Me vê uma musa aí: a mulher, o judiciário e a propaganda de cerveja

22/07/2016

Por Amanda Muniz Oliveira - 22/07/2016

Pois justamente por focar na “beleza” das mulheres, a Companhia de Bebidas das Americas - Ambev, foi condenada pela 7ª Câmara de Direito Público de São Paulo ao pagamento de multa no valor de R$ 305 mil reais, pela divulgação da peça publicitária Musa do Verão, veiculada em rede nacional no ano de 2006. A cena é corriqueira: geralmente há um bar, sorrisos, moças “bonitas” e homens empolgados. Quando ela é servida, algo cômico ocorre, atrelando-se o produto à felicidade de quem o consome. Com algumas poucas exceções, os comerciais de cerveja recorrem a este clichê genérico, ora enfatizando o humor, ora evidenciando os atributos femininos.

Resumidamente, eis do que se trata: em um concurso de miss feito à beira mar, um consumidor de cerveja afirma que se o criador da cerveja Skol também tivesse criado a Musa do Verão, ela seria acessível a todos os homens. Logo, em um devaneio, ele imagina uma fábrica de clones replicando a bela musa e vendendo estes clones para diversos homens, de diversas idades.

Este caso suscita dois pontos principais: o primeiro, refere-se ao papel das mídias – inclusive propagandas - em nosso cotiado; o segundo, trata da utilização do Direito para vetar certos discursos, compreendidos como inadequados.

Vamos ao primeiro. Mais que a era das imagens, vivemos na era das mídias. A seleção de músicas no celular, os quadrinhos expostos na banca de revista, os aguardados lançamentos hollywoodianos no cinema mais próximo, as últimas notícias no jornal televisivo: toda esta gama de aparatos comunicativos pode ser agrupada por uma simples palavra de cinco letras: mídia.

Endemonizada quando parcial, sacralizada quando traz representatividade, a mídia, mais do que nunca, divide opiniões e gera acirrados debates. Theodor Adorno, um dos primeiros pesquisadores a apontar seus malefícios, criou até mesmo um termo próprio para caracterizá-la: Indústria Cultural[1]. Marcada pela massificação das obras de arte, com o objetivo único de auferir lucro das diversas audiências, é o pensador da chamada Escola de Frankfurt[2] que irá teorizar e problematizar os discursos midiáticos, desde a desvalorização de obras de arte clássicas, à alienação e bestialização das audiências por parte desta indústria.

Timidamente contrariado pelo seu então bolsista[3], Walter Benjamin, para quem a perda da aura da obra de arte[4] com o advento das mídias seria algo positivo uma vez que tornava os conteúdos mais acessíveis, Adorno irá rever suas atitudes já ao fim da vida, quando empiricamente descobrirá que o público não é tão alienado como ele próprio pensava, chegando por vezes a duvidar das informações veiculadas pela mídia[5].

Mas será o filósofo americano Douglas Kellner que irá propor uma outra abordagem do produto midiático, desmistificando preconceitos e levantando novas questões:

Há uma cultura veiculada pela mídia cujas imagens, sons e espetáculos ajudam a urdir o tecido da vida cotidiana, dominando o tempo de lazer, modelando opiniões políticas e comportamentos sociais, e fornecendo o material com que as pessoas forjam sua identidade. O rádio, a televisão, o cinema e os outros produtos da indústria cultural fornecem os modelos daquilo que significa ser homem ou mulher, bem sucedido ou fracassado, poderoso ou impotente[6].

Neste sentido, são os diversos pontos de vista sociais que circulam na sociedade que sofrerão influência direta dessas veiculações midiáticas, seja para ratifica-los ou retificá-los. A típica donzela em perigo, o herói disposto a enfrentar o mundo, o intelectual reservado que fracassa no amor, o advogado corrupto e a miss como modelo ideal de mulher, que pode inclusive ser comprada, mais do que personagens inocentes e despretensiosos, aparecem como estereótipos, naturalizando e reforçando comportamentos padrões desejáveis. Tratam-se do que o historiador Elias Thomé Saliba chamou de imagens canônicas:

imagens padrão ligadas a conceitos chaves de nossa vida social e intelectual. Tais imagens constituem pontos de referência inconscientes sendo, portanto, decisivas em seus efeitos subliminares de identificação coletiva. São imagens de tal forma incorporadas em nosso imaginário coletivo, que as identificamos rapidamente[7].

Assim, ao veicular uma propaganda na qual a mulher ideal pode ser comprada, reforça-se a ideia da mulher que segue os padrões de beleza vigentes como um produto a ser consumido. Pelo menos foi a impressão que teve o juiz Luiz Sérgio Fernandes de Souza, relator do processo:

O argumento da peça publicitária é mais do que infeliz, pois “coisifica” a mulher, servindo-a, mediante entrega, para desfrute do consumidor. Em outras palavras, nela, o gênero feminino transforma-se em objeto de consumo. Alguém poderia dizer que se trata apenas de um “clone” de mulher, e não de uma mulher de carne e osso. Mas as propagandas nunca são feitas de pessoas de carne e osso, pelo que o argumento cede diante do poder de sugestão que o marketing exerce. Tampouco se venha dizer, como afirma a autora, que apenas grupos feministas se mostraram escandalizados com a campanha “Musa do Verão”. O que importa é que nela há discriminação do sexo feminino, a justificar a lavratura do auto de infração e a imposição de multa, com fundamento na regra do artigo 37, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor. A luta pelo espaço igualitário da mulher na sociedade é tema que ganha cada vez mais força no mundo. No momento em que a sociedade busca proscrever a ideia de que o gênero feminino é mero objeto de prazer, não se pode legitimamente sustentar que a valorização da mulher seja vista apenas como uma bandeira de determinado setor (radical) da sociedade. Todos estão envolvidos com a superação de estereótipos grosseiros, lugar comum sempre presente quando o assunto é publicidade[8].

O juiz relembra ainda que propagandas nas quais mulheres casadas apanhavam dos maridos eram comuns ainda na segunda metade do século XX – o que naturalizava a questão da violência doméstica.

Compartilha desta opinião o juiz Moacir Peres, revisor do processo. Para ele:

No caso dos autos, a propaganda de cerveja utiliza-se da figura de uma mulher para enaltecer a qualidade do seu produto. Para tanto, afirma que, se a fabricante da cerveja “fabricasse” a “Musa do Verão”, uma moça atraente vestindo um biquíni, essa seria distribuída a qualquer homem que se interessasse. Com isso, cria a ideia de que a mulher em questão é um bem a ser produzido em série e livremente consumido pelos homens. Coisificando a mulher, a peça discrimina, separa, aparta os gêneros, tratando o sexo masculino como o consumidor e o feminino como o bem a ser consumido, que deve ser perfeito (a propaganda faz alusão a um exemplar da “Musa” que teria “vindo com defeito”) para satisfazer aos desejos dos consumidores[9].

O revisor salienta ainda as mudanças sociais pelas quais perpassamos, citando como exemplo as campanhas feministas realizadas em redes sociais, como #meuprimeiroassedio e #meuamigosecreto. Ademais, argumenta que a liberdade de expressão nos casos relativos ao direito consumerista é menos ampla, pois o consumidor aparece como sujeito vulnerável, já que não escolhe onde ou quando irá assistir propagandas, sendo assim, mais influenciável.

Aqui, é preciso fazer uma observação: é certo que a publicidade pode influenciar no desejo final do consumidor, mas é preciso, também, destruir o mito de que o espectador é um sujeito passivo, que tal qual uma esponja absorve e internaliza toda e qualquer mensagem que lhe é transmitida. Como mencionado anteriormente, ao realizar experimento de natureza empírica, Adorno, um dos grandes críticos da Indústria Cultural conclui que a audiência não era tão passiva quanto ele próprio supunha. Posição similar tem Kellner, para quem o público é nada mais nada menos do que uma esfinge[10]: é impossível prever, a priori, os impactos que determinados discursos midiáticos causarão no telespectador, justamente porque este é um indivíduo dotado de subjetividade e vivência singular. É possível que as mensagens sejam absorvidas de maneira distinta da qual pretendia o emissor, ou que sejam ressignificadas. Não por acaso, um dos maiores desafios dos pesquisadores que se propõe a utilizar mídias como fontes (músicas, filmes, seriados, revistas, dentre muitos outros) está justamente na recepção e impacto da obra perante o público.

Compreendidos estes aspectos no que se refere a mídia, apresento, por fim, o voto divergente do juiz Coimbra Schmit, que permaneceu como voto vencido. Para ele, a peça publicitária apareceu como mero entretenimento cômico, divertido, sem maiores ofensas à dignidade da mulher:

Nem por isso, data venia, seu julgamento deve dissociar-se da realidade: é fato que, nas praias, os trajes femininos são cada vez mais sumários. É fato ser o ideal da musa componente do imaginário masculino e isso desde tempos bem antigos. O que fez o comercial sob julgamento? Transpôs ao mundo da  publicidade essa realidade de nossos balneários ao onírico do público destinatário da mensagem, em filme de grande impacto por sua originalidade, irradiada da intensa dose de criatividade com que se houveram seus autores. Publicitários que bem souberam sintetizar esses fatores em peça recheada pelo BOM humor característico da picardia do brasileiro associado à alegria imanente a reuniões em cervejarias: in vino veritas.., in cerivisia felicitas! E o que se faz ao punir o anunciante com pesada multa é, justamente, cercear essa criatividade, inerente à liberdade de expressão garantia fundamental consagrada na Constituição – mediante ato de censura econômica, apenas porque alguns viram a ousadia como ofensa à condição feminina. Definitivamente, não foi essa minha leitura. [...]E vou além: acatar a tese defendida pela apelante significa ferir de morte a publicidade brasileira, instigando seus agentes a ousar apenas em cenários neutros, com locutores trajados formalmente e textos cuidadosamente revistos a fim de que suscetibilidade alguma possa vir a ser ferida, sob pena de pesadas sanções. Claro cenário de materialização da pior das censuras: a autocensura![11]

É preciso ter em mente que as veiculações midiáticas nunca são inocentes ou neutras: como fruto da ação humana, as obras carregam tanto parte da subjetividade de seu Autor, como elementos representativos do contexto social e histórico nos quais foi produzido. A subjetividade é inerente a estes trabalhos. Porém, também não se pode incorrer na falácia de que os textos midiáticos são intrinsecamente positivos ou negativos, opressores ou libertadores. Para Kellner,

os textos culturais não são intrinsecamente ‘conservadores’ ou ‘liberais’. Ao contrário, muitos textos tentam enveredar por ambas as vias para cativar o maior público possível, enquanto outros difundem posições ideológicas, estratégias narrativas, construção de imagens e efeitos (por exemplo, cinematográficos, televisivos, musicais) que raramente se integram numa posição ideológica pura e coerente. Tentam oferecer algo a todos, atrair o maior público possível e, por isso, muitas vezes incorporam um amplo espectro de posições ideológicas. Além disso [...], certos textos dessa cultura propõe pontos de vista ideológicos específicos que podemos verificar estabelecendo uma relação deles com os discursos e debates políticos de sua época, com outras produções culturais referentes a temas semelhantes e com motivos ideológicos que, presentes na cultura, estejam em ação em determinado texto[12].

Em outras palavras, a mídia é alimentada pelo lucro. Se a propaganda da cerveja Skol foi veiculada em rede nacional com todas essas características depreciativas ao feminino, não se trata da ação isolada de um publicitário, mas de um contexto social no qual propagandas deste tipo fazem sucesso e geram algum retorno. A reação negativa por parte de alguns setores sociais que permitiram o questionamento da propaganda em juízo é um sintoma promissor de que existem mudanças e rupturas em andamento,  que não mais aceitarão ou consumirão este tipo de discurso.

Deixei, por fim, a segunda questão para o final, pois para ela não ofereço resposta. Como bem lembrado pelo juiz Schmit, a vedação deste tipo de discurso por parte do judiciário não poderia acabar incorrendo em censura? Afinal, o que seria exatamente, uma propaganda abusiva? Neste caso específico, foi possível observar de que não se trata de questão pacífica, mas que depende em muito da subjetividade do julgador. Me reporto aqui ao caso da banda U.D.R., condenados pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que considerou suas músicas ofensivas[13]. Em sua defesa, o grupo alegou que as canções eram permeadas de sátiras e ironias, que formal mal interpretadas pelos desembargadores. Após a decisão, a banca encerrou suas atividades, despertando a indignação de fãs.

Neste sentido, é preciso questionar até que ponto o judiciário seria a via mais adequada para se impedir a veiculação de determinados discursos, sob pena de império da censura. Em casos como esse, boicotes, manifestações e cartas de repúdio contra as empresas, a partir do próprio público consumidor, não seria uma forma mais eficaz de demonstrar o descontentamento e a necessidade de novas propagandas, novas músicas, novos filmes, nos quais a mulher finalmente se libertaria de atributos impostos desde tempos antigos? Não há – e nem deveria haver – uma resposta fácil. Mas são questões que precisam ser pensadas e debatidas, especialmente em âmbito jurídico.


Notas e Referências:

[1] ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. A Indústria Cultural: O Esclarecimento como mistificação das massas. In: ADORNO, Theodor; Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 99-138.

[2] O Instituto de Pesquisa Social, vinculado à Universidade de Frankfurt, mais tarde conhecido como Escola de Frankfurt, era um espaço no qual diversos autores, como Theodor Adorno, Max Horkheimer, Erich Fromm, Herbert Marcuse e Walter Benjamin, dentre muitos outros, procuravam compreender o desenvolvimento das sociedades capitalistas no século XX, a partir de um paradigma marxista. Em razão de sua abordagem interdisciplinar, assuntos diversos foram abordados como política, movimentos sociais, economia, direito e manifestações culturais.

[3] Conforme Marcos Napolitano (2005, p.24), Walter Benjamin era bolsista no Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt e dependia dos pareceres de Adorno para continuar a receber o benefício. Mais informações em: NAPOLITANO, Marcos. História e Música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

[4] A aura seria o caráter sacro responsável pela atitude reverencial do público em relação a obra de arte até então. A perca dessa característica teria auxiliado no maior acesso a tais bens. Mais informações em: BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas – Volume I. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 165-196.

[5] Em síntese, a mídia estava veiculando incessantemente o casamento de monarcas holandeses como o acontecimento político do século. Adorno realiza um questionário com telespectadores diversos, perguntando-lhes sobre a importância política do evento e é surpreendido quando o resultado da pesquisa mostra que a maioria dos entrevistados não encarava o ocorrido como tal, mas como mera trivialidade. Mais informações em: ADORNO, Theodor W. Tempo Livre. In: ALMEIDA, Jorge M. B. de (org). Indústria Cultural e Sociedade: Theodor Adorno.  São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 103-116.

[6] KELLNER, Douglas. A cultura da Mídia: estudos culturais, identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru, SP: EDUSC, 2001. P. 09.

[7] SALIBA, Elias Thomé. As imagens canônicas e a história. In: CAPELATO, Maria Helena; [et. al.]. Historia e cinema. São Paulo: Alameda, 2007. p. 88.

[8] Disponível em: < http://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/6/art20160620-03.pdf>. Acesso em 19 jul. 2016. P. 09.

[9] Disponível em: < http://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/6/art20160620-03.pdf>. Acesso em 19 jul. 2016. P. 19.

[10] KELLNER, Douglas. A cultura da Mídia: estudos culturais, identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru, SP: EDUSC, 2001. P. 90.

[11] Disponível em: < http://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/6/art20160620-03.pdf>. Acesso em 19 jul. 2016. P. 27-28.

[12] KELLNER, Douglas. A cultura da Mídia: estudos culturais, identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru, SP: EDUSC, 2001. P. 123.

[13] Mais informações em: < http://www.otempo.com.br/cidades/justi%C3%A7a-condena-m%C3%BAsicos-de-bh-por-letras-consideradas-impr%C3%B3prias-1.1316609>. Acesso em 19 jul. 2016.


Amanda Muniz OliveiraAmanda Muniz Oliveira é Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – PPGD/UFSC. Mestra em Direito pelo PPGD/UFSC. Bacharela em Direito pelas Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros - MG – FADISA. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Conhecer Direito – NECODI (Cnpq/UFSC). Pesquisadora no Direito das Mulheres (CCJ/UFSC). Bolsista CAPES. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3656942869359698. E-mail: amandai040@gmail.com.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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