MENINAS E MULHERES NEGRAS: CORPOS QUE CARREGAM POUCOS DIREITOS  

13/07/2021

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Rêgo, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

Julho é um mês importante para diversos movimentos sociais brasileiros, que se organizam para pautar, denunciar, discutir, incidir e celebrar datas importantes. Uma delas é o aniversário do Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em 13 de julho de 1990. A outra é o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, dia 25 de julho, no qual o Brasil também registra o Dia de Tereza de Benguela.

A princípio pode parecer não ter conexão entre uma e outra data, mas uma breve análise de conjuntura sobre as desigualdades sociais que atingem crianças, adolescentes e mulheres, aponta semelhanças estatísticas e estruturais comuns, onde raça, classe e gênero serão fatores fundamentais na leitura das problemáticas.

A pandemia de Covid-19 escancarou ainda mais as desigualdades e intensificou as violações. As diferenças de classe, raça e gênero ficaram ainda mais nítidas na nossa sociedade, reverberando de forma intergeracional e inter-regional no campo e na cidade.

A criança/adolescente ainda é colocada no lugar do não-saber, semelhante ao lugar que é colocada a pessoa negra. A criança/adolescente pelo adultocentrismo e a negre(o, a) pela branquitude. Apartados, vistos como o Outro, aquele que precisa ser "moldado", educado de tal maneira, comportar-se de modo a ser aceito(a) ou pela satisfação de outrem. Do contrário é marginalizado - em todos os sentidos de posto à margem - condição potencializada pelo gênero.

A mulher negra e a menina negra experimentam desafios semelhantes em fases diferentes da vida. Racismo, sexismo, patriarcado, lgbtfobia, pobreza, entre outras opressões, deixam marcas produzidas desde a infância, perpetuadas por anos. 

As necropráticas do sistema capitalista-racista-patriarcal-capacitista-lgbtfóbico assujeitam pessoas negras desde a infância, apartando-as da vida plena, livre e digna. A finalidade é eliminá-las (Mbembe, 2018), o que acontece mais rapidamente com os meninos/homens negros pela via do genocídio antinegro (Nascimento, 2016), porém as meninas também seguem uma vida de privação de direitos, violações e exposição à morte.

São as meninas e mulheres negras, por exemplo, as que preenchem largamente as estatísticas do abuso sexual, da exploração sexual, do tráfico de seres humanos, do trabalho análogo à escravidão, do trabalho doméstico com privação de direitos (no caso das meninas, caracterizado como exploração do trabalho infantil), além de outras questões ligadas ao desenvolvimento, educação, segurança e à saúde integral.

O Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) tem feito levantamentos sistemáticos sobre a exploração do trabalho infantil no Brasil. A pesquisa de 2019 realizada pelo FNPETI confirma dados anteriores de caracterização do trabalho infantil. A maioria dos trabalhadores infantis são negros (66,1%); 21,3% estão na faixa etária de 05 a 13 anos. Especificamente sobre o trabalho doméstico nessas condições, 94% são realizados por meninas, onde 73% são negras.

Essas são as mesmas meninas que interrompem o acesso à escola, que crescem semi-alfabetizadas ou que não conseguem concluir o ensino fundamental. São também as meninas que comporão, ao crescer, as estatísticas de subemprego, trabalho doméstico sem garantias trabalhistas, entre outras condições de não reconhecimento.

Segundo estudo do IPEA (2019), 92% dos trabalhadores domésticos do país são mulheres, em sua grande maioria negras, e que por mais que houvesse avanços na legislação (Lei Complementar 150) as alterações pela Reforma Trabalhista de 2017 garantiu retrocessos e/ou estagnações, o que cabe espaço para caracterizar o trabalho doméstico ainda como uma atividade precária, que promove baixos rendimentos, oferta baixa proteção social, e apresenta alto risco de discriminação (racial, de classe, de gênero) e assédio (moral, sexual). Se é difícil enfrentar tudo isso enquanto adulta, imagina enquanto criança?

A violência sexual - assédio, abuso e exploração sexual - também é uma violação de direitos que transita entre a infância e a adolescência dos corpos negros, sobretudo das meninas e mulheres negras. Informações do Disque 100 apontam um número de denúncias aumentado em 2021 (janeiro a maio), sendo que do total de denúncias cerca de 88% envolveram meninas, dessas aproximadamente 58% eram negras. Em relação à exploração sexual, o Instituto Liberta vem organizando levantamentos que indicam que 75% das vítimas são crianças e adolescentes do sexo feminino, sendo a maior parte de 8 a 14 anos, negras.

Esse cenário não é diferente entre as mulheres adultas. Também são as negras que aparecem em maior número nas estatísticas da violência sexual, do assédio ao estupro (Atlas da Violência, 2018), é nítido que é o corpo femino negro aquele passível de qualquer violência, além de ser matável, é também torturável, explorável, comercializável e objetificável para as satisfações do Outro.

A autora bell hooks chama atenção para a discussão sobre como tudo isso impacta na produção do afeto entre pessoas negras e por pessoas negras. O contexto da pobreza, as lutas pela sobrevivência, o apagamento da infância pelas violências, as resistências. O amor cura, diz hooks, mas o mundo parece dizer, de diversas formas, que o corpo negro é digno de amor, desde a infância. Se é difícil enfrentar tudo isso enquanto adulta, imagina enquanto criança?

Quanto à seletividade do sistema de justiça, tem chamado a atenção as disparidades quanto à investigação sobre o desaparecimento de crianças negras. Denúncia frequente dos movimentos sociais, sobretudo os formados e articulados por famílias de crianças e adolescentes desaparecidos, vêm sendo pauta do Conselho Nacional de Justiça. Números recentemente apresentados pelo CNJ (2021) reforçam a importância desse debate: entre 2017 e 2018, mais de 858 mil registros de pessoas desaparecidas foram feitos no Brasil. O Anuário da Segurança Pública (2020) destaca que aproximadamente 80 mil pessoas desapareceram em 2019. Estima-se que 40% dos desaparecidos eram crianças e adolescentes.

Familiares dos três meninos desaparecidos em Belford Roxo, na Baixada Fluminense (RJ), cobraram uma solução para o caso enquanto denunciam o baixo compromisso investigativo dos órgãos responsáveis. Já são mais de seis meses sem notícias sobre as crianças. Como elas, diversas outras famílias também sofrem com a ausência e seletividade do sistema de justiça na investigação, sobretudo de meninas negras que são, segundo denúncias, raptadas para alimentar uma cadeia que se estrutura em torno do tráfico internacional de pessoas.

Segundo relatório elaborado pela NUPEGRE/EMERJ (2018), com relação ao desaparecimento forçado de meninas, a situação de maior vulnerabilidade ocorre entre 13 e 18 anos. As mulheres negras adultas também são as maiores vítimas de tráfico de seres humanos, o que indica uma forte ligação com resquícios da escravidão, com o estereótipo da mulata (Gonzalez, 2020), a hipersexualização do corpo negro, a exploração sexual, o turismo sexual, o que caracteriza o tráfico de pessoas como uma violência cuja vitimização é racializada. Se é difícil enfrentar tudo isso enquanto adulta, imagina enquanto criança?

A violência no ambiente doméstico atinge crianças de forma bastante severa, mesmo não havendo violência física direta a elas, a exposição à violência sofrida por uma mulher adulta (mãe, irmã, tia, etc.), coloca meninas e meninos sobre condições de alerta, medo e insegurança familiar, afetando de forma veemente a saúde mental. Quando isso ocorre, o papel da família previsto no ECA (1990), que é garantir um ambiente de desenvolvimento seguro que proporcione a proteção integral da criança e do adolescente, falha invariavelmente.

A pandemia de Covid-19 agravou, significativamente, o quadro de violência doméstica no Brasil. Para lidar com o processo de expansão da doença, os gestores públicos recorreram a sucessivas estratégias de distanciamento social, recomendando ficar em casa aos que pudessem. A grande maioria dos lares brasileiros, sobretudo das famílias que vivem na pobreza ou extrema pobreza, são espaços pequenos, que muitas vezes fazem com que as vítimas convivam diariamente com aqueles que realizaram a agressão. Em pesquisa do Instituto DataFolha (2021), 24,4% de mulheres acima de 16 anos sofreram violência física, psicológica ou sexual no último ano, com a crescente participação de namorados, companheiros e ex-parceiros.

Essa condição da violência doméstica também é enfrentada pela maioria de mulheres e meninas negras, e uma das desembocaduras deste tipo de violência é o feminicídio. De cada 13 mulheres mortas no Brasil, 8 são negras. O feminicídio cresceu mais de 60% entre as mulheres negras e decresceu cerca de 2% entre não-negras (Atlas da Violência 2019). Se é difícil enfrentar tudo isso enquanto adulta, imagina enquanto criança?

 Percebe-se que a mulher negra carrega consigo uma série de violações historicamente impressas em seu corpo. Essa perspectiva, aliada a produção dos estereótipos de base racista, classista e patriarcal, influenciam no fortalecimento ou fragilização das identidades, expõe, e de alguma forma perpetradas nas violações com base nas “imagens de controle” (Collins, 2019) às quais meninas e mulheres negras estão vulneráveis.

Para além disso, o genocídio antinegro vitimiza em sua maioria os homens, mas também alcança às mulheres e meninas. Recentemente (junho/2021) a jovem negra Kathlen Romeu, grávida de quatro meses, foi morta com um tiro de fuzil no tórax, enquanto visitava sua avó no Complexo do Lins, Rio de Janeiro. Até o momento não se sabe informações precisas sobre os responsáveis pelo ocorrido. Não esqueçamos que já são mais de 3 anos sem resolução do atentado e assassinato da Vereadora Marielle Franco, socióloga negra que tinha, como uma de suas pautas, o enfrentamento à violência.

Lorde (2019) discute o quanto as mulheres negras mães se preocupam com as suas crianças negras: “Alguns problemas nós compartilhamos como mulheres, outros não. (...) nosso medo [das mulheres negras] é de que nossas crianças sejam arrastadas por carros e jogadas na rua”. Desse modo, Lorde dialoga sobre as angústias de ser mulher negra e/ou ter filhos(as) negros(as) em um mundo que a vida das pessoas negras são destituídas de humanidade e passíveis de eliminação. Aliada a essa perspectiva, Piedade (2017) traz a ideia de Dororidade para marcar a dor cotidiana que marca as mulheres negras e significar os vazios, as ausências, os silenciamentos e as violências sofridas por elas, independente da faixa etária. 

No prefácio à Feminismo Para as 99%, Taliria Petrone (2019) destaca a importância de é preciso “afirmar que nem todo feminismo liberta, emancipa, acolhe o conjunto de mulheres que carregam tantas dores nas costas. E não é possível que nosso feminismo deixe corpos pelo caminho.” Por isso a importância intergeracional, de avaliar os desafios que estão postos a todas as mulheres, com as devidas distinções de raça, classe e orientação sexual, sem necessariamente escalonar as opressões, mas reconhecendo e lidando com as especificidades.

Seguimos construindo um mundo onde meninas e mulheres sejam livres no Brasil amefricano, por isso o Estatuto da Criança e do Adolescente e os enfrentamentos que fazem referência ao Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha (como o Julho das Pretas, a Marcha das Mulheres Negras, por exemplo) possuem mais conexões do que o que podemos dialogar até aqui. As meninas negras crescerão. Até lá continuaremos em marcha contra o racismo, contra a violência e pelo bem-viver.

 

Notas e Referências

Cerqueira, D. R. D. C., Bueno, S., Lima, R. S. D., Neme, C., Ferreira, H. R. S. A., Alves, P. P., ... & Armstrong, K. C. (2019). Atlas da Violência 2018.

_____________________. (2020). Atlas da Violência 2019.

Collins, P. H. (2019). Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Boitempo Editorial.

Federal, G. (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei federal, 8.

Fnpeti. (2019). Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. Trabalho infantil e trabalho infantil doméstico no Brasil. Brasília.

hooks, bell. (2006). Vivendo de amor. In: Werneck et al. O livro da saúde das mulheres negras. Rio de Janeiro: Pallas.

Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. Editora Schwarcz-Companhia das Letras.

Lorde, A. (2019). Irmã outsider: ensaios e conferências. Autêntica Editora.

Mbembe, A. (2018). Necropolítica. n-1 edições.

Nascimento, A. (2016). O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Editora Perspectiva SA.

Paulo, P. P. (2021). Uma em cada quatro mulheres foi vítima de algum tipo de violência na pandemia no Brasil, aponta pesquisa DataFolha. Disponível em:  https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/06/07/1-em-cada-4-mulheres-foi-vitima-de-algum-tipo-de-violencia-na-pandemia-no-brasil-diz-datafolha.ghtml. Acesso em: 07 jul. 2021.

Petrone, T. (2019). Prefácio à edição brasileira. In: Arruzza, C., Bhattacharya, T., & Fraser, N. (2019). Feminismo para os 99%: um manifesto. Boitempo Editorial.

Piedade, V. (2018). Dororidade. Nós.

Pinheiro, L. S., Lira, F., Rezende, M. T., & Fontoura, N. D. O. (2019). Os desafios do passado no trabalho doméstico do século XXI: reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados da PNAD contínua. IPEA.

PÚBLICA, A. B. D. S. (2020). São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Ano 13, 2019.

Relatórios de pesquisa NUPEGRE/Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. (2018). O desaparecimento forçado de meninas no Rio de Janeiro: Desafios do Sistema de Justiça – n. 1, 2018- . – Rio de Janeiro: EMERJ. 

 

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