Melhoramento genético de seres humanos: uma nova forma de consumo?  

31/08/2018

 Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Melhoramento genético é o meio pelo qual a ciência busca selecionar ou modificar o material genético de um ser vivo, procurando desenvolvê-lo com as características desejadas. Este processo já é utilizado há muito anos em áreas como a agricultura, para produzir frutas sem sementes ou aumentar a durabilidade das hortaliças, e na agropecuária, visando uma maior produção de leite.

Entretanto, as pesquisas avançaram e atingiram a genética humana. Em um primeiro momento, visavam apenas prevenir e tratar doenças. Agora, chegaram ao estágio de possibilitar a escolha de atributos físicos, trazendo controvérsia para o tema.

Na obra intitulada “Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética”, o filósofo americano Michael Sandel[i] traz à discussão o uso das modernas técnicas de reprodução humana assistida para escolher as características das crianças que serão geradas. Assim, sobre o tema de melhoramento genético, o autor apresenta dois casos bastante polêmicos que ajudarão na presente reflexão.

O primeiro, envolve um casal de lésbicas surdas que desejava ter um filho que, como elas, também fosse surdo. Para tanto, escolheram um doador de esperma cuja família possuía um histórico de cinco gerações de surdez. Assim, conseguiram o planejado.

A sociedade americana acusou as mulheres de, propositadamente, infligir uma deficiência ao bebê.

No segundo caso mencionado, um casal infértil publicou anúncios em jornais à procura de uma doadora de óvulos com as seguintes características: 1,80m de altura, atleta, sem histórico familiar de doenças e com avaliação de no mínimo 1.400 pontos em determinado exame de ensino do país (SAT). Como pagamento pelo óvulo, o casal oferecia US$ 50 mil.

A sociedade americana, neste caso, não protestou.

Mas há diferença entre as duas situações? E se ela existe, é tão significativa a ponto de uma merecer severas críticas da sociedade e a outra não?

Em meio às acusações, as mulheres surdas justificaram sua atitude afirmando que tinham orgulho de sua condição e que a surdez não era uma deficiência, mas um modo de vida único, com uma identidade cultural própria. Assim como tantas outras pessoas surdas, possuíam uma vida plena e desejavam passar esses valores ao seu filho. Então, deveríamos puni-las por pensarem diferente da maioria da população?

O segundo caso não envolvia uma deficiência, porém o fato de “encomendar” uma criança com traços genéticos tão específicos também gera um certo incômodo. Será que deveríamos permitir que a escolha individual chegasse a este estágio, tal qual ocorre na escolha de um produto? Pais (ou consumidores) com maior poder aquisitivo teriam o direito de pagar pela possibilidade de terem filhos mais bonitos e inteligentes?

Diferentemente de países que permitem o comércio de óvulos e espermatozoides (como alguns Estados dos EUA), o Brasil, por meio da Resolução nº 2168/2017 do Conselho Federal de Medicina, segue o entendimento de que os avanços da genética devem ser utilizados para tratar e prevenir doenças e não para manipular a natureza genética dos filhos, escolhendo seu sexo, altura, cor de olhos e cabelos ou tornando-os com inteligência acima da média.

A referida resolução é expressa ao dispor em seus Princípios Gerais que “as  técnicas  de  RA  não  podem  ser  aplicadas  com  a  intenção  de  selecionar  o  sexo (presença ou ausência de cromossomo Y) ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto para evitar doenças no possível descendente.” Inclui-se nesta exceção, doenças genéticas como a hemofilia[ii].

Da análise dos casos expostos e do posicionamento do órgão que regra a conduta dos médicos brasileiros (CFM), seria possível afirmar que o Brasil segue o caminho certo ao reprimir parcialmente o uso do monitoramento genético?

Defendo que sim. Entendo que neste caso, deve haver um limite. Não importa se a justificativa para o ato seja uma questão de valores éticos ou atributos físicos. É sempre repreensível “projetar” uma criança com características específicas. Até porque, o repreensível não está apenas em “projetar” o filho com deficiência (até porque as mulheres não viam a surdez como uma deficiência), mas em buscar capacidades físicas e cognitivas que os ergam acima da média geral. Escolher o tipo de filho que se deseja ter, como se escolhesse um produto em uma vitrine.

Compartilhando do pensamento de Sandel, valorizar os filhos como dádivas é aceitá-los como são e não os ver como objetos projetados por seus pais ou produtos de sua vontade e ambição. Consentir o contrário, seria como permitir o encontro da antiga eugenia com o novo consumismo.

 

Notas e Referências

[i] As obras mais importantes de Michael Sandel são: “Justiça: o que é fazer a coisa certa”, “Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética” e “O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado”.

[ii] Hemofilia é uma doença hereditária e incurável, transmitida pelo cromossomo X. Caracterizada como um distúrbio na coagulação e circulação do sangue que, quando não tratada, pode levar à morte por hemorragia.

 

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