Por Antonio José F. de S. Pêcego - 07/03/2015
O direito penal que se legitima num Estado Democrático de Direito, fundado no princípio da dignidade humana, trabalha com a responsabilidade penal do agente sobre o fato, não sobre o autor, sendo defeso se falar em direito penal do autor.
Nessa linha, das oito circunstâncias judiciais constantes do art. 59 do CP a serem enfrentadas quando da fixação da pena-base, é inegável que os antecedentes criminais, a conduta social e a personalidade dizem respeito diretamente ao autor, o que já fez, ao seu modo de vida, ao que ele é ou a sua maneira de ser, mas não ao fato-crime em julgamento, mesmo depois da reforma da Parte Geral de 1984 do Código Penal em que a conduta social foi dissociada dos maus antecedentes.
No mesmo sentido, mas já na fase seguinte de aplicação da pena, quando da análise da existência de eventuais agravantes, a reincidência (CP; art. 61, I) igualmente diz respeito ao passado do autor, do seu envolvimento com outros crimes, pelo que já fez ou pelo que já foi condenado e pena aplicada eventualmente já cumprida, mas nada diz respeito ao fato em julgamento.
Sem embargo, não há lógica que para se fixar uma pena sobre a prática de um fato delituoso, tenha que se levar em consideração o passado no crime do agente, o que ele é, faz ou deixa de fazer de sua vida social, ou até mesmo como apresenta sua personalidade, tendências estas que, em regra, fogem ao conhecimento jurídico, mas não ao da psicologia, antropologia, sociologia ou psiquiatria, estes que não são comuns aos magistrados, não podendo se aceitar a costumeira personalidade voltada para a prática de crime, ou personalidade com tendências a desvio de comportamento, ambas com base em nefastos antecedentes policiais que, sequer, podem ser considerados como maus antecedentes ou reincidência em crime doloso, em respeito ao princípio constitucional da não culpabilidade (inocência).
Assim, uma coisa não tem nada haver com a outra, já que o que ocorreu no passado não pertence ao presente e nem ao futuro.
Nessa linha, etiqueta-se o agente com maus antecedentes, com um estigma que passa a acompanhá-lo socialmente pelo resto de sua vida num país em que se veda a prisão perpétua, o que torna ilógico e não ocorre com a reincidência (CP, art. 64, I) e os próprios maus antecedentes.
Aceitar esse efeito estigmatizante dos maus antecedentes, é ir de encontro a tudo que a moderna visão da criminologia crítica recomenda, colocando o condenado de outrora por toda a sua vida à margem da sociedade.
Financiamos o Estado para que promova a ressocialização do condenado, mas na prática, inexiste esta ação estatal que atua com coculpabilidade com sua inércia ou omissão, por isso mesmo sustentamos que em respeito à dignidade da pessoa humana - princípio básico do nosso Estado Democrático de Direito - essa mácula dos maus antecedentes criminais deveriam sumir dos registros do agente decorridos o igual prazo de cinco anos, aplicável aos reincidentes, tendo como termo a quo a data do cumprimento ou extinção da pena, como advoga Paganella Boschi.[1]
Nesse ponto, sobre o caráter perpétuo dos maus antecedentes, trazemos importante lição de Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho:
Importante, sem dúvida, direcionarmos as devidas críticas ao instituto, o que será feito desde dois pontos de vista. Em primeiro lugar, imperativa é a crítica constitucional sobre o caráter perpétuo dos antecedentes e a visualização de critério temporal restritivo. Em segundo lugar, fundamental é a sua desconstrução desde o marco principiológico da secularização.
Ensinam Zaffaroni e Pierangeli que a norma constitucional do art. 5º, XLVII, b, que veda a prisão perpétua, não pode ser lida de forma restrita. Segundo os autores, o dispositivo constitucional é indicador do princípio da humanidade e racionalidade das penas, conforme o qual as penas cruéis estão proscritas do direito penal brasileiro. Todavia, há um sucedâneo que deve ser depreendido do princípio constitucional: A exclusão da pena perpétua de prisão importa que, como lógica consequência, não haja delitos que possam ter penas ou consequências penais perpétuas... Por mais grave que seja um delito, a sua consequência será, para dizê-lo de alguma maneira, que o sujeito deve 'pagar a sua culpa', isto é, que numa república se exige que os autores de delitos sejam submetidos a penas, mas não admite que o autor de um delito perca a sua condição de pessoa, passando a ser um indivíduo 'marcado', 'assinalado', estigmatizado pela vida afora, reduzido à condição de marginalizado perpétuo.[2]
A propósito, o Superior Tribunal de Justiça, em decisão memorável de outrora, já se manifestou nesse sentido:
Direito Penal. Reincidência. Antecedentes. O art. 61, I do CP determina que, para efeito da reincidência, não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração anterior houver decorrido período superior a cinco anos. O dispositivo se harmoniza com o Direito Penal e a Criminologia modernos. O estigma da sanção criminal não é perene. Limita-se no tempo. Transcorrido o tempo referido, evidenciando-se a ausência de periculosidade, denotando, em princípio, criminalidade ocasional. O condenado quita sua obrigação com a Justiça Penal. A conclusão é válida também para afastar os antecedentes. Seria ilógico afastar expressamente a agravante e persistir genericamente para recrudescer a sanção aplicada.[3]
Como é sabido, a reincidência, entre outros efeitos, agrava a pena privativa de liberdade, impõe regime de cumprimento mais gravoso, veda a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, o sursis da pena na prática de delito doloso, a aplicação de algumas minorantes, a suspensão condicional do processo, a prestação de fiança, interrompe a prescrição, pode revogar a reabilitação criminal, revoga o sursis da pena e o livramento condicional.
O Estado falha no fim de ressocializar todo o condenado que passa pelo falido sistema prisional, e ainda quer fazer dele novo culpado pelo desequilíbrio social causado com sua nova ação por não ter se reintegrado à sociedade, sem que tenha lhe dado qualquer chance concreta de reinserção, punindo-o novamente de forma exacerbada pelo crime praticado que nada teve haver com o anterior, como se isso fosse gerar uma prevenção especial quando não passa da aplicação da velha e ultrapassada teoria absoluta da pena que prega a retribuição em que se paga o mal pelo mal; vale dizer, fere o princípio constitucional da individualização da pena (direito-garantia fundamental em que o Estado deve ter um atuar de defesa e proteção), ao praticar o malfadado ne bis in idem quando torna a punir o agente no novo fato com mais gravidade em virtude do fato anterior, com base na nefasta responsabilidade penal objetiva.
Sobre esse aspecto, trago a colação preciosa lição de Xavier de Souza:
O próprio Estado que pune não deixa de ser um dos estimuladores da reincidência, na medida em que submete o recluso a um processo dessocializador e de aculturação, desestruturando sua personalidade por meio de um sistema penitenciário desumano e que marginaliza, não sendo razoável que exacerbe a punição a pretexto de que o agente desrespeitou a sentença anterior, ou porque desprezou a advertência formal contida na condenação anterior, revelando assim uma culpabilidade mais intensa.
Portanto, o agravamento da pena em razão da reincidência, soa como de duvidosa constitucionalidade diante do princípio non bis in idem, que possui assento no princípio constitucional da legalidade; porquanto, difícil compreender como um indivíduo possa ser duplamente punido, isto é, como um fato criminoso que desencadeou a primeira condenação possa servir também de fundamento para o aumento da pena-base na condenação por delito posterior. Admitir-se isso, haver-se-ia de admitir como possível também no Estado Democrático de Direito, a existência de um Direito Penal atado ao tipo de autor – em razão de ser este reincidente-, constituindo tal duplicidade uma contradição lógica.[4]
Nessa linha, com a devida vênia, não se sustenta o entendimento jurisprudencial de que:
A reincidência, como circunstância exasperante, não pode e nem deve ser recebida como degenerativa ao direito do autor, uma vez que é o próprio quem dá causa à mesma, numa demonstração de que a punição anterior não serviu para coibi-la, evidenciando desprezo à lei e persistência na prática delitiva, não havendo, assim, que se falar em ferimento à individualização da pena (ao contrário, trata-se de um critério desta), ou mesmo incentivo a um estigma que impede a integração social do apenado, já que, repetindo, referida circunstância, além de advir de lei codificada, pretende punir aquele que teima em permanecer na reiteração delitiva.(5)
Nesse ponto e por essas razões, sustentamos o Estado atua com coculpabilidade na reincidência que dá causa aos maus antecedentes criminais, sendo que tais fatores quando da aplicação da pena deveriam, no estado em que se encontra o atual sistema penal, serem considerados atenuantes numa visão crítica, já que o sistema atual macula a dignidade da pessoa humana que é inata à vida e ao livre desenvolvimento da personalidade do cidadão, o princípio da individualização da pena (direito garantia fundamental), o princípio ne bis in idem, a racionalidade da lei penal, das penas, a culpabilidade e a integridade física e moral (Direito Humano Fundamental) de todo aquele que é apenado pela segunda vez - agora por meio da ultrapassada responsabilidade penal objetiva - pelo mesmo fato em razão da ineficácia da máquina estatal que dá azo à reiteração criminosa.
Sobre esses aspectos, autorizada jurisprudência já se posicionou nesse sentido:
Prestigiar a reincidência importa em dar ares de legalidade ao direito penal do autor e puni-lo pelo que ele é, estigmatizando-o a partir das concepções patológicas de Lombroso.(6)
Impor a reincidência para majoração da sanção fere o princípio da individualização da pena e o princípio do non bis in idem.(7)
Sem embargo há recente decisão à unanimidade de oito Ministros do STF no RE 453000/RS, em que se reconheceu a constitucionalidade da aplicação da reincidência, forçoso se constatar, como Claus Roxin, já se posicionou a jurisprudência da Corte Interamericana dos Direitos Humanos (Caso Fermín Ramírez contra Guatemala, sentença de 20.06.2005), conforme noticia Luiz Flávio Gomes (8), e também Eugenio Raúl Zaffaroni como o próprio STF noticia (9):
Voto dissidente proferido pelo Min. Zaffaroni na Corte Suprema Argentina utiliza precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos na aplicação de pena
Em julgamento ocorrido perante a Corte Suprema Argentina, o eminente Min. Zaffaroni, apesar de ter sustentado posição que restou vencida, proferiu voto que acolhia o recurso extraordinário interposto perante aquela Alta Corte e, consequentemente, tornava sem efeito a decisão que condenou o recorrente à prisão, por porte de arma de fogo de uso civil sem a devida autorização legal, agravado pelo fato de este já ter antecedentes penais por crimes contra pessoas.
A razão pela qual se havia aplicado uma pena mais gravosa diz respeito a uma situação pessoal do réu (a existência de condenações anteriores ou ações judiciais pendentes), o que excede a culpabilidade pelo ato pelo qual o requerente está sendo julgado e se manifesta como a aplicação de uma forma irregular de reincidência. Zaffaroni se baseou no pronunciamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos de que “qualquer agravamento de pena ou de suas modalidades de execução em função de reincidência regida pelo art. 50... deve ser considerada inconstitucional, pois demonstra um tratamento diferenciado de pessoas, que não se vincula nem com o ilícito que se pretende punir, nem com o grau de culpabilidade do autor em relação a este, mas sim, leva em consideração características próprias do indivíduo que excedem o ato praticado”.
O eminente Ministro declarou que do mesmo modo que o artigo 50 do Código Criminal é inconstitucional quando usado para aumentar a pena de maneira geral, o artigo 189, inciso 2, parágrafo 8° é certamente inconstitucional, enquanto aumenta a pena imposta em razão de situações específicas que não estejam ligadas ao comportamento do agente que está sendo reprovado e é uma violação ao princípio da culpa e da garantia do ne bis in idem, assim como aumenta a pena do réu por razões pessoais.
Em decisão recentíssima, o STF que ainda não pacificou sobre o tema dos maus antecedentes, se posicionou por meio do Ministro Dias Tóffoli que “o homem não pode ser penalizado eternamente por deslizes do seu passado, pelos quais já tenha sido condenado e tenha cumprido a reprimenda que lhe foi imposta em regular processo penal”(10), bem como que a “interpretação do disposto no inciso I do artigo 64 do Código Penal (que trata da reincidência) deve ser no sentido de se extinguirem, no prazo ali preconizado, não só os efeitos decorrentes da reincidência, mas qualquer outra valoração negativa por condutas pretéritas praticadas pelo agente”(11), o que é um sinal de que podem haver mudanças por meio do RE 593.818/SC, da Relatoria do Ministro Roberto Barroso. Caso de Repercussão Geral em que “nele se discute se as condenações transitadas em julgado há mais de cinco anos devem ser consideradas como maus antecedentes na fixação da pena-base”. (12)
Na linha de tudo que foi exposto, filiamos-nos àqueles que entendem indevido num direito penal do fato se considerar os maus antecedentes e a reincidência, ou seja, o passado do agente no crime, com o fim de lhe agravar a pena do réu pela prática de um novo delito, independentemente do lapso de tempo transcorrido.
Notas e Referências [1] CARVALHO, Amilton Bueno. CARVALHO, Salo. Aplicação da Pena e Garantismo. 2.ed. amp., Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2002, p. 52. [2] Idem, Ibidem, p. 53. (grifo nosso). [3] RHC nº 2.227-2 MG, 6ª T., STJ, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJ 29/03/93, p. 5.268. [4] SOUZA DE XAVIER, Paulo S., op.cit., p. 159-160. (grifo do autor). [5] TJMG-ACr 1.0720.03.011202-6/001, Rel. Des. (a) Reinaldo Portanova, v.vencedor, j. 13/11/2012, publ. 23/11/2012. [6]TJMG-ACr 1.0295.11.003796-3/001, Rel. Des. (a) Reinaldo Portanova, j. 20/11/2012, publ. 30/11/2012. [7] TJMG-ACr 1.0720.03.011202-6/001, Rel. Des. (a) Reinaldo Portanova, j. 13/11/2012, publ. 23/11/2012. (grifo nosso). [8] Disponível em: <http://atualidadesdodireito.com.br/lfg/2013/04/08/reincidencia-como-agravante-da-pena-stf-ignora-jurisprudencia-da-corte-interamericana/>. Acesso em: 08 abr. 2013. [9] Disponível em: <http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/destaquesNewsletter.php?sigla=newsletterPortalInternacionalJurisprudencia&idConteudo=231014>. Acesso em: 05 abr. 2013. (grifo nosso). [10] BEZERRA, Elton. Pena extinta há mais de 5 anos não serve para majoração. Revista Consultor Jurídico, 12 fev. 2014. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-fev-12/pena-extinta-anos-nao-serve-majoracao-decide-toffoli>. Acesso em: 14 fev 2014. [11] Idem, Ibidem. [12] Idem, Ibidem.

Antonio José F. de S. Pêcego é Mestrando em Direito pela UNAERP. Professor de Penal e Processo Penal da FPU. Professor de Processo Penal do Barão de Mauá. Juiz de Direito de Entrância Especial do TJMG.
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Imagem Ilustrativa do Post: Universal Avengers // Foto de: JD Hancock // Sem alterações Disponível em: http://photos.jdhancock.com/photo/2012-06-17-055907-universal-avengers.html