MATERNIDADE E FEMINIZAÇÃO DA POBREZA

31/03/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

Em um 8 de março de palavras de ordem e reivindicações por um mundo feminista e livre de opressões, a discussão sobre a vida precarizada das mulheres do mundo, maēs e filhas, é reacendida. No clima desse dia que evidencia a luta feminista, pensamos na construção desse artigo, que é também uma tentativa de discutir os efeitos nocivos da pobreza que historicamente atinge mais às mulheres e mães, principalmente as que pertecem à classe trabalhadora. São elas que, além de trabalhadoras, exercem na sociedade capitalista, um papel fundamental na reprodução humana como fonte de criação de valor e exploração. Sociedades que se estabeleceram, em grande parte, devido ao trabalho não remunerado das mulheres: as mães responsáveis pela reprodução biológica e social de trabalhadores assalariados para garantir a produtividade do sistema. É sobre elas que recai a responsabilidade pela sociabilidade dos filhos nas sociedades capitalistas, de modo que se naturaliza seu exercício das atividades domésticas e trabalhos com menores salários em comparação aos dos homens.

Mesmo diante de alguns recentes avanços em seus direitos, como a maior inserção no mercado de trabalho, estas conquistas são permeadas pela cultura de subordinação e opressão das mulheres. Dados da OXFAM Brasil (2017) apontam que, nas regiões em desenvolvimento, 75% das mulheres trabalham sem contrato formal e não possuem acesso a direitos como à seguridade social. A pobreza interfere nos recursos disponíveis para a sobrevivência das mulheres e suas famílias, de modo que, na ausência de políticas públicas adequadas, estas situações tendem a piorar e reverberar nas próximas gerações. Isso porque muitas destas família são chefiadas por mulheres, ou seja, quando a pobreza atinge as mulheres, por consequência, também atinge as crianças e adolescentes.

A sobrecarga laboral, emocional e mental que estas mulheres vivenciam reduz tanto o tempo que possuem para si mesmas, como para participar de atividades sociais e políticas durante as quais poderiam se organizar para reivindicar por seus direitos. Este cenário, associado ao machismo, contribui para a pouca representatividade das mulheres na política. No Brasil, por exemplo, as mulheres representaram apenas 32% dentre as candidaturas em 2018 e comporam somente 15% das parlamentares eleitas (OXFAM Brasil, 2020). Desta forma, é importante que se pautem ações que deem incentivo à participação política das mulheres, para que não estejam a mercê de decisões que não contemplam suas reais necessidades.

As mulheres empobrecidas, além disso, estão mais expostas a terem experiências reprodutivas diferenciadas, por dificuldades no acesso à educação sexual, planejamento familiar, métodos contraceptivos como o aborto, mesmo em países em que este tipo de intervenção já está legalizado. Isto se dá por questões vinculadas ao moralismo ou dificuldades de acesso à saúde. Além disso, mesmo quando desejam exercer a maternidade, as condições socioeconômicas nem sempre permitem que elas cuidem dos seus filhos e, por vezes, engendram separações ou fragilizam os vínculos familiares.

Ser mãe numa sociedade capitalista é um processo moldado pela conjuntura econômica que demanda das mulheres sua reprodução, ao mesmo tempo em que, de forma contraditória, cerceia suas formas de sobrevivência seja pela sua incorporação ao exército industrial de reserva ou precarização laboral. Estas intervenções são mais graves com as mulheres em situação de extrema pobreza, constantemente culpabilizadas por sua situação, ora por não praticarem o controle da natalidade, ora por não reproduzirem filhos para sustentar o capital ou não proverem aos mesmos educação suficiente para tal. Pesa sobre elas, com maior intensidade, a lógica do fracasso materno, de não ser suficiente para atender às demandas de uma sociabilidade que se sustenta no aumento da exploração do seu trabalho de cuidados maternos não pago, ao passo que aumentam as exigências de um mercado em crescimento de cuidados parentais não acessíveis a todas as mulheres e que colocam em questão quem pode e quem não pode ser mãe.

Damasceno (2020), em sua investigação acerca das experiências abortivas entre mulheres negras de Salvador/BA, observou que, por trás da realização do aborto, havia histórias de vida marcadas pelo desemprego, violência sexual, abandono do parceiro ou morte deste ocasionada por ações violentas da polícia militar. Para estas mulheres, assim, poder planejar e usufruir da gestação e ter recursos suficientes para exercer a maternidade, ainda é uma realidade distante. Ademais, em seu estudo atual sobre trajetórias reprodutivas de mulheres em situação de rua, aponta que a perspectiva de uma gravidez saudável é totalmente negada a essas mulheres, juntamente com todos seus outros direitos, cotidianamente violados, sem falar na violência de terem que estar nas ruas. Além disso, ao darem a luz, o mesmo Estado que não cuidou delas, toma suas crianças sob a justificativa da proteção infantil. Para Damasceno (2020), a possibilidade de uma mulher conseguir ter um filho mesmo em contextos de total vulnerabilidade social, representa a resistência a uma necropolítica que tenta eliminar pessoas negras e empobrecidas antes mesmo de seu nascimento.

No México, as mulheres em situação de rua, também são comumente separadas de forma arbitrária do seus filhos, ao contrário de se buscar alternativas para evitar a separação familiar. Ainda, há denúncias de que os critérios utilizados são de caráter moral, pois partem de modelos predeterminados sobre como as mães devem se comportar. Inclusive priorizam a institucionalização das crianças, em detrimento da possibilidade de estarem sob os cuidados da família extensa (Aquino, 2018). Há, assim, uma negação da possibilidade de exercer a maternidade e da construção de uma família para estas mulheres.

Nesse contexto da feminização da pobreza, em que há uma menor renda entre as mulheres e nos domicílios chefiados por elas, o sistema capitalista e patriarcal recorre à violência de gênero para a manutenção das relações de dominação. Essas relações sociais são forjadas a partir dos conflitos e contradições entre os diferentes sexos, classes e raças, sendo estruturantes para o capitalismo e essenciais para a compreensão e transformação da realidade dessas mulheres. Segundo a pesquisadora Silva Federici[1], o aumento da violência contra as mulheres e a feminização da pobreza em  todo mundo estão atrelados aos processos de acumulação do atual estágio do capitalismo.

Embora o aumento da violência contra as mulheres seja um fenômeno global, as mulheres ao redor do mundo não são afetadas da mesma maneira. As mulheres dos países periféricos, migrantes, faveladas, negras, do campo, indígenas, entre outras, tendem a ter uma história social marcada pela repressão e opressão, bem como pela falta de acesso a políticas e ações de enfrentamento á violência e suas causas. No Brasil, grande parte das mulheres negras e de ascendência indígena lutam pela sobrevivência enquanto são submetidas a trabalhos informais e precários. Jogadas na informalidade, sem direitos trabalhistas e realizando duplas jornadas em condições precárias, enfrentando a exploração do trabalho não pago; elas são cada vez mais subalternizadas e, muitas, recorrem ao trabalho ilegal para garantir sua sobrevivência. A  posição da mulher negra nesse ambiente de múltiplas opressões e explorações só pode ser entendida ao se considerar os problemas socioeconômicos e culturais dos países periféricos, bem como compreendendo que, como os demais elementos estruturantes do sistema capitalista, as questões de raça e de gênero não podem ser analisadas fora do marco de classe (Quirino, 2015).

O Fórum Econômico Muncial[2] alerta que as mulheres podem ser as mais afetadas pela rápida evolução do COVID-19, pois compõem em maior número o quadro de profissionais da linha de frente da saúde. Além isso, agregam o papel de principais cuidadoras das crianças e de familiares infectados pelo vírus. No Brasil, as trabalhadoras informais, as mulheres em situação de rua, as gestantes, bem como as mulheres que convivem com seus agressores em tempos de isolamento social, estão entre aqueles que mais podem sofrer os efeitos dessa pandemia. Sem medidas concretas do Governo Federal para frear essa crise sem precedentes, suas vidas são colocadas como menos importantes que a economia e ainda mais ameaçadas.

Ao finalizar essa breve problematização e exposição, gostaríamos de deixar algumas marcas para o leitor: é essencial considerar as questões da imbricação raça, classe e gênero nas análises, de modo a compreender melhor a realidade e situação dessas mulheres, além dos motivos de serem atingidas com mais frequência e em maior número. Para tanto, é importante fomentar espaços de estudo, diálogo e construção de incidências políticas que envolvam as mulheres empobrecidas e lhes permitam alçar sua voz na luta por seus direitos diante da política de desigualdade social adotada que atinge, sobretudo, aquelas dos países periféricos. Por fim, dado o papel fundamental que essas mulheres desempenham no exercíco do cuidado das crianças e adolescentes, é essencial ter em mente que garantir os direitos infantojuvenis, perpassa garantir os direitos das mulheres.

             

Notas e Referências

AQUINO, E. Maternidad en las calles: mujeres luchan para evitar que las autoridades les quiten a sus hijos. Animal Político, jun. 2018. Disponível em https://www.animalpolitico.com/2018/06/hijos-mujeres-madres-calles-dif/. Acesso em 10 de março de 2020.

DAMASCENO, B. O custo do cuidado é sempre menor que o custo do reparo. Carta Capital, 4 de fevereiro de 2020. Disponível em https://www.cartacapital.com.br/justica/o-custo-do-cuidado-e-sempre-menor-que-o-custo-do-reparo. Acesso em 10 de março de 2020.

FEDERICI, S. (2017). O Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante.

OXFAM Brasil. Trabalho de cuidado: uma questão também econômica. 2020. Disponível em https://oxfam.org.br/blog/trabalho-de-cuidado-uma-questao-tambem-economica/. Acesso em 10 de março de 2020.

OXFAM Brasil. Por que há mais mulheres que homens pobres no mundo? 2017. Disponível em https://oxfam.org.br/noticias/por-que-ha-mais-mulheres-que-homens-pobres-no-mundo. Acesso em 10 de março de 2020.

QUIRINO, R. Divisão sexual do trabalho, gênero, relações de gênero e relações sociais de sexo: aproximações teórico-conceituais em uma perspectiva marxista. Trabalho e Educação, v. 24, n.2, p. 229-246, 2015. Disponível em https://seer.ufmg.br/index.php/trabedu/article/view/7830/5990. Acesso em 10 de março de 2020.

[1] Entrevista concedida ao jornal Brasil de Fato, disponível em https://www.brasildefato.com.br/2019/10/09/silvia-federici-matar-as-mulheres-e-a-forma-mais-eficaz-de-destruir-a-resistencia

[2] Disponível em: https://www.weforum.org/agenda/2020/03/the-coronavirus-fallout-may-be-worse-for-women-than-men-heres-why/

 

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