Mídia, poder e delinquência

30/12/2016

Por Marcus Alan de Melo Gomes - 30/12/2016

As sociedades ocidentais democráticas estão alicerçadas na liberdade de expressão, da qual a liberdade de informar e de ser informado constitui aspecto inarredável. Não há quem viva sem informação, seja ela cultural, econômica, política ou de entretenimento. E nesse contexto, a mídia converte-se, por vocação histórica inclusive, no grande responsável pelo ato de informar.

Luhmann concluiu, de forma precisa, que “aquilo que sabemos sobre nossa sociedade, ou mesmo sobre o mundo no qual vivemos, o sabemos pelos meios de comunicação”.[1] Essa constatação implica reconhecer, como consequência, que o ato de se comunicar há muito deixou de ser um fenômeno que envolve apenas dois sujeitos. A complexidade das sociedades contemporâneas impôs a massificação dos mecanismos comunicacionais. Uma massificação de meios (jornais, rádio, televisão, internet etc.), mas também de mensagens, de emissores e de destinatários dessas mensagens. Vivemos tempos de comunicação de massa, em que a massa é constituída por “uma multidão de pessoas sem identidade reconhecível, incapazes de se expressar como indivíduos”.[2] Há, nesse universo, um paradoxo: muito embora estejam próximas fisicamente, nele as pessoas se relacionam com grande distância afetiva. Cada qual erige seu mundo pessoal, e assim se aliena para o que está fora dele. A comunicação de massa representa, então, o processo pelo qual a mídia produz e difunde informação homogênea para um universo amplo de destinatários, num fluxo único em que a mensagem tem um valor simbólico atribuído pelo seu emissor.

A imprensa deve ao ideário iluminista o papel de mediadora do processo comunicativo social. Aliás, ela foi modelada para esse papel pelas revoluções liberais burguesas, que lhe outorgaram o encargo de fiscalizar o poder político, de ser o watchdog (cão de guarda) da democracia. Essa destinação dada à imprensa na modernidade, associada à relevância jurídica que a liberdade de expressão ganhou nos dois últimos séculos,[3] permite-nos dizer que ela exerce poder: o poder de vigiar quem tem o poder político.

Mas essa perspectiva política do papel da imprensa suscita hoje algumas indagações. Será que funciona assim mesmo? Será que a imprensa está, como regra, preocupada em fiscalizar o exercício do poder por ser este o seu encargo e a sua contribuição para a democracia? Ou será que essa se tornou apenas a justificativa para que outros objetivos, especialmente de natureza mercantil, sejam perseguidos?[4]

É induvidoso que os meios de comunicação transitam hoje por todas as esferas do poder político. Interferem nas ações do Executivo e do Legislativo, bem como nas decisões do Judiciário. E não o fazem involuntariamente ou por acidente. A capacidade de formar opiniões pela informação transformou o fiscal em guia. Quem deveria limitar, segundo balizas legais e orientações éticas, passou, em muitos casos, a verdadeiramente conduzir o exercício do poder. Leis são promulgadas em virtude da pressão provocada pela cobertura – não raras vezes, estereotipada e preconceituosa – que os meios de comunicação reservam a determinados fatos, sobretudo no âmbito da delinquência. Atos de gestão pública são executados para afastar a atenção da mídia, ou para seduzi-la (o que significa seduzir também o público). Decisões judiciais são proferidas para não contrariar as expectativas criadas e alimentadas pelo discurso dos meios de comunicação. E assim, aquele que deveria estar fora do poder, para vigiá-lo, passa a exercê-lo, de modo sutil e dissimulado.

O ideal iluminista da imprensa guardiã da democracia, que servia aos interesses e necessidades da cidadania, foi substituído pela essência da indústria cultural (Adorno e Horkheimer), em que o indivíduo não precisa de informação, pois não é tratado como cidadão, mas sim de mercadoria, como consumidor que é. A perspectiva de uma mídia manipuladora é inquietante, porém real. Ela manipula o público não apenas por criar a necessidade de informação, já que isso é inerente a uma sociedade de consumo. Manipula, também e sobretudo, pelo conteúdo das notícias que veicula, frequentemente superficial, alienante e idôneo para submeter sem que o subjugado se dê conta desse processo. A informação é preparada como uma isca atrativa, que o público fisga sem pensar, incapaz de perceber que, escondido atrás de notícias e imagens de intenso apelo emocional, está o anzol que o impedirá de fazer outras escolhas, de tomar o caminho da própria convicção. A informação é oferecida nas prateleiras midiáticas (jornais, televisão, rádio, internet etc.) em embalagens muito parecidas, o que limita as opções do seu consumidor. E todo aquele que não pode eleger, está sendo, seguramente, dominado, conduzido. Manipular, no contexto da mídia, significa exatamente isso: dominar pela informação mercantilizada. E esse é um dado inegável de nossa realidade.

A mídia sobrevive da audiência da massa, que, por sua vez, é o atrativo para os anunciantes. Quanto mais audiência, mais visibilidade para o meio. E quanto maior essa visibilidade, maior será a capacidade do veículo de oferecer produtos. Esse é um ciclo que se autoalimenta. Para tornar-se competitivo no mercado, é preciso, portanto, proporcionar visibilidade. Os meios de comunicação, inclusive determinados segmentos da imprensa, realizam isso por meio do sensacionalismo.

O apelo ao emocional sempre existiu no universo midiático. Todavia, costumava ficar restrito a um segmento panfletário da imprensa, que sobrevivia da exploração do estranho, do bizarro. Esse quadro foi modificado pela influência que a televisão passou a ter como mídia de informação. Surgiu, então, o que Ramonet chama de hiperemoção.[5] É ela que promove a identificação do imaginário com o real, do subjetivo com o objetivo, do interior humano com o exterior mundano. Assim, aquilo que se sente com a notícia torna-se verdadeiro, pois se não fosse, não se sentiria. E o emocional se converte, desse modo, na realidade.

O sensacionalismo é uma fábrica de imagens falsas, uma perversão da indústria cultural de Adorno e Horkheimer. Para promovê-lo, os meios de comunicação teatralizam os fatos, alimentam o dramático. É como se a imagem vencesse a palavra. Institui-se a ditadura do visual, mas do visual que dissimula.

A indústria cultural desnudou a transformação da arte em negócio, da sensibilidade em técnica. O sensacionalismo parece fazer o caminho inverso: transforma um negócio em “arte”. Sim, “arte” – entre aspas mesmo – já que o universo sensacionalista é construído para apresentar um espetáculo, em que há astros, diretores, protagonistas, cenário, e uma história dramática. Só que “arte” de péssimos gosto e qualidade. Tem-se a impressão de que ao final de alguns programas e telejornais serão exibidos os créditos, com aquela trilha sonora de fundo. O que deveria ser uma atividade técnica – a elaboração e veiculação de notícias – transforma-se num mecanismo de manipulação de opiniões pela dramatização.

O noticiário sobre a delinquência se vale de clichês e de estereótipos para criar heróis e vilões, verdadeiros ícones do bem e do mal que emergem do “mundo cão”. É inevitável para o consumidor deste tipo de informação se identificar com algum desses personagens. A violência que está nas imagens passa, então, para o plano do imaginário, e produz reflexos nos padrões de comportamento na vida real.[6] Isso não quer dizer que as pessoas simplesmente imitem a violência veiculada pelos meios de comunicação. O processo é, de certa forma, inverso: em vez de agirem com violência, as pessoas simplesmente passam a tolerá-la. Não adotam uma postura ativa, mas passiva, de aceitação. Imagens que, há alguns anos, nos causariam indignação, são assistidas quase que com indiferença. Assim, “vamos nos acostumando à violência, como se fosse a única linguagem eficiente para lidar com a diferença: vamos achando normal que, na ficção, todos os conflitos terminem com a eliminação ou a violação do corpo do outro”.[7]

Dessa forma, a violência nos meios de comunicação conforma o mundo do seu público. Em muitas pessoas, essa visão distorcida pela mídia faz nascer um sentimento de insegurança, a sensação de que, a qualquer momento, seremos nós as próximas “vítimas”. Melhor então que as vítimas sejam “eles”, aqueles que aparecem nos meios de comunicação, e em especial na televisão, protagonizando a violência. Aos criminosos, a punição severa e exemplar, a prisão perpétua, a pena de morte, se possível. Qualquer meio justifica o fim retributivo. O medo move a massa, que não quer justiça (de que adianta a justiça?), quer proteção (vingança inconsciente?). E para se proteger, nada mais eficaz do que a inocuização, a eliminação pura e simples daquele que representa o perigo. Se não se pode matar o “criminoso” – já que a constituição não permite (!) – então que seja ele encarcerado indefinidamente. O discurso retributivista vai, assim, sendo alimentado pela violência sensacionalista nos meios de comunicação. E a repressão penal continua a ser usada como o principal instrumento desse discurso que elege o inimigo e o estigmatiza. Hoje, ele é o “outro”, no sentido lacaniano; amanhã, quem sabe, seremos nós. Aí, talvez, a mídia se disponha a tratar a delinquência não como uma mercadoria, para criar espetáculos de apelo à audiência, em que há bandidos e mocinhos, protagonistas e coadjuvantes. Aí, talvez, se compreenda que a intervenção penal não é a solução para as mazelas sociais. E então a liberdade de expressão não servirá mais como justificativa para o aviltamento da dignidade humana.


Notas e Referências:

[1] A realidade dos meios de comunicação. São Paulo: Paulus, 2005. p. 15.

[2]  Carmo, Paulo Sérgio do. Sociologia e sociedade pós-industrial: uma introdução. São Paulo: Paulus, 2007. p. 119.

[3] “O direito à informação e à comunicação vem sendo proclamado como fundamental desde as primeiras declarações de direitos no século XVIII. Em vão, ao menos para as nossas tradições. Por aqui, ainda nos encontramos longe de tratar o direito à informação no nível dos demais direitos, como a educação e a saúde, o que é trágico: onde esse direito não se faz respeitar integralmente, a liberdade necessária para bem informar a sociedade não pode ser exercida plenamente (...)” (Bucci, Eugênio. A imprensa e o dever da liberdade. São Paulo: Contexto, 2009. p. 114).

[4] Carlos Sandano, sem deixar de defender a função política da imprensa, faz uma avaliação crítica e realista da crise que essa perspectiva enfrenta atualmente: “Mitificada como um dos pilares da democracia, o jornalismo pode tanto realizar a função de fiscalizar o poder quanto a de integrar classes e formar a identidade do Estado-nação. Não cabe aqui um levantamento historiográfico para saber se essa função algum dia foi cumprida, mas apontar para a crise desse mito nos dias de hoje, pois, se no contexto popular há elementos que apontem tanto para uma resistência cultural quanto para a degeneração do grotesco, na mídia impressa (ou ‘séria’) não há dúvidas quanto à palavra a ser usada para definir o momento atual. É uma crise econômica: o jornalismo perde leitores para a internet e outras formas de ‘entretenimento’. É má-crise de identidade: a tendência dos grandes grupos de comunicação em transformar tudo em espetáculo descaracteriza o conteúdo jornalístico. É uma crise profissional: assiste-se à diluição das fronteiras entre a publicidade e o jornalismo, assim como à manipulação (consciente ou inconsciente) da informação” (A informação-mercadoria do jornalismo e as novas formas de trocas culturais na sociedade globalizada. In: Coelho, Cláudio Novaes Pinto; Castro, Valdir José de (Org.). Comunicação e sociedade do espetáculo. São Paulo: Paulus, 2006. p. 66).

[5] Nas palavras desse autor: “A hiperemoção como tal – que é a outra figura característica da superinformação – sempre existiu na mídia, mas permanecia como específica dos jornais de uma certa imprensa demagógica que manejavam facilmente com o sensacional, o espetacular e o choque emocional. Ao invés, a mídia de referência apostava no rigor, na frieza conceitual, banindo o quanto possível o pathos para se manter estritamente nos fatos, nos dados, nos atos. Isto começou a modificar-se aos poucos sob a influência da mídia de informação dominante que é a televisão. O telejornal, em seu fascínio pelo ‘espetáculo do evento’, desconceitualizou a informação, imergindo-a novamente, pouco a pouco, no lodaçal do patético. Insidiosamente, estabeleceu uma espécie de nova equação informacional que poderia ser formulada desta maneira: ‘Se a emoção que vocês sentem ao ver o telejornal é verdadeira, a informação é verdadeira’. Isto deu credibilidade à idéia de que a informação – não importa que informação – sempre é simplificável, redutível, capaz de converter-se em espetáculo de massa e decompor-se num certo número de segmentos-emoções” (RAMONET, Ignacio. A tirania da comunicação. Petrópolis/RJ: Vozes, 2007. p. 21-22).

[6]  Kehl, Maria Rita. Televisão e violência do imaginário. In: Bucci, Eugênio; Kehl, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 88.

[7] Idem, p. 89.


marcus-alan-de-melo-gomes. Marcus Alan de Melo Gomes é Pós-Doutor em Direito e Democracia pela Universidade de Coimbra. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Membro Associado do Centro de Investigação sobre Crime, Justiça e Segurança, da Escola de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Professor Associado da Universidade Federal do Pará (UFPA). Juiz de Direito em Belém..


Imagem Ilustrativa do Post: media slave // Foto de: Porsche Brosseau // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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