Por Atahualpa Fernandez - 03/04/2015
“Cómo hacer rápidamente una fortuna, es el problema que se plantean en este momento cincuenta mil jóvenes que se encuentran en la misma situación que usted. Usted es uno de ellos. Calcule los esfuerzos que tiene que hacer y lo encarnizado del combate. Tienen que devorarse unos a otros como fieras, dado que no hay cincuenta mil buenos puestos… Hay que mancharse las manos si se quiere sacar tajada, sólo es preciso sabérselas limpiar bien después; en eso consiste la moral de nuestra época… El hombre honrado es el enemigo común.”
Honoré de Balzac
Parte I
Imagine que um número cada vez maior e mais influente de pessoas passam a considerar o «mérito» moralmente louvável, a origem de todas nossas fortunas. Difundem airados libelos nos que mostram — de forma mais ou menos rebuscada, exagerando uns aspectos e minimizando outros — como ao longo da história e no presente o «mérito» está vinculado a uma indizível quantidade de vantagens e exigem que se ensine nas escolas o bom que é; propõem que os meios de comunicação sensibilizem sobre isso, assim como leis para validá-lo e maior empenho estatal para fomentá-lo. Por certo suas intenções são nobres, só querem incrementar ou potencializar o «mérito» e que assim todos sejamos mais felizes. Se alguém criticar ou mostrar algum tipo de oposição a essa ideologia é porque se trata de um partidário do «fracasso» (ainda que o negue) e, uma vez identificado, já não importa o que argumente, porque seguro que são somente mentiras. Ou com nós outros ou contra nós. De forma que ser tachado de «fracassionista» passaria a converter-se no pior estigma, o que iria alhanando qualquer oposição e, por outra parte, incrementando o número de partidários nas próprias filas, pois as pessoas tendem a considerar que o correto é aquilo que a gente de seu entorno considera correto.[1]
O esquema básico desta narrativa é a contradição entre o bem encarnado no «mérito» e o mal personificado no «fracasso». Destaca o maniqueísmo e a imprecisão das terminologias deliberadamente buscadas: os valorosos (os de arriba) “versus” os fracassados (os de abaixo). É um esquema binário e de terceiro excluído em que somente há essas duas opções, e entre as que há que eleger necessariamente: se algo é bom, seu contrário será mau. Um esquema que implica que, para os seguidores da meritocracia, qualquer crítica ao «mérito» se interpreta como procedente de alguém do grupo «fracassionista» ou aliado seu já que não cabem mais opções. Um dualismo radical, uma oposição irreconciliável entre luz e trevas, bom e mau; uma oposição que só pode ser salvada mediante a vitória absoluta do bem.
Evidentemente, se trata de uma metáfora para falar do conjunto de traços e habilidades, naturais ou aprendidas, cujo desenvolvimento e nível de expressão dependem da dotação genética do indivíduo, da “organização inata do organismo” (S. Pinker). O problema é que as metáforas podem ser iluminadoras, ou podem ser obscurantistas: podem aclarar algo mais complexo ou confundir mais ainda algo de por si complicado, como é o caso da “meritocracia”. Longe de ser um termo científico para analisar as capacidades individuais é, em realidade, um termo com uma carga emocional para envolver e mover precisamente os sentimentos e não a razão. Sua ambiguidade busca precisamente isso: que todo mundo possa identificar-se como “melhor” e depreciar ao “pior”.
Outro obstáculo com este tipo de filosofia das alternativas é a evidência de que “lo contrario de malo no es necesariamente bueno, sino que puede ser más malo aún” (P. Watzlawick). Quer dizer, dado que a suposição de que o contrário do mau é o bom indica, em certa maneira, a inexatidão do razoamento segundo o qual o mundo se divide clara e exatamente em oposições irreconciliáveis, «melhor» vs. «pior» é uma metáfora de bons e maus, moralizante, própria de um conto ou mito, e que, precisamente por isso, é cientificamente inservível. É perfeita para a narrativa e a fábula, por essa emotividade e poder de sensibilização que tem, e porque sua ambiguidade serve para não dizer nada aparentando dizer algo muito profundo, ou para poder dizer duas coisas contraditórias ao mesmo tempo. E se isso não bastasse, já avisou Heráclito, “as posturas extremas não levam a eliminar a oposição, senão mais bem a fortalecer o contrário”.
Por que, com mais ou menos convicção, todos cremos na meritocracia? O que nos leva a confiar cegamente, e com certo otimismo ingênuo, no talento e no matrimônio da eficácia com a vontade? Qual a consequência do discurso meritocrático para a justificação, a sustentação e a consolidação da desigualdade como «desigualdade merecida»? Por acaso não resulta evidente que este tipo de retórica descreve claramente uma característica de nosso mundo: “el que quiere el «summum bonum», introduce también con esto el «summum malum»”?
Supostamente vivemos em uma meritocracia perfeita donde aquele que serve, quem é bom, triunfa. Ao menos esta é a mensagem que costumamos ouvir frequentemente no espaço público (e privado): “o que vale” triunfa; e que os que fracassam é por sua culpa.[2] Essa apelação à meritocracia, diz R. Augusto, é um dos fundamentos ideológicos de nossa sociedade. As diferenças são justas porque espelham distintas capacidades. Os melhores têm mais e os piores, aqueles que fracassam neste regime meritocrático, devem conformar-se com pouco ou nada. Segundo esta imagem, a miséria de muitos é responsabilidade dos perdedores ou fracassados, dos que a sofrem, já que “não servem”. É justo o sofrimento que padecem.
Mas a ideia de que as posições hierárquicas são conquistadas com base no mérito e de que há um predomínio de valores associados à capacidade individual apresenta um grande inconveniente: a realidade é muito distinta e essa meritocracia «perfeita» não existe. Para que haja a possibilidade de uma meritocracia autêntica é necessário que as condições em que se competem partam de uma igualdade prévia que quase nunca se dá e/ou da eficaz garantia de umas condições mínimas de uma vida digna, satisfatória e plena (o radical direito aos meios materiais de existência).
Não é possível realizar na prática a meritocracia se esta não se materializa nas humanas condições do processo experiencial de que surge, assegurando a cada indivíduo liberdade e igualdade de oportunidades reais em uma sociedade solidária. Não se pode simplesmente identificar a liberdade e a igualdade com a perfeição, com o mérito; cada confusão e identificação destas com a perfeição e o mérito é uma negação das mesmas, uma declaração a favor da inumanidade e da coação. A perfeição ou o mérito que se impõe pela força ou por ardil, “já não é bem, se converte em mal”. (N. Berdiaev)
Por donde se mire, a meritocracia, tal e como a experimentamos, não passa de um pretexto ideológico para as desigualdades sociais (i) que nada tem que ver com as capacidades e aptidões das pessoas, (ii) que faz com que nos olvidemos de perceber e acentuar com clareza o acelerado crescimento da desigualdade, de expor suas causas e origens, de ponderar suas consequências e, o que é ainda mais grave, (iii) que nos leva a abraçar incondicionalmente e a não refutar com contundência as falsas e falaciosas justificações oferecidas pelos habituais peritos em legitimação. A justificação da desigualdade como «desigualdade merecida» é o baluarte mais forte, o conservante mais duradouro, da meritocracia.
De modo igual, também nos leva a ignorar, depreciar e/ou dissimular o fato de que a desigualdade – seja lá de que forma seja medida – parece galopar de maneira desenfreada e sem rendas tanto a escala planetária como local, tanto em países pobres como nos ricos. Com efeito, já faz algum tempo que em questão de desigualdade se rebaixou o nível do social, do ético e do esteticamente tolerável. A extrema desigualdade, de mãos dada com a verborréia meritocrática, está fazendo desse nosso mundo um lugar instável, reprovável e feio: “Hay mucha hipocresía en toda la sociedad en cuanto a la meritocracia, un discurso exagerado que genera una forma moderna de desigualdad que pesa aún más para los perdedores del sistema”. (T. Piketty)
E isso é mau ao menos pelas seguintes razões de «consequência». Primeiro, porque torna extremamente vulneráveis, passivos e conformados, em grau diverso, a amplíssimas capas subalternas da sociedade (os «perdedores»). E com a vulnerabilidade vem a dependência, com a dependência a falta de liberdade e com a falta de liberdade, em grau diverso, a condição servil, a perda da autoestima e do autorespeito. Segundo, porque põe em mãos de uns poucos poderes e recursos desmedidos que podem direcionar, condicionar e facilitar seus interesses privilegiados, socavando assim toda esperança de meritocracia autêntica em condições de liberdade e igualdade (real) de oportunidades que subjaz ao ideal de cidadania. Finalmente, a desigualdade entre “melhores” e “piores”, “vencedores” e “perdedores”, ao abrigo do véu da meritocracia, quebra a comunidade, rompe os laços de fraternidade e desata, de um lado, a cobiça de uns poucos e, de outro, quando não a inveja e o ressentimento, sempre ao menos a frustração, e muitas, muitas vezes, a angústia e o desespero de muitos.
Amanhã (04/04), as 10h, confira a Parte II!
Notas e Referências:
[1] Tomado e modificado levemente do original «Metáforas para hablar de lo que está prohibido», http://www.jotdown.es/.
[2] O conceito de meritocracia foi cunhado, em sua versão moderna, pelo sociólogo e ativista britânico Michael Young, «The rise of the meritocracy» (1958).
Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España
Imagem Ilustrativa do Post: Chicklets Gum Food Macros April 08, 20117// Foto de: Steven Depolo // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/stevendepolo/5608788074 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode