz um pouco de felicidade à dura rotina da menina, que vive envolvida com as tarefas de casa e com os cuidados com o irmão menor.

A entrada no tal grupo de meninas não é tarefa fácil para Amy (há bullying e desentendimentos entre elas) e sua aceitação pelas outras é algo que precisa ser conquistado.

Começa então o ensaio da coreografia pelo grupo. Apesar de Amy parecer bem mais infantil do que as outras meninas, é ela mesma quem sugere uma coreografia sensual, que envolve dedinho na boca, muito rebolado e movimentos que causam certa estranheza e incômodo para quem as assiste.

O filme foi repudiado e a diretora acusada de incentivar a sexualização precoce de meninas, a pedofilia e a pornografia infantil.

O que falar do filme?

Penso que a proibição ou à censura da história, a enxurrada de críticas negativas ao filme ou atitudes neste mesmo tom, não são os melhores caminhos para se comentar sobre a polêmica gerada.

Todo o imbróglio que macula o filme tem lá a sua razão de ser, já que em um primeiro olhar poderia incentivar a erotização do corpo infantil.  A prostituição de meninas com tenra idade, a comercialização de pornografia infantil, a erotização precoce, são problemas concretos, e infelizmente bem reais e contemporâneos. Mas ao mesmo tempo, MIGNONNES, e acho que aqui está o seu mérito, mostra Amy como uma menina que, na verdade, assim como as amigas da mesma idade, não têm a real consciência do próprio corpo, do que é o sexo, e do que tudo isto significa.

A dança parece surgir sem maldade ou mesmo sem qualquer consciência por parte de Amy e das meninas sobre o que é certo ou errado, sobre o que admissível e sobre o que é não recomendável para aquela faixa etária. É preciso lembrar que estamos falando de meninas com 11 anos de idade. Todos os limites precisam ser ensinados.

Há cenas no filme que parecem corroborar essa assertiva: a primeira menstruação de Amy, a cena que mostra o momento em que as meninas encontram um preservativo usado e não sabem o que fazer com o mesmo..... Existe, por certo, um saber coletivo que paira no ar sobre o conceito de sexualidade, um frisson, mas tudo muito fluido, muito insuficiente, cercado de mistérios, enigmas e fantasias. Muitas fantasias.

É confortável assistir ao filme e ver a coreografia encenada pelas meninas, as Mignonnes? É certo que pode trazer algum desconforto. São crianças.

Mas o mais desconfortável mesmo é saber que, por falta de informação, pobreza extrema, fome e outros problemas sociais que colocam muitas meninas em situação de vulnerabilidade extrema, as taxas de gravidez na adolescência em nosso País são tão altas. É desolador saber que a prostituição infantil é caso de saúde pública em nosso País, notadamente em alguns Estados da Federação. É também ruim demais saber dos casos de abuso sexual infantil que são silenciados em muitas Famílias (de todas as classes sociais).

O acesso à informação é fundamental. As iniciativas contrárias à abordagem sobre gênero, ideologia de gênero e orientação sexual, no currículo escolar, sob o argumento de que isso ofenderia a moral e os bons costumes da Família brasileira tradicional não trazem a melhor solução para tratar de mazelas sociais tão importantes que podem atingir meninos e meninas, notadamente os mais carentes.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento das ADPFs 461,465 e 600, declarou, por unanimidade, inconstitucionais trechos das Leis municipais 3.468/2015, de Paranaguá (PR), e 2.243/2016, de Palmas (TO), e da Lei Orgânica de Londrina (PR), alterada pela Emenda 55/2018, que proibiam o ensino sobre gênero e orientação sexual. Na avaliação do relator das ações, ministro Barroso, que já havia suspendido liminarmente os dispositivos, “ as normas comprometem o acesso de crianças, adolescentes e jovens a conteúdos relevantes, pertinentes à sua vida íntima e social, em desrespeito à doutrina da proteção integral”.

Para o relator, a educação assegurada pela Constituição de 1988 é voltada a promover o pleno desenvolvimento da pessoa, a sua capacitação para a cidadania e o desenvolvimento humanístico do país e é fundada no pluralismo de ideias e na liberdade de aprender e de ensinar, com o propósito de habilitar o indivíduo para os mais diversos âmbitos da vida como ser humano, cidadão e profissional.

Barroso salientou que as leis municipais caminham na contramão desses valores. “Não tratar de gênero e de orientação sexual no âmbito do ensino não suprime o gênero e a orientação sexual da experiência humana”, afirmou. “Apenas contribui para a desinformação das crianças e dos jovens a respeito de tais temas e para a perpetuação de estigmas e do sofrimento que deles decorre” [1].

O filme está disponível na NETFLIX, e, além de uma história sensível e bem costurada, traz um sinal de alerta sobre o perigo que a opressão religiosa familiar, a falta de informação, de acolhimento e de proteção à infância podem trazer.

  

Notas e Referências

[1]Notícia disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=450392&fbclid=IwAR1pM2pmPB2gBT4TjQaRmhyGkQcEs3TEIHpOYCyq77OZsKUQyepfdhs9Fpc>, acesso em 13 /10/2020.

 

Imagem Ilustrativa do Post: cinema // Foto de: Adrien Olichon  // Sem alterações

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