Mediação em conflitos sobre responsabilidade civil – Por Fernanda Tartuce

24/01/2017

Coordenador: Gilberto Bruschi

1. Relevância do tema.

A premissa da adoção do meio adequado à abordagem de conflitos determina a importante consideração de elementos que confirmem a mediação como meio eficaz para tal mister.

A mediação tem potencial para ser empregada como técnica de composição em diversas modalidades de disputas. No cenário atual sua adoção não tem se limitado a controvérsias sobre interesses de ordem estritamente privada: a mediação tem se verificado em praticamente todos os setores nos quais a autocomposição pode se efetivar. Prova disso é que a mediação tem terreno fértil de desenvolvimento na abordagem de conflitos familiares cujo viés publicístico é notório; merece ainda menção a preconização da justiça restaurativa, que prevê a possível realização de mediação na esfera penal.

Por força do estímulo aos meios consensuais fomentado nos meios judiciário, acadêmico e legislativo, a tendência é que haja a gradativa supressão de restrições ao seu uso, de forma que, nas situações em que não se revele possível a autocomposição, a lei o diga expressamente (como ocorre na legislação sobre improbidade administrativa[1]).

Se o conflito versar sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis em que seja admitida alguma sorte de negociação[2] (havendo, portanto, indisponibilidade relativa), ele poderá ser objeto de mediação[3]; é o que se verifica nos conflitos cíveis que envolvem direito imobiliário, direito do consumidor, direito contratual, direitos das coisas etc.

As causas cíveis que hoje predominam no foro têm por objeto situações massificadas e interesses imediatos relevantes - como as demandas sobre locação, responsabilidade civil e relações de consumo. Em tais casos, geralmente, a solução não pode demorar[4] sob pena de haver um comprometimento considerável da relação jurídica e da condição da parte. Nessa perspectiva, a mediação pode se revelar útil para que os interessados obtenham respostas céleres, propiciando o alcance do acesso à justiça em um prazo razoável. 

2. Mediação e vínculo entre os envolvidos.

Costuma-se afirmar que os conflitos mais propícios a serem abordados pela mediação são aqueles em que o vínculo entre as partes é permanente e/ou continuado[5]; afinal, como elas continuarão convivendo, uma saída conjunta para os impasses pode lhes proporcionar melhores condições de continuar o relacionamento de forma salutar.

Mauro Cappelletti, ao desenvolver a noção de justiça conciliatória, entendeu-a como mais pertinente nos casos em que as pessoas são forçadas a conviver constantemente: em tais situações, enquanto a solução contenciosa poderia conduzir a uma maior e mais efetiva exacerbação de ânimos, uma solução conciliatória (coexistencial) seria vantajosa para todos[6].

No mesmo sentido afirma Humberto Dalla Bernardina de Pinho que a mediação há de ser utilizada prioritariamente em relacionamentos interpessoais continuados; em tais situações, a relação entre as partes subsistirá após a solução do conflito (quer as partes assim o queiram ou não), como nos casos de cônjuges, familiares, afins, vizinhos e associados[7].

Tal conclusão se revela irrepreensível: se as partes travam contatos reiterados, é possível que problemas adicionais surjam e até se agravem em virtude do mau tratamento do conflito e de sua suposta “finalização” pela decisão impositiva de um terceiro alheio à relação.

É fácil constatar que de nada adianta a decisão proferida por um julgador quanto à relação continuada se o conflito não foi adequadamente trabalhado: ele continuará existindo, independentemente do teor da decisão, de modo que costuma ser apenas uma questão de tempo “para que volte a se manifestar concretamente[8]”.

Apesar de se reconhecer que nos liames de trato sucessivo a mediação tem pertinência evidente, variados tipos de conflitos civis podem ser enfrentados pela mediação de modo eficiente. A condição pessoal das partes, o grau de disponibilidade do direito e a importância do cumprimento voluntário e célere do ajuste serão os condutores no encaminhamento das partes à mediação.

Interessante estudo empreendido pelo Ministério da Justiça[9] buscou identificar as iniciativas existentes em nosso país no tocante à adoção de meios consensuais. Em tal pesquisa, constatou-se a seguinte verificação seguinte em termos de objeto litigioso:

Distribuição dos programas de administração alternativa de conflitos segundo área de atuação

Tipo de programa Freqüência %
Conflitos interpessoais em geral Conflitos de gênero/família Conflitos trabalhistas Conflitos de propriedade e posse Conflitos em relações de consumo Acidentes de trânsito Moradia, saúde, educação Não responde/recusa Total 40 18 2 1 1 1 1 3 67 59,7 26,9 3,0 1,5 1,5 1,5 1,5 4,5 100

Fonte: Sistemas de administração alternativa de conflitos – Secretaria da Reforma o Judiciário/ Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) – Brasil 2004 (Tabela 5.4). 

Os dados demonstram que o espectro de possibilidades de uso dos meios consensuais é considerável: ele não se limita a relações continuativas, mas tem o condão de alcançar grande parte dos conflitos interpessoais instaurados entre pessoas desde que se revele possível a negociação de pelo menos alguns dos pontos controvertidos.

3. Mediação e responsabilidade civil.

Diante da perpetração de danos e da consequente aplicação das regras de responsabilidade civil, há polêmica sobre a pertinência da mediação como meio adequado para compor controvérsias ligadas a pretensões indenizatórias.

Alguns autores entendem não ser o caso de aplicação de tal método autocompositivo quando a situação litigiosa encerrar uma ocasião episódica sem continuidade na relação[10].

Tal assertiva, todavia, merece uma reflexão mais detida. É de todo recomendável evitar a demora e o inadimplemento no ressarcimento de prejuízos. Para efetivar o princípio da reparação integral de forma eficiente e adequada, é conveniente tentar, consensualmente, o reconhecimento da responsabilidade e a obtenção do pagamento devido com a maior presteza possível. Para tanto, é viável que as partes se valham da mediação para que cada uma possa, refletindo e ponderando sobre sua contribuição ao nexo causal danoso, resgatar sua responsabilidade no evento, cumprindo espontaneamente eventual ajuste entabulado.

Revela-se também pertinente distinguir entre as responsabilidades contratual e extracontratual por haver diferença no liame estabelecido entre as partes.

Na responsabilidade contratual, sendo interessante a manutenção de vínculos profícuos para uma potencial relação futura, a mediação revela-se um importante mecanismo. Valem, assim, os argumentos favoráveis à adoção da mediação no direito contratual; em uma perspectiva de futuro, o estabelecimento de uma boa relação e uma eficiente comunicação podem ensejar novas possibilidades de negócios.

No que tange à responsabilidade extracontratual, pode parecer, em um primeiro momento, que a mediação seja desinteressante por não haver perspectiva de futuro a ser preservada entre as partes por falta de vínculo entre os envolvidos no ilícito extracontratual. Todavia, outros objetivos devem ser também considerados.

Enquanto técnica que procura resgatar a responsabilidade das partes, proporcionar a elas partes, logo após a ocorrência do fato causador de prejuízos a chance de se comunicar e avençar sobre como minimizar os efeitos danosos é de salutar ocorrência.

A mediação se revela interessante para a vítima, para o ofensor e para a sociedade por demonstrar que a paz e o equilíbrio podem ser alcançados de forma mais branda do que pelos percalços trilhados na longa via jurisdicional.

Eis um exemplo interessante de acidente de trânsito em que a mediação foi realizada com proveito: Gesilei atravessava a rua quando foi atropelado por Zelito. Reconhecendo-se culpado e consternado, este se propôs imediatamente a ajudar a vitima no que pudesse. Após leva-lo ao hospital, passou a busca-lo todos os dias em casa para leva-lo a sessões de fisioterapia. Um mês depois, como Gesilei pediu-lhe ajuda financeira (já que, autônomo, precisou parar de trabalhar), Zelito se afastou e parou de colaborar. Com a mediação, ambos puderam se comunicar novamente e combinar uma forma adequada de reparação: Zelito voltou a levar Gesilei às sessões de fisioterapia e também o levou à autarquia previdenciária, ajudando-o na entrada no pedido de beneficio até que pudesse ajuda-lo financeiramente.

Por fim, deve-se considerar que a mediação pode ajudar a corrigir distorções verificadas nas demandas apresentadas em juízo. Algumas vezes as partes deixam de estabelecer uma saída consensual em virtude de interpretações equivocadas sobre direitos e perspectivas, como no caso de demandas de reparação por danos morais em que a parte (e/ou seu advogado) crê no alcance de cifras altíssimas.

Em casos de “negativação” do nome nos serviços de proteção ao crédito, um pedido de verbas elevadas dificilmente será deferido pelo magistrado. O mediador poderá comunicar-se com a parte e, valendo-se da confidencialidade, obter dados sobre interesses, necessidades e expectativas propondo reflexão sobre a realidade e as possibilidades concretas de sucesso de suas pretensões.

Percebe-se, assim, ser importante a atuação do mediador para que a responsabilidade civil opere de forma ampla e eficiente na reparação dos danos perpetrados à vítima, cuja ocorrência, por afetar o equilíbrio social, deve ser minimizada (ou preferencialmente anulada) da forma mais rápida e eficaz possível.


Notas e Referências:

[1] Lei 8.429/92, art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar. § 1º É vedada a transação, acordo ou conciliação nas ações de que trata o caput.

[2] Nos termos do art. 3º da Lei n. 13.140/2015, pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação; segundo o § 2º do dispositivo, o consenso das partes envolvendo direitos indisponíveis, mas transigíveis, deve ser homologado em juízo, exigida a oitiva do Ministério Público.

[3] SALES, Lilia Maia de Morais. Justiça e mediação de conflitos, SALES, Lilia Maia de Morais. Justiça e mediação de conflitos. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 56-57.

[4] PERROT, Roger. O processo civil francês na véspera do século XXI. Tradução de José Carlos Barbosa Moreira. Revista de Processo, São Paulo, n. 91, ano 23, p. 203-212, jul./set. 1998, p. 205.

[5] O Novo CPC aderiu a esse parâmetro: nos termos de seu art. 165 § 3º “o mediador, que atuará preferencialmente nos casos em que houver vínculo anterior entre as partes, auxiliará aos interessados a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos”.

[6] CAPPELLETTI, Mauro. Os métodos alternativos de solução de conflitos no quadro do movimento universal de acesso à justiça, Revista de Processo, São Paulo, n. 74, ano 19, abr./jun. 1994, p. 91.

[7] PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Mediação: a redescoberta de um velho aliado na solução de conflitos. In: Mascarenhas, Geraldo Luiz Prado (Coord.). Acesso à justiça e efetividade do processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 123.

[8] PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Mediação, p. 119.

[9] Acesso à justiça por meios alternativos de solução de conflitos, p. 34. Disponível em: http://www.acessoajustica.gov.br/pub/_downloads/downloads_acesso_justica.pdf >. Acesso em: 21 ago. 2014.

[10] Representando tal vertente, Humberto Dalla Bernardina de Pinho assevera que quando a relação entre as partes pode ser considerada “descartável”, como em uma ação indenizatória por um ato ilícito qualquer (como um acidente de veículo) não se justifica a adoção da mediação (Mediação, p. 123).


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Conheça a obra Mediação nos Conflitos Civis, da autora Fernanda Tartuce.

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