MERCADO DE ANIMAL DOMÉSTICO: UMA REFLEXÃO INTRODUTÓRIA SOBRE O PL. 523/2023 DE SP

08/09/2023

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Vive-se em uma sociedade em que tudo é transformado em objeto de consumo. Inclusive, os animais domésticos. Diante disso, me propus a pesquisar a comercialização de cães e gatos, uma vez que entendo a existência de fábricas de filhotes como revelação da crueldade de reprodução de vida não-humana, que trata seres sencientes como algo comum e de lucro. O presente texto integra os estudos que estou desenvolvendo e, nesta oportunidade, apresento uma observação sobre o PL 523/2023 do estado de São Paulo - que propõe a proibição de reprodução e comercialização de animais domésticos – e uma posição crítica aos argumentos contrários ventilados sobre o projeto.        

Sobre o Projeto de Lei

Foi aprovado por unanimidade na data 08 de agosto de 2023 na Assembleia Legislativa de São Paulo o PL 523/2023, que proíbe a criação e revenda de animais domésticos - cães, gatos e pássaros - em pet shops, estabelecimentos comerciais do estado, ou até mesmo, de pessoas físicas que não sejam criadores cadastrados.

O PL tem como objetivo de terminar com os criadores clandestinos e evitar que os animais permaneçam por longas horas expostos ao público geral, em locais impróprios, que prejudicam a sua saúde e o bem-estar, ocasionando estresse e traumas[1].

Além disso, o PL propõe criar um espaço mais seguro para os animais chegarem aos seus futuros tutores, ao priorizar o bem-estar e não apenas o lucro, isso porque, a justificativa da lei é a de que os animais comercializados nas pet shops, ou em outro lugar inapropriado, sofrem danos à saúde e ao bem-estar, o que resulta em grandes estresses e traumas, uma vez que os animais ficam por muitas horas expostos ao público em condições precárias, com pequenos espaços, reduzida alimentação e hidratação[2].

Muito embora os animais pareçam estar protegidos por quem os observa através de um vidro ou gaiola, como a maioria dos animais nestas condições, geralmente não são vacinados, e permanecem em lugares impróprios, sendo expostos a doenças e infecções. Nesse cenário, o PL justifica que:

(...). os estabelecimentos comerciais são os maiores incentivadores de práticas ilegais no âmbito da criação irregular de animais, pois com vistas aos valores mais atrativos, dada falta de cuidados especiais e cumprimento das leis que fiscalizam os criadouros irregulares, pet shops, por exemplo, costumam adquirir animais de criadouros ilegais que não trabalham com o mínimo de preservação da saúde e bem-estar do animal, observando-os apenas como fonte de renda.

Assim, um fato interessante é que o PL também pondera que a emissão do Cadastro Estadual do Criador de Animais ficaria sob responsabilidade da Coordenadoria de Defesa e Saúde Animal, após a fiscalização comprovar que os estabelecimentos dispõem de área compatível com o tamanho, porte e quantidade dos animais. Ademais, todos os animais comercializados deverão ter um laudo médico veterinário, que ateste sua condição de saúde regular, também, que sejam vacinados e castrados[3].

Por fim, a proposta de lei tem como objetivo principal de coibir a prática de venda de animais em estabelecimentos comerciais como um todo, haja vista a sua carência de estrutura compatível a promoção do bem-estar animal e o estímulo a práticas ilegais, abrangendo a acabar com criadouros ilegais que exploram ao máximo a saúde dos animais que ali estão, coibindo e responsabilizando aqueles que cometem o crime de maus-tratos aos animais (PL 523/2023).

Sobre um argumento contrário ao Projeto de Lei

Segundo texto de opinião, publicado na Conjur[4], a proibição da criação e revenda de animais domésticos causará a extinção das espécies. O argumento exposto pelo comentário da PL, naquela ocasião, destaca que “o PL está restringindo o direito de propriedade e limitando de forma drástica a comercialização de animais, independentemente de o local da venda ser uma pet shop ou não”.  Além disso, o articulista propõe que a restrição de comércio dos animais abalará o cenário econômico e social, uma vez que os postos de trabalho serão colocados em risco. Isso é justificado por conta da inexistência das espécies – que o autor acredita entrarem em extinção diante da não-comercialização – e, consequentemente, da desnecessidade da produção de rações, vacinas, etc. Em suma, o autor justifica a inconstitucionalidade do PL, sustentando a violação ao direito de propriedade sobre o animal e utilizando argumentos de ordem econômica.

Uma posição crítica de apoio ao Projeto de Lei

Primeiramente, data máxima vênia, não estou de acordo com a posição do autor supramencionado. Afinal, não tenho consonância ao argumento antropocêntrico que sustenta o tratamento do animal como mera ‘coisa’ ao Direito Civil. Logo, a ideia de que seja necessária a existência de um mercado produtor de animais domésticos para preservar as espécies, só revela que a finalidade não é o bem-estar e preservação animal, mas o lucro humano. Ainda que haja regulamentação jurídica para reduzir os danos de maus-tratos, já configura em si mesmo um atentado à dignidade animal.

Entendo que o PL é um passo importante – mas muito inicial - para coibir as cruéis fábricas de filhotes que crescem exponencialmente na sociedade de consumo capitalista. O tratamento mercadológico dos animais domésticos impulsiona a fabricação de filhotes, que é algo muito distinto a criação saudável e responsável. Sabe-se que geralmente a ‘produção’ de animais domésticos ocorre de uma maneira exagerada, em razão da demanda e da cultura de status desenvolvida a partir dos filhotes. Afinal, os cães e gatos, em uma sociedade capitalista, passam a ser tratados como mercadoria e por isso despossuídos de qualquer critério de dignidade[5].

De um modo geral, qualquer compra de animal é uma crueldade, pois estima-se, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), que existem “atualmente no Brasil, cerca de 30 milhões de animais estão abandonados, sendo aproximadamente 20 milhões de cães e 10 milhões de gatos”[6]. Isso significa um cenário caótico de abandono animal, enquanto por outro lado há produção em escala de filhotes de raça. No sentido de tratamento do animal como mercadoria, a matéria do site Terra referencia que:

É possível notar em todas as classes, mas essencialmente na classe média e alta, uma necessidade em possuir um cachorro ou um gato de raça. A obtenção desses pets é considerado um artigo de luxo, como uma joia, puro status. Essa ânsia em ter um animal comprado e a necessidade em exibir um pet caro e ''elegante'', resulta em dor e sofrimento a diversos animais abandonados e expostos ao frio, chuva, fome e desamparo.

Porém, os animais de rua não são os únicos que sofrem com esse mercado. Talvez você não saiba, mas os animais comercializados (animais de raça), foram pensados e desenvolvidos pelos seres humanos, visando uma certa estética para agradar os gostos dos animais humanos[7]

Por fim, penso que estamos diante de um problema a ser refletido juridicamente a partir de outra perspectiva, que não veja os animais como mera ‘coisa’, mas como um componente da natureza em relação com outras espécies – principalmente, com os seres humanos. Por isso, o argumento mercadológico antropocêntrico não é cabível para postular a manutenção da venda e reprodução dos animais domésticos. É preciso outra matriz[8] para os direitos dos animais, que os perceba como seres sencientes e não como meras coisas a serem comercializadas. 

 

Notas e referências 

[1] CONEXÃO PLANETA. Aprovado projeto de lei que proíbe venda de cães, gatos e pássaros em lojas de SP. Disponível em: https://conexaoplaneta.com.br/blog/aprovado-projeto-de-lei-que-proibe-venda-de-caes-gatos-e-passaros-em-lojas-em-sao-paulo/. Acesso em: 02 de set. de 2023.

[2] G1. Projeto de lei aprovado diz que animais vendidos em petshops sofrem trauma e estresse. Disponível em https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/08/10/projeto-de-lei-aprovado-diz-que-animais-vendidos-em-pet-shops-sofrem-trauma-e-estresse-lojistas-veem-estimulo-ao-comercio-clandestino.ghtml. Acesso em: 02 de set. de 2023.

[3] CONEXÃO PLANETA. Aprovado projeto de lei que proíbe venda de cães, gatos e pássaros em lojas de SP. Disponível em: https://conexaoplaneta.com.br/blog/aprovado-projeto-de-lei-que-proibe-venda-de-caes-gatos-e-passaros-em-lojas-em-sao-paulo/. Acesso em: 02 de set. de 2023.

[4] ALMADA, Renato de Mello. PL que proíbe venda de animais em petshops pode extinguir espécies. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-ago-15/mello-almada-pl-proibe-venda-animais-extinguir-especies. Acesso em: 03 de set. de 2023.

[5] A consistência da dignidade como argumento para os direitos dos animais é um tema debatido sobre diversas perspectivas. Neste sentido, recomenda-se a leitura do artigo: Jesus, C. F. R. de. (2022). Dignidade animal na justificação dos direitos animais. Revista Brasileira De Direito Animal, 17. https://doi.org/10.9771/rbda.v17i1.36832

[6] TERRA. Comprar animais é uma prática ultrapassada e desnecessária. Disponível em: https://www.terra.com.br/comunidade/visao-do-corre/rango-esperto/comprar-animais-e-uma-pratica-ultrapassada-e-desnecessaria,cd82410d65ee468512c285b46912f8a69hramamn.html. Acesso em: 03 de set. de 2023.

[7]  TERRA. Comprar animais é uma prática ultrapassada e desnecessária. Disponível em: https://www.terra.com.br/comunidade/visao-do-corre/rango-esperto/comprar-animais-e-uma-pratica-ultrapassada-e-desnecessaria,cd82410d65ee468512c285b46912f8a69hramamn.html. Acesso em: 03 de set. de 2023.

[8] Segundo os estudos de Wolkmer, Wolkmer e Ferrazo, novas perspectivas se apresentam na América-Latina para cuidar dos “direitos da natureza”. Por isso, entendo que os direitos dos animais também devem integrar este sentido, transcendendo a racionalidade antropocêntrica e marcando a dogmática jurídica ocidental. WOLKMER, A. C.; WOLKMER, M. F. S.; FERRAZZO, D. . Direito da Natureza: Para um Paradigma Político - Constitucional desde a América Latina. In: LEITE, José Rubens M.; DINNEBIER, Flávia F. (Orgs.). (Org.). Estado de Direito Ecológico: Conceito, Conteúdo e Novas Dimensões para a Proteção da Natureza.. 1ed.São Paulo: Inst. O Direito por um Planeta Verde, 2017, v. 1, p. 228-269.   

 

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