Matrimônio, vida em comum e amor conjugal: "Até que a vida nos separe" (Parte 1)

10/03/2015

                                                                                              Por Atahualpa Fernandez - 09/03/2015

 "O matrimônio é a principal causa do divórcio." 

          Grouxo Marx

Parte 1

A grande maioria das pessoas se casa “para sempre”, com a ilusão de constituir um lugar donde as expectativas são o amor reinante e a plena unidade familiar; uma sociedade constituída com visos de perenidade, tendencialmente perpétua e como consórcio para toda a vida. Em nenhum outro contexto é mais extremado o otimismo ilusório ou não realista que o do matrimônio. No momento da cerimônia, no tão ritualizado dia da boda, quase todos os casais crêem que as possibilidades de que seu matrimônio acabe em divórcio são aproximadamente de 0% (zero por cento), inclusive os que já se divorciaram. Como disse em certa ocasião Samuel Johnson: “o segundo matrimônio é o triunfo da esperança sobre a experiência”).

Isso é assim porque o casamento, provavelmente o mais aleatório de todos os vínculos contratuais (afinal, sempre se casa com uma “esperança”), liberto dos dantescos grilhões da indissolubilidade, encontra hoje seu fundamento (pelo menos no que se refere ao sentimento de entrada) na espontaneidade de sentimento e na reciprocidade de afeto dos cônjuges, uma união essencialmente pessoal que, sendo distinta de qualquer outra, concilia valores e objetivos compartidos. Casa-se, para atingir a afetividade e o companheirismo da forma mais intensa e integral possível.

Quem decide casar rejeita não só a opção de viver sozinho e isento de constrangimentos jurídicos no que à dimensão pessoal se refere, senão que também assume a alternativa de viver um tipo de relação composta por um conjunto de deveres cuja particularidade se coaduna com a aplicação da garantia comum e que constitui o núcleo intangível da comunhão conjugal. E as derivações que apresenta o cotidiano da vida em comum são imensuráveis. Desde o momento em que se casam, cada cônjuge transpõe sua própria vida para também alcançar a do consorte.

A cooperação passa a ser mais proveitosa para cada um dos membros do casal que seus egoísmos paralelos: cada sujeito encontra seu proveito na existência do outro, não em sua supressão. Em cada passo das respectivas existências passa a vigorar uma ampla comunhão de interesses e preocupações; uma  comunhão de vida não apenas física, mas também psicológica, intelectual e afetiva, fundada sobre a intimidade intersubjetivamente afetiva e o prazer de estar junto. Casal que se harmoniza no plano afetivo e na vida cotidiana, que se fala, se comunica, mesmo ante os inevitáveis conflitos e obstáculos de uma vida partilhada.

Mas como a vida em comum (e a vida mesmo!) é um assunto complicado e só garante, no melhor dos casos, tênues momentos de plena felicidade, não há nenhuma “receita” o bastante precisa como para predizer ou seguir de perto o momento tremendo em que um casal decide romper seu matrimônio, em que a continuação da normal convivência se torna insuportável, muito difícil ou muito penosa, isto é, nenhuma regra para antecipar, prevenir e/ou impedir um tipo de dinâmica em que os pensamentos e sentimentos negativos sobre o companheiro (que existem em todas as relações) afogam os positivos[2].

Por que às vezes o matrimônio é tão difícil? Por que algumas relações funcionam, enquanto que em outras se ouve um incessante “tic tac” como em uma bomba de relojoaria? O que leva a alguém querer tanto a uma pessoa e, quando mais a seu alcance está, desprender-se dela sem problema? Por que algumas pessoas boicotam uma relação afetiva por razões que não alcançam sequer entender?  Por que algumas pessoas são incapazes de solucionar e superar de maneira lógica um conflito familiar? Por que para algumas pessoas há sonhos que não podem ser e temporais conjugais que resultam impossível capear? Realmente podemos prometer?

Todos sabemos (ou pelo menos intuímos) que para manter uma relação duradoura e feliz é necessário valor, decisão e resistência, que toda relação humana carrega consigo a semente do conflito e que a verdadeira causa de uma ruptura precede em muito tempo a decisão de divorciar-se (ou separar-se). Mas quando esta chega, da situação anímica que impulsou a promessa de duas pessoas a permanecerem unidas “na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando, respeitando e sendo fiel um ao outro por todos os dias de suas vidas...”, não somente não sobra nada, senão que em ocasiões se transforma em um verdadeiro ninho de egoísmo insano e agravos recíprocos, com consequências que chegam às vezes à agressão moral e/ou ao sofrimento desnecessário. Um acúmulo de cinzas arrastadas pelos silenciosos e assoladores ventos da discórdia. Os exemplos sobram e os números cantam.

Esses mesmos exemplos e números demonstram que a ruptura da vida em comum já não é um fato excepcional e que divórcio (ou a separação)  funciona como um verdadeiro golpe de misericórdia (ou “remédio”) desferido em um matrimônio infeliz, onde impera um clima tal de intolerância e desprezo que, conduzindo a permanentes insatisfações e constantes divergências, acaba pesando angustiosamente sobre o fracasso da convivência humana. A dor provocada pela incerteza, ameaça e indiferença recíprocas simplesmente amplia as acumuladas ofensas que minam pouco a pouco, mas de modo irreversível, por falta de confiança na emenda mútua, a harmonia do casal. Assim se fabricam os pesadelos conjugais.

Aliás, são essas circunstâncias íntimas, pequenas e repetidas, a que  Carbonnier chamava de “piqûres d´épingle renouvelées” [3], as que fazem com que a convivência se torne mais difícil, que geram cada vez mais insensibilidade aos sentimentos dos companheiros e que aumentam as chances de que ambos adotem comportamentos insensatos. A ideia de que, chegado a esse ponto (de uma convivência intolerante e de egoísmo recíproco), podemos fazer com que as desavenças e discussões conjugais avancem cumprindo as normas de etiqueta da racionalidade dialógica é uma ridiculez. A maioria dos conflitos e discussões conjugais não cumprem os protocolos “habermasianos”, pelo simples fato de que, para duas pessoas com feridas emocionais, sempre será mais simples, fácil e rápido sujar que limpar, destruir que (re) construir, agredir que empatizar. É o momento de remediar os sonhos e as otimistas promessas de amor eterno que a vida se encarregou de matar.

E dado que os vínculos de confiança e amor conjugal se podem romper com facilidade, cada vez mais o matrimônio deixa de ser um contrato particularmente extraordinário. Pode ser dissolvido por qualquer das partes e já não tem status permanente. A saída nem está proibida nem é infrequente, e não há nenhum princípio moral ou jurídico que recomende manter uma união onde já não existe respeito, compreensão, amor e amizade. A crença de um matrimônio “até que a morte nos separe” se converteu, em alguns lugares, em uma característica distintiva de um estilo de vida relativamente sectário que coexiste com a pauta, cada vez mais normal, da monogamia sucessiva.


Notas e Referências:

[1] Artigo escrito em colaboração com Marly Fernandez: Doutora (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Filogènesi de la moral y Evolució ontogènica/ Laboratório de Sistemática Humana- UIB/España; Mestre (M. Sc.) Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/España; Mestre (LL.M.) Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ España; Investigadora da Universitat de les Illes Balears- UIB / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

[2] Robyn M. Dawes, por exemplo, demonstrou uma fórmula muito simples para medir o grau de harmonia e afeto conjugal, e que prediz bem a estabilidade marital: “frequência com que se faz amor MENOS frequência das brigas”. Desejamos que ao leitor (a) não lhe saia um número negativo. (D. Kahneman)

[3] Esta a expressão utilizada por Jean Carbonnier quando, referindo-se à gravidade da repetição de pequenas faltas, fala com certo humor de uma “guerra constante a golpes de alfinetes”, isto é, nas “picadas de agulhas renovadas” ou “agulhadas constantes”, que igualmente destróem a harmonia conjugal tanto quanto uma falta mais grave, mas isolada.


Amanha às 20h será postada a Parte 2, acompanhe!


Atahualpa FernandezMembro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España]


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