Matrimônio, vida em comum e amor conjugal: "Até que a vida nos separe" (Parte 2)

10/03/2015

                                                                     Por Atahualpa Fernandez - 10/03/2015

 "I Hate You. Don’t  Leave Me."

 Kreisman & H. Straus

Parte 2

Casa-te com pressa, arrepende-te quando te pareça bem” é uma forma aforística de expressar a ideia de que, quando o amor romântico ou a paixão desaparece, podemos descobrir que nossas diferenças com a pessoa que elegemos é uma fonte permanente de conflitos, desconfianças e sentimentos de hostilidade, que já não a percebemos como fiável, estimulante e compreensiva, uma pessoa com a qual não queremos criar a nossos filhos ou uma companhia pouco satisfatória tanto intelectual como emocionalmente. O fato é que na vida real eleger uma companhia para toda a vida é difícil e com frequência se fracassa: os estados de ânimo flutuam, os desejos cambiam e as condutas se modificam. Em realidade, em tema de fracasso matrimonial, “é a vida e não a morte a que carece de limites”. E a vida é caprichosa!

Mas o que provavelmente resulte mais doloroso que as grandes e/ou pequenas faltas recíprocas (as quais, depois de tudo, podem ser amenizadas, superadas e compensadas de diversas formas) é viver com um companheiro sem receber dele nenhum signo de consideração, aceitação, amizade e/ou expressão de amor, não somente como resultado da encarnação do ideal de matrimônio, senão também nas pequenas coisas, nos momentos de autárquica serenidade ou de angústia gerada por qualquer inquietude perturbadora, enfim, nos diminutos, contingentes e incontroláveis detalhes do cotidiano (que são os que realmente logram pôr em contato a existência de um com o outro).

Não somos somente animais gregários aos que faz bem estar perto de nossos companheiros, senão que também experimentamos uma necessidade básica a ser observados, e observados com aprovação. Marcados pela “incompletude constitutiva” da espécie, é inata nossa inclinação de atrair a mirada do outro para sentir-nos estimados e incluídos. Como demonstram as mais laicas das ciências, da mesma forma que não conseguimos viver sem comer, beber ou dormir, não conseguimos compreender quem somos sem o olhar e a resposta do outro: é o outro que nos define, nos conforma e alenta nossa autoestima.

Toda coexistência é um reconhecimento, ou, para dizer como Saint-Exupéry, a “comunhão com o outro é uma prova de sua existência, uma certa qualidade das relações humanas”. E como nenhum castigo mais diabólico poderia ser concebido, se fora fisicamente possível, que deixar de existir ante os olhos de nossos congêneres (Adam Smith), passar habitualmente desprezados ou despercebidos para a pessoa amada talvez seja o pior dos sofrimentos humanos (para ambos, há que dizer, porque a outra cara do amor “por si mesmo” é um “eu” desesperadamente necessitado de amor).

Essa a razão pela qual a noção de vida em comum repousa soberana sobre a intensidade afetiva, intensidade que é procurada e mantida como meio de escapar à banalidade e a indiferença cotidiana. Somente os sentimentos verdadeiros, reais, espontâneos e autênticos são capazes de garantir a duração de uma boa vida em comum. A permanência dessas relações não depende de condutas predeterminadas e formalizadas em códigos e leis, senão que decorre, fundamental e exclusivamente, da atitude de cada cônjuge em relação ao outro, ou, como diria Michel Foucault, da  “plenitude do possível” que mantém unido o casal.

Pelo mesmo motivo que não “desejamos uma coisa porque a consideramos boa, senão que a consideramos boa porque a desejamos” (Spinoza), não é por ser a vida em comum objetivamente amável que devemos amá-la; não se aplica à vida em comum a regra da afeição e harmonia preestabelecidas. Não! Ela só existe na medida em que a queremos: só vale para quem a ama, só pode valer proporcionalmente ao desejo e ao amor que cada um dos cônjuges nela deposita dia a dia. E nem se diga, ao melhor estilo kantiano, que em temas como este o que conta são as “boas intenções”, porque a ação é a única prova fiável e fidedigna para valorar a intenção: se a ação nunca aparece ou é inapropriada, é muito provável que a intenção seja uma farsa.

O que verdadeiramente dá sentido a nossas relações, tanto ou mais que a razão, é a amorosa preocupação e cuidado que dedicamos aos seres que queremos e que nos servem de guia para conduzir nossas vidas; esse sentimento que nos permite exercer nossas melhores capacidades e demonstrar nossa valia como seres humanos. No amor comprometido, cada um dos cônjuges representa para o outro o único acesso possível em direção a uma plena comunhão de vida. Esta a raiz da concretização das “estruturas da intersubjetividade” que orientam a experiência da união conjugal, estruturas que se consumam na "experiência comum compartida".

Daí que ninguém expressou melhor a natureza do casamento que o psicólogo Dan Wile: “Quando elegemos um companheiro a largo prazo estamos elegendo inevitavelmente uma série de problemas insolúveis com os que teremos que conviver durante dez, vinte ou cinquenta anos”. O segredo está em aceitá-los, aprender a conviver com eles e a enfocá-los sempre com bom humor (como diria Spinoza, abraçar “a paciente aceitação do inevitável”). Do contrário, a idiossincrasia chocará constantemente com a realidade e a vida em comum, longe de ser uniforme, será esquizofrênica. Porque a verdadeira base de um matrimônio feliz e duradouro é uma profunda amizade.

Quer dizer, um tipo de amizade em que os cônjuges se conhecem intimamente e que na dinâmica dos pequenos detalhes da vida cotidiana impede que os pensamentos e sentimentos negativos sobre o companheiro afoguem os positivos[2]. É essa “preponderância de sentimento positivo”, que respalda as esperanças, sonhos, desejos, preocupações e aspirações mútuas e que dá sentido à vida em comum, a única fórmula “mágica”. Uma fórmula que, como uma mensagem incessante, devemos enviar diariamente ao nosso companheiro para recordar-lhe de que é amado, compreendido, respeitado e aceitado, com defeitos e debilidades incluídos[3].

Assim que a lição mais importante que podemos aprender daqueles matrimônios mais sólidos e que compartem uma profunda sensação de transcendência não é o quão emocionalmente inteligentes parecem ser ou o quão “fácil” conseguiram (juntos) o que queriam, senão o quão indomáveis, compreensivos, tolerantes e resistentes são. Talvez o segredo esteja em querer o que se deseja, querer com tantas ganas que a renúncia não seja uma alternativa possível, querer com tantas ganas que não se tema, sob nenhuma circunstância, tentar alcançá-lo, querer com tantas ganas que para consegui-lo esteja disposto a sacrificar todo o tempo, atenção e dedicação que sejam necessários[4], querer com tantas ganas que não só esteja preparado para corrigir-se, senão que também esteja disposto a aprender dos próprios erros, a perdoar e a olvidar[5].

E, acima de tudo,  há que crer que se conseguirá, porque quanto mais uma pessoa crê que pode conseguir algo, maior será o esforço empregado e mais gratificante a conquista do resultado desejado (não perguntem, mas a felicidade é “algo” que se conquista). Os logros poucos comuns (incluído o conjugal) requerem um nível nada comum de dedicação pessoal e uma quantidade ingente de amor, determinação, confiança e esperança.


[1] Artigo escrito em colaboração com Marly Fernandez: Doutora (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Filogènesi de la moral y Evolució ontogènica/ Laboratório de Sistemática Humana- UIB/España; Mestre (M. Sc.) Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Mestre (LL.M.) Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ España; Investigadora da Universitat de les Illes Balears- UIB / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

[2] Sandra Murray e John Holmes realizaram amplas investigações sobre o modo em que os amantes e os cônjuges se vêm um ao outro. Seus estudos puseram de manifesto que as pessoas têm uma visão idealizada de seus companheiros (as). Exageram os atributos positivos e minimizam os defeitos. Em realidade, descobriram que esta classe de glorificação do companheiro (a) é um fator que contribui ao êxito da relação. As relações nas quais os companheiros se vêm com este prejuízo positivo tendem a durar mais e a ser mais satisfatórias para ambos os membros. Em uma linha similar, diversos estudos dedicados às relações conjugais descobriram que as pessoas que tem vínculos mais satisfatórios tendem a mentir-se a si mesmas respeito as suas opções de ter outros (as) companheiros (as). Do mesmo modo que a gente realça mentalmente as qualidades (positivas) do cônjuge ou do amante, as qualidades de companheiros (as) potenciais fora da relação com frequência se vêm com uma dureza irracional. Neste caso, as positivas se passam por alto ou se minimizam, e as negativas se incham ou embelecem. Será um engano ou uma ilusão, mas não somente tendemos a ver nossa relação como diferente e melhor que a dos demais, senão que também necessitamos ver a nossa companheira (o) muito próxima à perfeição, e a todos os demais como terrivelmente cheios de defeitos e debilidades. (R. Feldman)

[3] Em resposta a uma pergunta formulada por Eve Ekman sobre o modo mais adequado de evitar emoções destrutivas no matrimônio, o Dalai Lama emitiu este surpreendente conselho: “Visualizar os aspectos negativos do companheiro e, relativizando-os, baixá-lo do pedestal da idealização e considerá-lo como um ser humano. Desse modo  – disse -, as expectativas que se faz sobre a outra pessoa serão mais realistas e também será menos provável que se sinta desiludido. Também ressaltou “que o amor deve ir mais além da simples atração e incluir o respeito, a amizade, os sentimentos e pensamentos positivos”.

[4] Um conselho para os entusiastas do exercício físico e do “sedentarismo tecnológico”: se dedicarem um 10% do tempo que passam na academia ou mirando WhatsApp, Facebook, Instagram, Twitter,  etc., a cuidar de seus respectivos matrimônios, em lugar de seus corpos ou da vida alheia, a saúde emocional de suas vidas em comum se verá muito mais beneficiada e seus companheiros (e filhos) francamente mais agradecidos. (J. M. Gottman e N. Silver)

[5] Aqui reside uma das grandes vantagens de nossa imperfeita (distribuída e reconstruída) memória: podemos assegurar que um componente essencial da vida social em geral e um dos segredos de uma relação feliz e duradoura é (precisamente) ter uma memória limitada. Por dizê-lo de alguma maneira, se são os recordos que fazem a vida mais bela, somente o olvido a faz suportável.


 


Imagem Ilustrativa do Post: Partners // Foto de: JD Hancock // Sem alterações Disponível em: http://photos.jdhancock.com/photo/2011-11-21-191102-partners.html

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