Coluna Cautio Criminalis
1. PRIMEIRO ATO
Há uma antiga e poética cidade brasileira, bosqueada por imensas florestas sobre as quais a chuva cai torrencialmente desde tempos imemoriais, cujas árvores muito velhas deitam raízes profundas e grossas na terra irregular, e cujas folhagens, apesar de tinturadas de um verde tão escuro quanto se possa extrair de qualquer imagem difundida no imaginário público de uns arvoredos em Villefranche ou de uns largos mares de fauna romenos, são encobertas na porção mais superior por um denso nevoeiro esbranquiçado na maior parte do ano, através do qual não se enxerga senão o que a mente cria. A lei penal do Brasil, como em todo o território, lá também vige, sob a égide da mesma Constituição e sob o manto da jurisdição dos mesmos Tribunais. É o ambiente em que se passa nossa história.[1]
Era dia como qualquer outro, frio de dois a três casacos. Nossa personagem principal, a quem chamaremos Ofídio, homem de pouco patrimônio, antigo funcionário, metido a detetive-major ou a qualquer espécie de beleguim, encarregado da vigilância florestal, apropriou-se de coisa móvel da qual tinha a posse em razão do cargo, avaliada em algumas dezenas de reais, cometendo seu segundo peculato na vida. Encontrava-se à ocasião fardado, vestindo um colete à prova de balas de validade duvidosa (a etiqueta borrada indicava o ano de 2002) que, pesando cerca de 3,77kg, já lhe havia rendido uma hérnia de disco lombar que o convênio público recusara a operar. Como doía! Já se passavam cerca de dois anos desde as primeiras crises, e a coisa ia e vinha. Vez por outra (e eventualmente isto se tornava frequente) a moléstia o incapacitava, e Ofídio sequer andava, o que lhe machucava a alma, pois desde jovem sempre fora atleta. A maioria dos proventos que recebia utilizava em seu tratamento (que começava a julgar deveras ineficaz). Eram sessões de fisioterapia e acupuntura, médicos dos mais diversos, medicamentos caros, injeções diárias… Chegaram a lhe prescrever morfina, o pobre diabo!
O que sobrava dos proventos ia em comida e umas garrafas de vinho tinto aqui e acolá. Sem vinho, quem aguenta?
Corria o boato de que Ofídio procedera ao furto especial para ter com o que barganhar com um conhecido trocatintas local em favor de certa planta medicinal de efeito analgésico que costumava, à margem da lei – diziam -, mercar. Segundo consta do boato, a planta lhe podia aliviar as dores da coluna.
O primeiro peculato, de acordo com os antecedentes criminais, deu-se nas mesmas condições havia bem pouquinhos anos. Coisa móvel de pouca conversibilidade econômica pertencente ao Estado; subtração em razão da facilidade que lhe dava a função pública. Descoberto, no ato, pela Polícia local, que lavrara o flagrante e tocara o procedimento. Á época, nossa personagem se indagou se não caberia ao delegado de polícia abster-se de lavrar o auto de prisão em virtude da manifesta falta de relevância do fato, e, curioso, não hesitou em dirigir-se ao escrivão de plantão com sua dúvida.
– O doutor não faz isso não, ele prefere lavrar e o juiz vê depois… é que senão dá dor de cabeça – disse o servidor.
Com a ocorrência do segundo peculato (este no qual se centra majoritariamente o texto), Ofídio consulta-se com o mais renomado causídico da cidade, personagem a quem chamaremos Advogado, jovem sujeito antenado na jurisprudência dos Tribunais Superiores, conhecedor da ementa de todos os informativos semanais – estudava para ser Delegado e já havia chegado a duas segundas-fases, mas reprovara em ambas porque as bancas examinadoras, na correção das questões discursivas, atribuíram-lhes gabaritos arbitrários, que divergiam dos manuais e dos esquemas através dos quais estudava o direito diariamente! - e, após lhe explicar todo o caso e mencionar sua situação pessoal e o peculato que havia cometido uns anos para trás, lhe pergunta, ávido para saber o que seria de seu destino, como seria julgado.
O Advogado, antes de responder, serviu-lhe chocolate quente. O relógio já passava das dezesseis horas de uma quinta-feira muito fria, e em seu escritório não havia aquecedor. Aproveitou e serviu, também, um para si mesmo.
— Serás condenado —, diz o Advogado. ‘’É que, na hipótese, não há como aplicar a insignificância, tendo em vista que o senhor – e me desculpe – não cumpre os requisitos estabelecidos pelos Tribunais Superiores para que se exclua a tipicidade material da conduta. É que não se encontra presente a baixíssima reprovabilidade do comportamento (STF, HC 84412/SP), e também crimes considerados ínfimos, quando analisados isoladamente, mas relevantes quando em conjunto, seriam transformados pelo infrator em verdadeiro meio de vida […] e comportamentos contrários à lei penal, mesmo que insignificantes, quando constantes, devido à sua reprovabilidade, perdem a característica da bagatela e devem se submeter ao direito penal (STF, HC 112.811/SP). Ainda, incumbe ao Juízo de origem avaliar, no caso concreto, a melhor forma de assegurar a aplicação do princípio constitucional da individualização da pena, examinando a possibilidade […] do reconhecimento da atipicidade da conduta, com fundamento no princípio da bagatela (STF, HCs 123.734, 123.533 e 123.108). Isso tudo além do fato de que o princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a Administração Pública (STJ, Súmula 599), já que isso ocorre considerado o bem protegido – o Estado, a Administração Pública […] (STF, HC 118431). Sem contar, é claro, que o que se busca resguardar não é somente o ajuste patrimonial, mas a moral administrativa (STJ, REsp 1062533).
Ofídio fez menção de interromper, franzindo o sobrecenho e levando a mão direita à barba meio cobre que lhe aquecia o rosto havia décadas, mas o Advogado continuou: ‘’não sabes o senhor, que é antigo funcionário, que não se pode conceber estímulos à impunidade?[2] Deverias saber que a problemática da alegada insignificância é equacionado consideradas as circunstâncias judiciais – artigo 59 do Código Penal (STF, HC 118.431), e que deve-se avaliar a personalidade e as condições pessoais do agente (STJ, HC 285.180). Na melhor das hipóteses, a insignificância produzirá efeitos em relação à fixação do regime aberto (STF, HC135164) ou na substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos (STF, HC 137217). ‘’Ora, senhor, tu, um funcionário, não sabes que para a caracterização do fato típico – conduta considerada lesiva a determinado bem jurídico que deve ser tutelado - devem ser levados em consideração três aspectos: o formal, o subjetivo e normativo ou material; e que há certas classes de servidores públicos que representam para a sociedade confiança e segurança e, conquanto possa se afirmar a inexpressividade da lesão jurídica provocada, verifica-se alto grau de reprovabilidade na conduta do paciente, fardado, que, no seu horário de serviço, subtraiu a coisa, colocando-a dentro de seu colete à prova de balas? Nessas hipóteses, a conduta praticada não é só relevante para o Direito Penal como é absolutamente reprovável, diante da condição do paciente, de quem se exige um comportamento adequado, ou seja, dentro do que a sociedade considera correto, do ponto de vista ético e moral (STJ, HC 192.242). Além disso, o ilícito deu-se com o intuito de comprar… bom, o senhor sabe o quê. A prática reiterada de furtos para comprar drogas, independentemente do valor dos bens envolvidos, não pode ser tida como de mínima ofensividade (STF, 107.733).
— Não entendo — se opusera, incrédulo, Ofídio, dois goles tomados daquele chocolate quente que parecia feito havia horas. ‘’Consta do HC84412/SP que a insignificância age no âmbito da tipicidade material! Não é isto, inclusive, que diz parcela substancial da doutrina? Que tem isto a ver com reprovabilidade da conduta? Que tem isto a ver com comportamentos em conjunto considerados? Ora, doutor, que tem a ver a insignificância com a individualização da pena?’’
— Assim são as coisas —, ouviu, mais um gole abaixo daquele chocolate.
Ofídio, pouco satisfeito, seguiu o dia.
Com o passar dos tempos, o momento de seu julgamento se aproximava, e nossa personagem, então, decidiu estudar um pouco sobre a insignificância e sobre a maneira de se portar frente a um magistrado criminal, para que melhor se defendesse da persecução penal. Ofídio, desde sua consulta desanimadora com o Advogado, não fez senão pesquisar na biblioteca jurídica da Universidade Pública do Lugar Fictício (UPLF), que era aberta à consulta do público externo desde a primeira hora do dia até o fim da tarde, onde se encontravam os mais renomados juristas da localidade, além das obras de jurisconsultos e antigos e sérios professores de direito penal e assuntos correlatos do Brasil e do planeta, todos mundialmente respeitados pela qualidade de suas produções técnicas.
A UPLF ficava próxima ao centro da cidade, que não era muito movimento, mas se constituía em um lugar aprazível, é verdade. Havia uns garotos novos circulando sempre, geralmente muito molhados das chuvas permanentes no local, agasalhados em razão do frio. Uns policiais de quem Ofídio fora amigo já o olhavam de maneira esquisita, assim como as demais pessoas da localidade, que, de acordo com o senso moral e ético compartilhado por toda a sociedade, julgavam-no má pessoa, um autêntico pária social.
— Como é que se pratica um crime? É um inapropriado, um inquerido! —, dizia, aos burburinhos, o pessoal da área.
Nossa personagem, ao final de todo o período em que passou estudando as nuances dogmáticas de seu caso, tirando dúvidas, inclusive, com os docentes da UPLF, estava nada menos que estupefato e atônito com o resultado de seus estudos.
Ofídio descobrira coisas terríveis e inimagináveis.
2. SEGUNDO ATO
Ofídio já havia sido cautelarmente afastado de suas funções, de ofício pelo magistrado competente – a quem chamaremos Juiz –, velho sujeito com algumas décadas de função e pouca simpatia pela abertura constitucional de 88, que, apesar de não haver ainda processo, entendia pela constitucionalidade clarividente (havia dúvidas na academia se ele efetivamente refletia a fundo sobre isso; os professores com quem tivera contato, segundo corre o boato, todos negam veementemente qualquer lição nesse sentido) de todos os dispositivos legais processuais que permitiam a performance ativa do juiz, ainda que ao revés da opinião do Ministério Público, sob a justificativa seguinte: ‘’a teoria geral do processo abarca o processo penal! Poder de cautela geral! Senão daqui a pouco eu não posso fazer nada! E também ninguém aguenta mais essa corrupção.’’
Frio.
Nossa personagem, nos últimos tempos, durante os estudos que fez por conta própria na UPLF, descobrira muito sobre a insignificância e sobre a dogmática penal como um todo, e pretendia se utilizar de tudo o que aprendera após horas de pesquisa quando exercesse seu direito constitucional à autodefesa (e já sabia, inclusive, que o tinha, mesmo antes de seu causídico, o Advogado, dizer-lhe). Ofídio, ainda um pouco perplexo e atônito pelas conclusões tiradas do tempo que passou na biblioteca da Universidade Púbica do Lugar Fictício, havia sido acometido por inúmeras vezes da compreensão súbita de uma grande e tenebrosa verdade: ou não se a admite no Brasil ou a insignificância não é aquilo que os Tribunais Superiores diziam que era.
Por óbvio, como não era versado nas artes jurídicas, não deixava de considerar que talvez ele estivesse interpretando tudo de maneira errada. Afinal, o Advogado lhe explicara (e seus argumentos, como visto, estavam de acordo coma jurisprudência uníssona dos Tribunais Superiores) toda a sua situação, e se tratava de um sujeito estudioso, que estudava para ser autoridade policial… De qualquer forma, algo não batia.
As anotações de Ofídio ele sistematizou uma a uma numas folhas velhas de papel catadas na Universidade (não sem alguma preocupação, entretanto, pois não sabia se também se constituiria em fato punível ou se era um comportamento insignificante), a partir do que lhe tinha dito o Advogado.
Os apontamentos, ele assim os fez:
Primeiro apontamento (i) - NÃO se requer seja baixíssima a reprovabilidade do comportamento.
A insignificância refere-se à ausência de afetação, pela inexistência de lesão ou de risco de lesão de um bem jurídico legitimamente (validamente) ligado a uma norma penal incriminadora. Embora haja (possa haver) certo desvalor do ato, simplesmente não há desvalor do resultado, não havendo, por consequência, o estabelecimento do injusto penal a ser atribuído a alguém. Desvalor de ato e de resultado são, por certo, categorias majoritariamente relacionadas à tipicidade de uma conduta. Ausente o último, não há conflitividade, e não havendo, incabível se falar em tipicidade conglobante, que é, junto com a tipicidade legal, requisito para a configuração da tipicidade penal.
É fato que a exclusão da tipicidade material, tal como se a concebe majoritariamente em doutrina, como dito, se refere a um baixo desvalor de resultado, o que descaracteriza, no âmbito da tipicidade conglobante, a conflitividade. Entretanto, é possível ir ainda mais além, e trabalhar a insignificância também pela perspectiva da ausência de desvalor da ação, analisando-a, por exemplo, no bojo da imputação objetiva e concebendo-a como uma hipótese de conduta que não cria ou incrementa de forma relevante o risco juridicamente proibido, tratando-se, assim, de uma contribuição causal irrelevante. Nessa perspectiva, ainda que o resultado possa ser desvalorado, a ação simplesmente não o é, posto irrelevante (e deve se adotar uma perspectiva dialética entre desvalor da ação e de resultado) no processo causal.
Quer-se com isso dizer que a aferição da insignificância se dá no primeiro estrato de constituição do injusto, ou seja, a tipicidade, seja no âmbito do desvalor do resultado (atrelado ao critério da conflitividade) ou, eventualmente, no âmbito do desvalor da ação (como um critério negativo de imputação objetiva pela contribuição causal irrelevante para a criação ou incremento do risco juridicamente proibido).
Em sentido diametralmente oposto, a reprovabilidade é terminologia atrelada à culpabilidade ou à punibilidade (e, diga-se de passagem, pessimamente atrelada, já que remonta às já muito desgastadas teorias de retribuição de culpabilidade da pena, carregadas de justificativas metafísicas e manchadas pela inserção, que remonta oficialmente à viagem normativa que promoveu Reinhardt Frank em 1907 na teoria do fato punível, dando azo, no contexto da normativização da culpabilidade, à inserção de um moralismo vulgarmente construído a partir de um juízo de censura e reproche dentro da dogmática penal), o que não se relaciona com a formação do injusto, mas, em verdade, com o seu desvalor ou com a consequência desse desvalor e à sua atribuição a um sujeito concreto.
Não se deve confundir o injusto com o seu desvalor (juízo que se tecerá de um objeto, e frise-se que a culpabilidade é predicado da conduta, nunca do sujeito, embora a imputabilidade, como outros de seus elementos, eventualmente, possam ser a ele meramente referidos). Atrelar a ‘’aplicação’’ (sic) – a única terminologia correta ao caso seria reconhecimento, já que nada se constitui pela ausência de um conflito, havendo mera declaração – de uma ausência de conflitividade (que é um dos requisitos do injusto) à baixa reprovação do comportamento (que é um desvalor do injusto previamente estabelecido) é uma contradição nos próprios termos. Em outras palavras, atrelar a insignificância à baixíssima reprovabilidade do comportamento, como faz o Supremo Tribunal Federal, é atrelar a existência de um sujeito gramatical à qualidade de um dos seus predicados possíveis. Um paradoxo.
Não parece que tudo quanto exposto seria impróprio sob o argumento de que a própria essência da insignificância é político-criminal. Isso é óbvio. A expressão existência de um conflito, nos termos em que aqui formulada, é a existência de um conflito penalmente relevante, propriedade à qual só se chega por decisão política, mas o raciocínio se esgota na função político-criminal do tipo, o que orienta no seguinte sentido: a relevância de um conflito se estabelece de acordo com a política criminal, mas esta análise é feita na constituição do injusto.
Não tenho maiores dúvidas de que o Supremo Tribunal Federal, ao condicionar a insignificância a qualquer critério de reprovabilidade (sic), age [i-a] de maneira manifestamente ilegal, criando hipótese não prevista em lei de perdão judicial[3]; [i-b] de maneira manifestamente voluntarista, eis que assujeita a objetividade do conflito a critérios interpretativos epistemologicamente inconstrangíveis e, por via de consequência, absolutamente autoritários; [i-c] de maneira manifestamente contrassistêmica com o paradigma garantista do atual Código; [i-d] de maneira atrasadamente contradogmática, pois ignora as revoluções que foram promovidas em toda a teoria do fato punível tanto pela teoria da imputação objetiva, um mérito atribuído em maior medida ao funcionalismo quanto pelas formulações pós-Frank de culpabilidade e, assim, acaba agindo de maneira absolutamente incoerente do ponto de vista interno da dogmática, pois se vale, sem qualquer critério objetivo, de premissas causalistas, neokantianas e finalistas conforme bem lhe agrada; [i-e] de maneira manifestamente inconstitucional, malferindo a arquitetura da tripartição dos Poderes constituídos, pois toma para si a atribuição de dizer, através do direito vigente (a sentença judicial é norma) e dos seus respectivo atos de autoridade vinculativos, o que será uma conduta ‘’socialmente reprovada’’, quase apropriando-se indevidamente (rectius: usurpando) competência de criminalização primária, matéria reservada ao Legislativo.
Segundo apontamento (ii) - A reiteração de condutas (independentemente do número) é totalmente irrelevante para a aferição da insignificância.
O fato punível é uma unidade individualizada. É um todo coerente e global. Ou um pragma típico é conflituoso e, logo, é possível se passar aos próximos momentos do processo de constituição do injusto, ou não o é, e não é assunto para direito penal, nem hoje e nem nunca, a não ser que se deseje estabelecer (novamente) um direito penal de periculosidade, e se for assim, estoquemos comida. A um porque o conceito de delito de acumulação fundado em direito penal do risco presumido e da periculosidade é impróprio e não tem nenhum cabimento em direito penal, em resumo por enfrentar barreiras intransponíveis dentro de todas as categorias do fato punível, notadamente as relativas à imputação do resultado e à culpabilidade. A dois porque a reiteração de uma conduta insignificante culmina com outra(s) conduta(s) insignificante(s), um grande nada penal. Não se somam os nadas penais, transformando-os, miraculosamente (qual o critério, aliás?) em um algo penal. Do nada, nada sai. A três porque não é papel da jurisdição, senão do legislador, conferir ou deixar de conferir incentivos ao que quer que seja, menos ainda à impunidade (sic). Ou há delito, e aplica-se o direito, ou não há, e tragam o próximo processo.
Não tenho maiores dúvidas, nessa toada, de que o Supremo Tribunal Federal, ao se debruçar sobre a reiteração de condutas não delituosas e utilizar tais critérios como norteadores do reconhecimento ou não da insignificância, age [ii-a] de maneira manifestamente ilegal, pois atribui efeitos não previstos em lei formal para a reiteração de condutas atípicas, transportando indevidamente a perspectiva e a lógica do dano acumulado do direito administrativo para o direito penal; e [ii-b] de maneira manifestamente inconstitucional, pois usurpa uma função “moldadora de cultura” do Poder Legislativo.
Terceiro apontamento (iii) - A insignificância não tem, como regra, nada a ver com individualização ou substituição da pena, menos ainda com fixação de regimes de execução.
Se, em tópicos anteriores, se demonstrou a confusão entre tipicidade e culpabilidade, neste há de se demonstrar a confusão entre tipicidade e punibilidade. A conflitividade se mostra quando, com uma conduta legalmente proibida e validamente incriminada, determinado sujeito afeta, por meio de lesão ou risco de lesão a estrutura ou a estabilidade de um bem jurídico legitimamente ligado a uma norma penal. O conflito é objetivo, e há ou não, enquanto objeto, independentemente de ser tocado pelo intérprete, que só há de reconhecê-lo ou jamais encontrá-lo. A individualização da pena opera no âmbito da consequência de um injusto. A insignificância opera no âmbito da constituição de um injusto, ou, no máximo, como um critério negativo de juízo de proporcionalidade entre os desvalores da ação e do resultado e a consequência jurídica que o ordenamento imporá ao sujeito, no âmbito da categoria da responsabilidade na culpabilidade, permeada, como já tive a oportunidade de mencionar lateralmente, pelo princípio da intervenção mínima.
Nesta última hipótese, para se graduar a proporcionalidade, não seria de todo incorreto se valer das circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal[4]. O problema é que não é por esse caminho que anda a jurisprudência. A consideração daquelas circunstâncias para o reconhecimento ou não da bagatela, no discurso dos Tribunais, relaciona-se com a insignificância que age no âmbito da tipicidade material, atrelada a uma análise de desvalor do resultado, pura e simplesmente, o que é indevido.
De novo, atrelar a existência de algo à sua consequência é um paradoxo. A lógica é que ou há um injusto atribuível e um sujeito punível, hipótese na qual a insignificância já foi descartada desde há muito (ou nem se teria injusto), e aí discute-se a individualização da pena, a substituição e os regimes de cumprimento, ou sequer há injusto, e sem injusto não há pena, menos ainda pena individualizada.
Assim, não tenho maiores dúvidas de que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, ao vincularem insignificância e individualização de pena, fazendo-o nos termos em que fazem, ou seja, se pretendendo trabalhar com a noção tradicional de bagatela, no âmbito da tipicidade, e não do juízo de proporcionalidade na categoria da responsabilidade, além de inserirem no seu núcleo critérios alta e perigosamente subjetivos como os apontados, agem [iii-a] de maneira manifestamente ilegal, criando hipóteses não previstas em lei de perdão judicial; e [iii-b] de maneira manifestamente contrassistêmica, inserindo premissas funcionalistas ad hoc em um sistema evidentemente finalista, o que não seria por si só um problema insuperável, desde que – o que não é o caso - [iii-ba] não se derrogassem descaradamente as premissas finalistas – o que também não deixa de ser um problema legal -, apenas expandindo os seus horizontes; [iii-bb] se o fizesse para maximizar as liberdades públicas, e não reduzi-las; [iii-c] de maneira dogmaticamente paradoxal, confundindo sujeitos e predicados jurídicos.
Quarto apontamento (iv) - É perfeitamente possível, ao menos em tese, a aplicação da insignificância a todo e qualquer delito contra a Administração Pública.
Viu-se que a bagatela se relaciona com a conflitividade. Se isso é verdade, é errada a Súmula 599 do Superior Tribunal de Justiça, porque que não se pode prever abstratamente e ex ante que sempre haverá conflito quando tal ou qual bem jurídico (há um bem jurídico ‘’Administração Pública’’?) estiver envolvido em uma relação. O conflito penalmente relevante se verifica (ex post facto), não se prevê (ex ante facto), salvo em desenhos geralmente caracterizados pela concepção de um Estado como um ente sui generis independente dos sujeitos que o integram (sic), como parece ter sugerido, em certa medida, algum setor do pensamento penal liberal atraído pelas noções de defesa social.
Assim, a relevância penal de um pragma típico deve ser aferida sempre após a sua ocorrência, e nunca antes, menos ainda através de enunciados jurisprudenciais cuja validade democrática é questionável.
Em síntese: não interessa somente saber se determinado sujeito deu causa a certo resultado, mas, em verdade, se o resultado foi grosseiramente conflituoso, nos termos da formulação que vimos defendendo da insignificância enquanto ausência de conflitividade (ou como contribuição irrelevante no processo causal de imputação objetiva; ou como parte de um juízo de proporcionalidade entre os desvalores de ação e de resultado no âmbito da responsabilidade) ou se há pertinência entre a causação e a zona de risco intolerável, para aqueles que enxergam a insignificância como um problema exclusivo de imputação objetiva – sem, de qualquer modo, como é evidente, retirá-la da tipicidade.
Como se não fosse o bastante, o respectivo enunciado sumular padece de um vício metodológico, tendo em vista que, de 13 precedentes que serviram de base para a edição da Súmula, 11 diziam respeito a delitos de peculato ou de peculato militar, não havendo razão para a edição de um precedente de tal jaez que diga respeito a todos os crimes contra a Administração Pública.[5]
Não tenho maiores dúvidas de que, ao editar a Súmula 599, o Superior Tribunal de Justiça age [iv-a] de maneira contradogmática, [iv-aa] ao prever um conflito por critérios apriorísticos, desconsiderando, sobretudo, que um conflito se analisa ex post e jamais ex ante; e [iv-ab] ao criar uma categoria ad hoc de ações de perigo abstrato sem qualquer criteriologia segura, também um problema de legalidade penal, permitindo que se diga, ainda, que trata-se de uma ação manifesta ilegal por desconsiderar os limites da legislação positiva e de ação manifestamente inconstitucional por usurpar competência legislativa de delimitação dos elementos e do conteúdo de uma conduta incriminada e, assim, violar o princípio da separação harmônica dos poderes políticos constituídos; além de ação manifestamente contrametodológica, por criar interpretação jurisprudencial que atenta contra o postulado hermenêutico da conformidade funcional; [iv-b] de maneira contrametodológica, ao firmar, a partir de casos muito específicos, um standard obrigatório para inúmeras outras hipóteses não contempladas na edição do precedente; [iv-c] de maneira arbitrária, ao alçar à condição de bem jurídico (e, por via de consequência, desconsiderando que essa categoria deve também ser permeada apenas por juízos negativos, juízos de limitação de poder punitivo) meras funções estatais, com as consequências perigosas mencionadas ao longo do último parágrafo; [iv-d] de maneira radicalmente perigosa, tendo em vista que, ao atrelar a criminalização de uma conduta somente à violação da norma e/ou ao desatendimento de uma expectativa normativa vinculada a um determinado papel social, prescinde das limitações da teoria do bem jurídico como obstáculos à incidência de poder de punir, desconsiderando em parte (somente na parte cômoda) o trato dogmático dessa categoria e, assim, em certa medida, atribuindo ao direito penal, à dimensão de seu discurso, uma pura função de garantia da estabilidade e da vigência do sistema normativo; [iv-e] de maneira contrassistêmica e antinormativa (no sentido de desconsiderar o ordenamento jurídico como um todo global e coerente), tendo em vista que desconsidera, por exemplo, que nem no âmbito da responsabilidade civil do direito privado se admitem os assim chamados danos hipotéticos por impossibilidade de mensuração segura e por insuficiência da pura prognose.
Quinto apontamento (v) - A motivação norteada pelo intento de comprar entorpecente para consumo próprio é absolutamente irrelevante para o reconhecimento da insignificância.
Se o fundamento jurídico dessa categoria do fato punível é o princípio da lesividade, como destacam autores como Rafael Fagundes[6] e Juarez Cirino[7], então o ponto nodal da bagatela é a afetação à estrutura ou à estabilidade de um bem jurídico total ou parcialmente de terceiro (o que chama também a noção de alteridade), pela lesão ou risco mais ou menos concreto de lesão. Significa dizer, portanto, que ou uma conduta não é salva da criminalização pelo princípio da lesividade, porque ela (e somente ela), concretamente manifestada em um conflito individualizado com início, meio e fim (um todo global e coerente, como já se assinalou há alguns parágrafos), afeta o bem jurídico em tese protegido, ou ela não o faz e, portanto, a lesividade, vista também como um fator negativo dentro do fato punível, blinda o autor da incidência do poder de punir.
Quero dizer com isso que, independentemente da motivação ‘’X’’ ou ‘’Y’’ de uma conduta, a análise da afetação de um bem jurídico é blindada disso. Se determinado agente comete peculato para saciar a sua fome e prover a subsistência de sua família; ou se o faz para comprar entorpecentes para consumo próprio (como no caso presente); ou ainda se o faz para ter suficientes recursos econômicos para financiar tráfico internacional de armas de fogo, terrorismo, lavagem transcontinental de capitais ou o que quer que seja, tal juízo é indiferente à constatação de uma afetação relevante a um bem jurídico. É óbvio, entretanto, que particulares tendências internas podem ter consequências significativas no âmbito da tipicidade, mas somente quando se constituam em um problema de adequação formal, e não de tipicidade material, seja no próprio dolo ou nos elementos subjetivos do tipo distintos do dolo, outrora (em autores neokantianos) chamados de elementos subjetivos do injusto ou elementos subjetivos da antijuridicidade[8] e (em alguns autores brasileiros) dolo específico (embora imprópria essa denominação), elementos esses que, com o advento das premissas finalistas, passam a construir definitivamente a estrutura subjetiva – não objetiva – dos tipos.
Significa, ante o exposto, que a análise de qualquer não deve ser levada em consideração quando do juízo de afetação a um bem jurídico. O máximo que se poderia realizar é, em certos processos causais nos quais considerada a insignificância como contribuição irrelevante para o a criação ou o incremento do risco proibido, utilizá-la como um vetor negativo de desvalor de ação, tornando insignificante uma conduta e não o resultado dela, circunstância que em nada se aproxima com a jurisprudência dos tribunais superiores, sobretudo porque se constitui em um vetor negativo de imputação normativa (o que é adequado dentro de uma dogmática redutora), e não um vetor positivo de causação física (impróprio pelos inúmeros motivos declinados nas premissas e na introdução do texto).
Em síntese, se a conduta, ela mesma, não manifesta no mundo uma afetação relevante ao bem jurídico contra o qual, culposa ou dolosamente se dirige, é absolutamente indiferente qualquer dado psíquico do autor. Não se tenha isso por verdade e estaremos a um passo de justificar a incidência do poder de punir sobre o mero ânimo do agente, desvinculado de qualquer conduta concreta, retornando às premissas do tipo de autor e nos agarrando-se a qualquer tipo de teoria sintomática do positivismo criminológico, o que, nem se precisa dizer, é (deve-ser) incompatível com o atual esquadro do direito brasileiro.
Além disso, se é verdade que a insignificância também se fundamenta em um juízo concreto de materialização do princípio da intervenção mínima (funcionando na etapa de criminalização secundária no âmbito da tipicidade – e já se foi visto que ele também como funcionar na responsabilidade e, por via de consequência, na culpabilidade)[9], não parece haver nada menos contrafragmentário e contrassubsidiário do que lhe impor pena, em virtude de um fato atípico, porque o indivíduo agiu motivado por um fato (ainda que típico) futuro, incerto e sancionado somente com consequências previstas no art. 28 da Lei de Drogas.
Ante todo o exposto, não tenho maiores dúvidas de que, ao negar o reconhecimento da insignificância de uma conduta baseada na motivação sob a qual ela se estrutura, os tribunais superiores agem [v-a] de maneira contraprincipiológica, eis que desconsideram alguns dos mais elementares princípios regentes de toda a teoria do fato punível; e [v-b] politicamente desastrosa, criminalizando meros estados de ânimo desvinculados de qualquer conduta materialmente típica, promovendo um típico direito penal de autor; [v-c] de maneira ilegal, ao atribuírem a elementos subjetivos do agente efeitos não previstos em lei, passando por cima, à guisa de exemplo, de toda a sistemática trazida pelos arts. 18 et. seq. do Código Penal; [v-d] de maneira manifestamente inconstitucional, ofendendo o princípio da legalidade, ao criminalizarem posturas não proibidas por lei válida (não há notícia do delito de querer comprar entorpecente ilícito ou qualquer coisa do gênero).
3. TERCEIRO ATO.
É chegado o momento do julgamento. Chovia havia horas e o céu, apesar de o relógio marcar aproximadamente a metade das dezesseis, enegrecia. Até os deuses de todas as crenças estavam a favor de nossa personagem. Odin e Thor, em Valhalla, bebiam hidromel em chifres curvados. Os santos rezavam e os anjos cantarolavam uma melodia azulada. No submundo, Hades dera permissão para que Orpheo tocasse sua lira por Ofídio. Deus sorria.
Ofídio dirigiu sozinho por muito tempo no sentido do fórum (foi de viatura em horário de serviço), e repassou mentalmente todos os pontos de todas as suas teses. Era, em fato, um rábula, mas um dos bons, e estava pronto.
Frente a frente com o Juiz, esperou ansioso pelo instante de sua oitiva. Pacientemente, quando era seu turno de falar e exercer seu direito à autodefesa, nossa personagem explicitou ao Juiz os motivos pelos quais deveria ser absolvido pela insignificância do pragma. Achou curioso o fato de que não lhe prestava o magistrado muita atenção, e em determinado momento até suspeitou de que ele olhava o celular, como quem se preocupa com outra coisa, mas prosseguiu e terminou.
Ofídio falou durante horas, e os que assistiram embasbacados, a precisão dogmática era assustadoramente certeira, e com não menos que a total certeza de que não havia ali qualquer conflito apto a lhe gerar a aplicação de uma pena, depois de expor minuciosamente todas as teses das páginas anteriores, convicto de que não precisaria de qualquer subterfúgio como a desnecessidade da pena, e que a conclusão lógica à qual o Direito levava era a sentença absolutória, bradou em conclusão, o peito aberto e a voz firme:
‘’Meu crime é imperdoável (no sentido de que não é necessário qualquer perdão)! Apliquem o Direito!’’
Ofídio foi condenado e hoje cumpre pena após o julgamento em segunda instância.
Notas e Referências
[1] A cidade é fictícia, e a sua inclusão neste texto não é senão teleologicamente dirigida a uma frustrada tentativa de suavizar, através da ambientação do leitor em um belo lugar imaginário com alguma narrativa romanceada, as críticas duras que tecerei ao Poder Judiciário.
[2] A última atualização de dados que considerei quando da publicação da primeira versão deste texto no blog JOTA (17/07/2019) dava conta de que havia, àquela época, ao menos 812.564 presos no Brasil, fora 366,5 mil mandados de prisão em aberto, segundo o Banco de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Havia, segundo o mesmo órgão e segundo o DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional, estimativa de projeção de crescimento da população carcerária à ordem de aproximadamente 8.3% ao ano.
[3] Neste particular, teço agradecimentos ao amigo de jornada Lucas da Silveira Sada (http://lattes.cnpq.br/5454940833758612), advogado, acadêmico e criminalista brilhante que, numa de nossas inúmeras e produtivas discussões, foi quem primeiro aventou a transfiguração jurisprudencial da insignificância em perdão judicial. Fruto de debate, é dele o mérito de primeiramente ter chegado a essa conclusão.
[4] Art. 59, Código Penal: O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:
[...]
[5] Devo este particular conhecimento à professora Patrícia Glioche, que ministrou, no primeiro semestre de 2019, a disciplina ‘’Direito Penal e Constituição’’, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito Penal, a nível de mestrado, da UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
[6] FAGUNDES, Rafael Pinto. A insignificância no direito penal brasileiro. 1. ed. - Rio de Janeiro: Revan, 2019. pp. 65-66.
[7] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral – 8. ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018.
[8] TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 4. ed. - São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019.
[9] FAGUNDES, Rafael Pinto. A insignificância no direito penal brasileiro. 1. ed. - Rio de Janeiro: Revan, 2019. pp. 66-71.
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