Meritocracia e desigualdade (Parte 2)

04/04/2015

                                                                                Por Atahualpa Fernandez - 04/04/2015

“Nunca hemos sido tan libres. Nunca hemos sido tan impotentes”.

Zygmunt Bauman

Parte II

Pese a estas razões – que por si mesmas já seriam suficientes para rechaçar o atual discurso meritocrático – não faltam as justificações da desigualdade («merecida») assentadas nos valores vinculados ao mérito. Tratarei apenas de três. A primeira delas vem a dizer que  “a gente têm o que merece”. Assim como o rico merece sua riqueza, prêmio por seu empreendedor dinamismo, o pobre – por sua falta de aptidão e esforço – merece o seu oposto destino social. Assim como o leal e eficiente trabalhador merece conservar seu emprego, igualmente aquele que o perde merece o escarmento do desemprego,  situação na qual merecerá permanecer se não mostra suficiente capacidade, força de vontade e boa disposição para a busca ativa de outro emprego. Afinal, «oportunidades» não faltam, somente há que saber buscá-las.

Esta justificação meritocrática da desigualdade é tão demagogicamente falsa como certo é o fato de que ninguém merece moralmente nem seu azar genético nem seu azar social, de por si muito desigualmente distribuídos. Ninguém merece moralmente a família que lhe tocou, por sorte ou azar, nascer (rica ou pobre, decente ou depravada, vencedora ou perdedora), nem muito menos as oportunidades – favoráveis ou não – que essa família possa vir a brindar-lhe.

O mesmo cabe dizer dos talentos – poucos ou muitos – com que um determinado indivíduo vem ao mundo. Não selecionamos nossos talentos e ninguém os merece moralmente, já que não temos a escolha de nós mesmos, isto é, não elegemos as conseqüências dos azares biológicos, da “loteria cortical” ou dos infortúnios socioeconômicos de que somos “vítimas”. E se é verdade que a justiça aspira a contrapesar os caprichos do azar (social e genético), pouco justo será permitir que os indivíduos sofram ou gozem sem regras nem freios de seus imerecidos diferenciais de oportunidades que esse azar lhes põe de bandeja. A distribuição das dotações sociais e genéticas – como não  deixou de advertir John Rawls – , por «não» ser merecida, corresponde a  um «ativo comum» da  sociedade, ainda que somente seja porque é a sociedade quem as premia e valora, ou porque somente em seu contexto podem ser exercidas.

A segunda  mais comum justificação da desigualdade a converte “no necessário preço da liberdade”. Em um mundo regido pelo livre mercado e assentado no sacrossanto princípio da liberdade de eleição e decisão, um Estado intervencionista poderia impor políticas redistributivas e regulamentações igualitaristas, mas somente o lograria à base de cercear essa mesma liberdade individual, à base de recortar e limitar a opções sobre as que se pode exercer essa  “intocável” e metirória liberdade de eleição e decisão.

Este argumento também é tão demagogicamente falso como certo é o fato de que a desigualdade implica ela mesma uma falta de liberdade, tanto mais profunda quanto mais dramática seja essa desigualdade. Porque falta de liberdade – de eleger, de decidir, de fazer e ainda de rechaçar e resistir – é o que padece aquele que vive (ou sobrevive) com a «permissão» de outro, em um mundo que distribui de forma tão grosseiramente desigual recursos, oportunidades e riqueza. E a conclusão mais imediata parece ser bastante óbvia: não existe propriamente liberdade sem igualdade, nem igualdade sem liberdade; se é tanto mais livre na medida em que se é igual, e vice-versa. Dito de forma um pouco vulgar: a liberdade em um contexto que padece de um profundo e crônico problema de falta de igualdade é uma ilusão.

Nem que dizer que em um cenário de desigualdade está sempre aberta a possibilidade de que alguém reclame, para si e para os seus, o monopólio da excelência, ou (também) de que alguém avoque a faculdade ou o direito de restringir ao seu círculo o abanico das excelências humanas. Um corolário natural, uma característica perversa da psicologia social humana: a tendência a dividir as pessoas em pertencentes ao grupo e não pertencentes ao grupo, e a tratar os de fora como menos do que humanos; odiar os que não pertencem ao nosso círculo ou grupo é uma parte da natureza humana - e dos chimpanzés -, a parte mais repugnante e nocente.

Por último, mas não por isso menos importante, é o grave dano causado ao amor próprio da gente (à legitimidade do «interesse próprio» como motivação da ação humana: desde a representação da relação ética do «eu» consigo mesmo por meio do conceito de «amor próprio» de Aristóteles até o «amour de soi» rousseauniano e o «selfinterest» de Adam Smith, passando pela «conservatio sui» spinoziana - ou, para chegar até hoje mesmo, a  «ação estratégica» de Habermas). Um amor próprio que depende em boa medida do reconhecimento que recebemos dos demais, como demonstraram pensadores que vão de Hegel a Lacan, e, mais recentemente, Richard Sennett, que chega a uma conclusão semelhante quando considera que a pergunta principal dos indivíduos é «Quem me necessita?». Para um grupo cada vez mais seletivo em termos de mérito, a resposta é: «ninguém».

Nossa sociedade proclama constantemente uma classe de mentalidade que se aprecia praticamente em todas as esferas da vida, sobretudo agora que temos direito a tudo, menos o de conformar-nos com qualquer coisa: que qualquer pode conseguir tudo só com esforçar-se o suficiente, enquanto reforça ao mesmo tempo os privilégios e exerce uma pressão cada vez maior sobre seus angustiados e exaustos cidadãos. Com essa percepção equivocada do mundo e de como este funciona, a retórica meritocrática, tal e como se anuncia, quer fazer-nos crer que o êxito depende inteiramente do empenho e os talentos individuais, e que temos mais liberdade que nunca para eleger e decidir o rumo de nossa vida.

Para quem acredita no conto de fadas da eleição e decisão sem restrições, o «mérito» agora é nossa condição, nosso destino. Junto com o mercado da espiritualidade e da fé, a «meritocracia» constitui não somente a maior indústria da época, senão que é também, e com maior exatidão, o novo imperativo moral: devemos a nós mesmos o «mérito» tanto como nos o devem os demais. Uma nova ordem moral baseada no «dever» de ser meritório, sempre e quando «este fim» justifique «qualquer meio» (e dado que não há nada mais envenenado e impreciso que a ideia de «mérito», uma palavra que não tem um significado único e que não deveria usar-se como se usa, nos encontramos, «ad absurdum et ad nauseam», no perigoso reino do «tudo vale»). Uma espécie de ética transformada que produz uma identidade transformada associada à ideia do indivíduo perfetível, à ilimitada liberdade de eleição e ação, ao fanatismo do êxito “com mérito”, e que induz a situações e relações altamente prejudiciais e tóxicas.

O atual sistema baseado na meritocracia não somente está sacando o pior de nós mesmos, senão que sonega a evidência de que a forma de abordar o problema da desigualdade produzida pelo mérito supõe uma grande e relevante diferença no modo como nos vemos e atuamos enquanto membros de uma sociedade ética fundada na solidariedade humana. É desejável que vivamos em uma meritocracia, mas nos falta muito para conseguir algo que se acerque a um sistema donde os “melhores” ocupem legitimamente os postos mais relevantes.

De modo igual, também nos falta muito para corrigir o tipo “ideal” de sociedade que só se ocupa de prover estrita «igualdade de oportunidades» no ponto de partida sem prestar atenção alguma aos níveis de desigualdade nos resultados gerados pelo azar social e/ou pela “loteria” de habilidades e predisposições; uma sociedade despreocupada por buscar alternativas à descomedida fixação pelo mérito «a qualquer preço» e aos imoderados e indiscriminados encômios dedicados ao «talento» e/ou «êxito», alternativas que afetam a seres humanos, indivíduos de carne e osso, cada um com seu nome e sua firma, com sua estrutura genética singular, sua personalidade e caráter, sua forma particular de caminhar pelo mundo, de sorrir, mirar e sofrer. Reconheçamos: ninguém é «humano», «digno» e «valoroso» em abstrato (Joseph de Maistre).

Tal como o peixe não é capaz de perceber que está rodeado de água, quando uma ideia ou um valor está suficientemente estabelecido ao nosso arredor amiúde não somos capazes de ver o nocivo e errôneo que pode resultar. Como animais «domesticados» por uma constelação de crenças transmitidas, prejuízos inconscientes e ideias preconcebidas que vamos acumulando ao longo da existência, nos falta perspectiva para entender e aceitar a real nocividade das metáforas ou retóricas estúpidas sobre a «meritocracia».  Uma noção exclusivamente meritocrática da ordem social não somente obvia o fato de que uma comunidade é, sobretudo, um espaço de solidariedades e não uma arena de combate e competição, senão que também leva a desigualdade a uns limites insuportáveis em um Estado Democrático de Direito.

Não há que esperar passar de moda a «meritocracia» para poder ver com claridade e surpreender-nos por como algo tão absurdo foi tomado tão em sério por tanta gente. Se em algo nos valoramos a nós mesmos, o primeiro imperativo dessa autoestima há de ser o de resistir-se ao absurdo, de não fazer concessões ao sem sentido, de não viver para estar continuamente à altura das expectativas e exigências alheias, de não conformar-nos com uma lírica e insensata «meritocracia» que não pode existir, por definição.

À maneira de Montaigne, há que relativizar esse «espírito compartido» de um mundo maniqueu, um mundo de dualismo radical em que parece não haver mais que uma «solução» permitida, razoável e lógica para «êxito», do «mérito» como suposto fundamental que não se pode pôr nunca em dúvida. Uma mentalidade comum que atualmente impregna perigosamente a todos. Autêntico supositório entre tanta vaselina.


Veja a Parte I aqui


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


Imagem Ilustrativa do Post: Alice in Gatcha Land (cont'd)// Foto de: Nebraska Oddfish// Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ditadata/8267090359 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


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