Meryl Streep e a questão de gênero no Rock and Roll

15/09/2015

Por Germano Schwartz - 15/09/2015

Em um dos poucos momentos em que conseguimos, eu e Renata, um tempo livre (em São Paulo ou em Porto Alegre), uma das alternativas de passatempo nossa, desde sempre, é irmos ao cinema. Ontem foi um desses dias raros. Como na maioria das vezes, não checamos previamente o horário e nem qual filme estava em cartaz. O que houver no momento será fruto de nossa decisão, muitas das vezes com uma grande discussão em frente ao caixa, que, por sua vez, resta atônito(a) até que indiquemos nossa opção. Tal qual ontem. As opções eram o novo do Woody Allen ou o da Meryl Streep. Pela proximidade do horário, optamos pelo segundo.

O filme se chama Ricki and The Flash. Esta é a banda da personagem principal, que atua com um codinome artístico (Ricki) e é interpretada pela Meryl Streep. Sinceramente, achei a atuação um pouco forçada e abaixo do nível de uma atriz de tal quilate. Não sou crítico de cinema, todavia. Quem me conhece, sabe que não sou muito apegado a filmes cabeça. Longe disso. Trata-se, no fim, de uma película com todos os clichês de Hollywood. Dá para gastar o tempo. Nada além disso.

Não entrarei em detalhes do filme. Realmente odeio quem dá teasers de algo que ainda não vi. De qualquer sorte, há um trecho bastante interessante de Ricki and the Flash . Nele, Meryl Streep sofre, no palco, pela rejeição dos filhos à sua opção de trilhar a vida de roqueira. Fiquei a imaginar que aquele discurso poderia ter saído da boca de mulheres tais como Rita Lee, Baby Consuelo, Janis Joplin, entre outras.

Mas o que dizia a Ricki? Como não tenho memória auditiva, posso dar um sentido geral. Basicamente, ela, no meio de um show em uma espelunca qualquer, diz que porventura tivesse sido um Mick Jagger (a personagem é uma roqueira com baixo sucesso), ninguém diria que ela era uma mãe ausente. Também pergunta o porquê de a maternidade ser um impeditivo para ela ir atrás de seus sonhos. Literalmente: “Por que não posso ter dois sonhos?”. Na mesma linha, joga para a plateia o seguinte raciocínio: acaso ela tivesse “bolas”, não estariam, todos, parabenizando-a por sua opção de vida paralela ao senso comum? Em prantos, ela mesmo responde. Sim.

No entanto, a Ricki é uma mulher. Mãe de três filhos e casada com um marido exemplar. Ao se separar, a personagem de Meryl Streep deixa para trás o típico “sonho” do senso comum imaginário (Warat). Aquele no qual a esposa tem uma grande casa suportada pelo marido, absorvendo para si as tarefas domésticas, incluídas aí a criação dos filhos. Alguém chegou a pensar que ela desejava mais para sua vida? Não.  Ela deveria (e precisaria) se satisfazer com tais conquistas.

A geração de roqueiras dos anos sessenta desempenhou um papel vital no movimento pelos direitos das mulheres. Uma em especial. Janis Joplin. Ela foi o ícone de uma geração que mudou muitos paradigmas. Viveu e morreu como uma estrela do rock, com todos os excessos decorrentes desse estilo de vida. Note-se que viver assim era um chute nos padrões sociais da época, mesmo para os homens. Foi com Janis Joplin que as mulheres deixaram de ser coadjuvantes no rock e passaram a ser protagonistas.

Você realmente consegue imaginar o que foi o impacto de uma Joan Jett cantando que amava o rock and roll? Acredito que não, pois o rock, assim como a sociedade na qual ele se insere, também tem uma grande dose de testosterona dominadora (vide o caso de bandas como o Manowar na atualidade). O que seria do Rock in Rio sem a Nina Hagen e o estranhamento que o comportamento dela causou na sociedade brasileira dos anos oitenta?

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Há uma lista enorme de mulheres no rock and roll. Todas com papel de protagonismo. Heart, Patti Smith, Blondie, Hole, Lita Ford, Nightwish, Epica, Pitty, entre outras, são bandas – ou artistas solo - em que as mulheres são essenciais para a característica de sua música. A lista seria interminável. Há várias mulheres no espectro roqueiro atual, muito embora ainda se constituam na minoria, um reflexo de nossa própria sociedade.  Todas encontraram no rock um espaço importante para a (re)afirmação de seus direitos e para a luta contra a discriminação de gênero.

Mas eu acredito, ainda, que a angústia da Ricki é pertinente, mesmo no milênio em que vivemos. Arrisco dizer que a base das perguntas dela é extremamente atual. Ela condiz com os instrumentos (visíveis e invisíveis) de dominação dos homens sobre as mulheres. O Direito é um deles. Claramente. Seja quando ainda proíbe o free choice na questão do aborto, seja quando ainda legitima, por exemplo, práticas vexatórias à situação de gênero em estabelecimentos penais Brasil afora. Isso sem falar na condição das mulheres em alguns sistemas jurídicos não-ocidentais.

Em outras palavras: o Direito é status quo. Pensado tal como em Kelsen, trata-se de uma equação entre vigência e validade. Ele reforça situações tais como a discriminação de gênero quando reflete o pensamento da “maioria” (eis para mim um dos grandes problemas da democracia deliberativa habermasiana). Como a “minoria”, as mulheres, escapam desse beco sem saída? Às vezes, com outras Janis e com mais rock and roll.

Contudo, é preciso admitir que mesmo esses espasmos de igualdade fática (não a formal, prevista em lei) são raros. Poucas são as mulheres que conseguem se libertar desse perverso sistema de dominação que o Direito legitima. Mesmo assim, mesmo para essas, a angústia da personagem de Ricki ainda é a realidade. Perseguir seu sonho é algo compreensível somente para os homens. A constituição de uma família é, sim, ainda algo que se exige de uma mulher.

A revolução que o rock causou na sociedade, em especial na questão dos direitos civis, é, ainda, uma realidade distante para boa parte das mulheres. Há outra cena emblemática no filme. A filha de Ricki, depressiva pela separação, busca consolo em sua mãe, que, por sua vez, canta uma música que foi escrita especialmente para o filme. No quarto, Meryl Streep canta, para sua filha tanto na película quanto na vida real, o brado de uma geração que pagou o preço por sair da armadilha do Direito e das expectativas normativas da sociedade:

Eu fui considerada uma pessoa fria

Por agir daquela maneira

Mas ninguém esteve no meu lugar

...

Eu lhe amo

Você age igual a mim

...

Se existe uma pessoa fria,

Essa não sou eu.

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Germano

Germano Schwartz é Diretor Executivo Acadêmico da Escola de Direito das FMU e Coordenador do Mestrado em Direito do Unilasalle. Bolsista Nível 2 em Produtividade e Pesquisa do CNPq. Secretário do Research Committee on Sociology of Law da International Sociological Association. Vice-Presidente da World Complexity Science Academy.      

Publica na coluna semanal DIREITO E ROCK no Empório do Direito, às terças-feiras.      


Imagem ilustrativa do post: Sem título // Sem alterações

Disponível em: http://thesource.com/2015/08/07/morgan-freeman-laverne-cox-more-join-meryl-streep-at-ricki-and-the-flash-premiere

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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