Renata Conde Vescovi - 15/12/2016 [1]
O nascimento do inconsciente pressupõe um ato de amor entre um homem e uma mulher. [2]
A experiência de discurso é vital para a sobrevivência humana. Ao apropriar-se da palavra, o filho do homem cria para si uma rede de significações que dá sentido à sua existência; e aprende a partilhar, com o semelhante, experiências, pensamentos, que o introduz no laço social. Neste campo tecido pela linguagem, o inconsciente se manifesta. Ele visita o discurso às pressas; de surpresa. Rompendo com nossas ilusões, ao subverter o sentido habitual das palavras.
O inconsciente também pode ser a expressão de um ato sem palavras: louco, cruel e sanguinário. Ao “agir em mim”[3], desconcerta a razão, introduzindo no pensamento crises que podem ser férteis. Com isso, as manifestações do inconsciente podem ser a via para o ser humano partilhar com o semelhante a palavra, buscando, através do diálogo e do questionamento sobre seus atos, encontrar elaborações psíquicas que organizem suas angústias, seus horrores e, por que não dizer, a violência que se encontra em cada um de nós.
Tomei como epígrafe de meu texto este fragmento de Lacan, uma vez que Medeia, obra-prima de Eurípides da qual tratarei neste artigo, nos retrata o sofrimento de uma mulher que, ao perder o amor de seu homem, torna-se a mais cruel e impiedosa das criaturas. Qual o sentido de seu ato, cujo desfecho é o assassinato de seus filhos? Por que matar os frutos de um ato de amor entre ela, a heroína trágica, e seu marido Jasão?
O encontro entre um homem e uma mulher precisa estar selado pela insígnia de um vazio gerador de desejo – desacordo necessário entre os sexos para o amor acontecer. Um amor que não seja simplesmente o da fusão dos corpos, uma vez que este é justamente o que responde pelos crimes passionais; mas um feito de palavras que, ao marcarem um corpo, o erotiza. Um amor animado pelo enigma que se encarna no corpo de uma mulher.
Lacan afirmou que a mulher é o inconsciente do homem. Através de seus gestos sedutores, seu manejo em pensar e dizer a vida, ela faz semblante de objeto que causa o desejo em um homem. Mesmo sem saber, um homem escolhe uma mulher a partir das marcações inconscientes de um desejo por uma determinada mulher.
Do encontro deste amor, o filho será o representante nomeado deste enigma; podendo, assim, responder aos ideais do casal. Será a criança “intérprete” dos enigmas da vida, aquela leitora curiosa das entrelinhas de um desejo presente na conjugalidade amorosa de seus pais. Com isso, terá a oportunidade, a partir da leitura do enigma, de escrever com certa liberdade uma versão mais criativa a respeito de sua origem, o que lhe permitirá encontrar um lugar que lhe inscreva na linhagem familiar.
No entanto o encontro dos corpos entre um homem e uma mulher também pode gerar crianças que não passam de produtos de um ato sexual. São os rebentos interditados nos limbos da infância; nem sempre ganharão a condição de filhos de um casal; jamais se inscreverão na rede simbólica das gerações familiares. Porque, entre um homem e uma mulher, é preciso que se conjugue a lei da castração. Esta lei é a razão de um desejo e oferece, tanto a um homem quanto a uma mulher, a possibilidade de não apenas se acasalarem, para produzir filhos que não passam de carne da carne humana.
A razão do desejo, ratio[4], é efeito da lei da castração. Inscreve uma perda, interditando o homem, ainda que de maneira parcial, de seu gozo selvagem que é solidário à pulsão de morte. Esta lei faz do homem um ser de falta. Na tentativa de restaurar esta falta, ele estará condenado, enquanto a vida lhe habitar, a falar, a perder-se e a reencontrar-se nos desfiladeiros do discurso. Só assim poderá frequentar o território sagrado do Outro[5] – tesouro de suas ficções e ideais. Construirá suas crenças ao tecer esperanças em um futuro que lhe seja promissor. Sem esse tesouro simbólico, herança de nossa genealogia familiar, matriz de um discurso, a vida se torna abjeta, nua.
O texto trágico: Um (re)encontro com a lei da castração.
A tragédia é a experiência literária que mais nos coloca diante da castração. Longe de ser uma narrativa prazerosa, dessas que facilmente nos adormecem com um desfecho feliz, seu texto nos desperta, uma vez que mantém vivo o sentido dos acontecimentos. Estes, vindos do passado, invadem o nosso presente e nos afetam através das nossas paixões. Isso porque as narrativas trágicas exibem de modo sublime o sofrimento sem reconciliação e a loucura presentes na condição humana. Repletas de enigmas atravessam os tempos da história, espelhando nossa miséria e dor, encarnadas no herói, personagem central da narrativa.
“Todo homem tem em si a via traçada para o herói” (LACAN, 1986, p. 456). Via que se acende em nós quando suportamos atravessar o sofrimento e o lamento decorrente de um acontecimento trágico, inventando, sem recuar diante das paixões, um saber que possa ser partilhado na comunidade humana. O herói não é aquele que brilha por seus feitos; é o que suporta ultrapassar as barreiras do que está instituído, do que já se conhece e não introduz nada de novo. Ele atravessa a dor e os impasses inerentes ao acontecimento trágico e se responsabiliza às últimas consequências pelo seu ato.
Vale lembrar que o percurso de uma Psicanálise nos coloca diante de uma caminhada na qual o encontro com o traumático, equivalente à experiência trágica, é inevitável. Ao nos depararmos com o saber inconsciente - um saber do qual não nos reconhecemos portadores a priori - só nos resta, tomá-lo como causa de desejo. Isto também nos coloca diante de pontos irreconciliáveis sobre a nossa existência, porque o saber inconsciente também encontra seus limites diante do real da castração. No entanto, ele nos permite reordenar nossa posição no discurso; uma vez que o sujeito do inconsciente se faz representar nas palavras. Além de nos permitir inventar uma posição subjetiva, mais livre das demandas do Outro.
O ato trágico é a expressão do indizível. Como canta Chico Buarque (BUARQUE; PONTES, 1975, p. 46), é a expressão do que “não tem remédio e nem nunca terá”. Ele emerge “quando a rede de atos individuais que se repete sob a forma de sofrimento não encontra um bom desfecho” (ARISTÓTELES, apud ARENDT, 1991, p. 35). O ato trágico tem seu clímax em um único acontecimento, que orienta a ação para fora do terreno das representações e conduz o herói em direção à morte.
As tragédias nos orientam a pensar que, diante do horror e da dor, necessitamos testemunhar solidariamente o sofrimento humano. O que não quer dizer livrar o semelhante de sua dor com verdades que não temos para oferecer. Isto seria a impostura que se esconde sob o fascínio de querer fazer o bem ao próximo. Ninguém salva ninguém de um acontecimento trágico. É aí que se faz urgente a partilha da palavra; como uma tentativa de acolher e suportar testemunhar a dor e o horror do semelhante. Tanto na intimidade do laço familiar, ou nos espaços públicos que experimentamos através de nosso comprometimento profissional. Por isso necessitamos daquilo que é mais sagrado para a história da humanidade: a memória e a repetição.
Repetir, recordar, contar, reencontrar o intraduzível, a dor represada. Enlutar-se pela palavra em busca de um saber que simbolize o horror presente no acontecimento traumático. A justa palavra digere o horror e nos instrui com um “saber fazer” com o irremediável. Quanto ao semelhante, aquele que se vê passível de ser acometido pelas chagas da existência humana é o que melhor pode testemunhar a trajetória do herói anônimo que existe adormecido em cada um de nós. Como nos diz Walter Benjamin (apud KELL, 2005, p. 67): “testemunha não seria somente aquele que experimentou o horror. Testemunha também é aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e aceita que suas palavras revezem a história do outro”.
A memória da humanidade só pode ser falada dentro de uma historicidade. Através de uma rede de saber que se partilha e se transmite nas gerações. É quando o temor, a indignação e a cólera, que nos impelem à ação violenta, encontram outra função no discurso. Diria que esta função deve ser a de transmissão de um saber sobre o acontecimento, muito mais que um ensinamento. É por isso que um texto trágico atravessa os tempos da história com vigor de transmissão. Ele não ensina e nem chama o leitor à razão; ao contrário, entusiasma, mostra que ninguém vive impunemente sem tropeçar na dor de existir. Convoca o leitor a identificar-se com a dor do herói e a retirar de sua própria realidade, que não é outra senão sua realidade psíquica, os elementos subjetivos para responder ao “grito inarticulável”[6] que brota da expressão humana.
Assim, não é possível dominar o passado ou fazer de conta que ele não deixou suas marcas, a não ser:
[...] pela repetição da história, que nos leva a nos reconciliar com ele. O único viés possível é através do lamento e da dor que experimentamos e que brota de uma recordação. Seja de um acontecimento de nossa própria história ou quando nos encontramos nas narrativas trágicas. Como nos disse Goethe, na recordação, a dor se renova, o lamento repete o errante curso labiríntico da vida (ARENDT, 1991, p. 27).
Antes de passar a Medeia e seu ato trágico, quero ressaltar que, neste diálogo entre o Direito e a Psicanálise, tenho aprendido cada vez mais que não se resolve o horror e a miséria humana pelo viés assistencialista. Cada um precisa inventar com um saber próprio, a partir de si mesmo, pequenas saídas para reparar suas tragédias. Devemos desconfiar tanto do sentimento de piedade quanto das soluções milagrosas, destas que surgem sem o trabalho de elaboração psíquica do próprio sujeito implicado na dor e na perda. Essas pequenas passagens que vamos construindo diante do real da castração - representados pelos pontos irreconciliáveis que a vida nos apresenta - são tecidas a partir das manifestações do inconsciente: nossos atos falhos, nossa psicopatologia da vida cotidiana, que se forem escutados, elaborados, podem ser partilhados no laço social, tornando presentes os efeitos do inconsciente no mundo.
Todas às vezes que nos questionamos e nos responsabilizamos por nossas ações, levando em conta as manifestações do inconsciente, damos aos nossos atos o estatuto de legalidade. Vale lembrar que a manifestação do inconsciente nos impede de esquecer que o traçado de nosso destino é matemático. Ele respeita uma escritura lógica traçada no desejo do Outro que marca nosso corpo o tornando um corpo significante. Portanto, o sujeito só poderá retificar a trajetória de seu gozo – sua perversão, sua loucura, sua violência – quando se reconhecer implicado na repetição de seus atos – traçado lógico de seu desejo.
Lacan (1986, p. 388) nos lembra de que a Psicanálise se avizinha mais ao lado das Matemáticas do que das ditas Ciências Humanas. Estas se deixam levar por posturas assistencialistas que acabam amordaçando o sujeito do inconsciente, fazendo dele objeto de experimentação científica. As ciências humanas costumam criar programas de condutas que:
[...] não tem outra função senão estar a serviço dos bens e dos poderes. [...] isso comporta em todos os casos um desconhecimento não menos sistemático de todos os fenômenos da violência que mostram que a via do advento dos bens no mundo não é traçada assim tão facilmente.
Donde deveria advir a voz de um sujeito – carente de ser colhida e acolhida no traçado da repetição de seu ato – deparamo-nos com as técnicas cientificas, de braços dados com condutas moralizadoras, sonhando encontrar, em suas pesquisas no campo da genética, razões para exigir comportamentos padronizados; criando teorias infames sobre os comportamentos doentios e violentos, sejam dos jovens delinquentes ou das famílias “desajustadas”.
A Psicanálise, além de ser íntima das Matemáticas, tem a arte e os poetas como parceiros. São eles que nos instruem a (re)inventar com o saber inconsciente, dos restos de um real extraído do sofrimento no corpo – tarefa aprendida no divã do analista. Cria-se a partir do que restou por dizer; como também é possível reinventar a vida a partir do gozo violento, impiedoso e cruel, que mata e escraviza, dando outro sentido, agora no discurso, ao gozo desenfreado que mata e aniquila.
Medeia e Jasão a tragédia do amor e do ódio nos tribunais.
Zeus, poderoso e venerável Temis, Vedes o sofrimento meu após os santos juramentos que me haviam ligado a esse esposo desprezível.
Eurípides
Medeia é considerada a obra-prima do teatro trágico; para grandes apreciadores, trata-se da melhor das tragédias de Eurípides (1999) sobre a alma feminina.
O ponto central da tragédia é o amor louco de Medeia por Jasão que se revira em ódio assassino.
Podemos nos debruçar sobre esta peça trágica, escrita e encenada no século V a.C., analisando-a por diversos prismas; seja pelo viés do enigma que habita a alma feminina, – o continente negro, como nos dizia Freud – seja pela reflexão à cerca das mais diversificadas maneiras de matar os filhos de uma relação conjugal quando não se estabelece, entre um casal, a inscrição do inconsciente, impedindo a vertente do amor que se transmite no dom de uma mulher – dar seu vazio, sua falta, aquilo que ela não tem.[7]
Vou destacar este ponto para trabalhar o que aqui me interessa: os restos violentos de uma relação amorosa que, por não encontrarem representação simbólica possível, acabam desembocando nas páginas dos jornais, nos tribunais de família, nas varas de infância e juventude, buscando na lei da cidade algum interdito à loucura conjugal.
Medeia, antes de passar ao ato trágico, clama por Zeus, representante das leis não escritas; ao ver-se lesada em seus direitos ao leito conjugal, implora a Têmis, guardiã das leis escritas, uma solução para a injúria[8] sofrida. Seus lamentos mostram a dor diante do ultraje sofrido e preparam o terreno para o desfecho final de seu ato. Ela mata Creonte, o rei de Corinto e sua filha Creusa, eleita de Jasão para tomar seu lugar no leito nupcial. Em seguida, fere seu esposo no coração de seu ser: assassina, com “punhal agudo”, os filhos deste casamento, interrompendo, assim, a linhagem familiar.
Indago ao texto de Eurípides quem é esta mulher de nome Medeia, qual a sua origem. Estaria inscrito, em sua linhagem familiar, o gozo violento e intraduzível de seu ato assassino?
Medeia é filha de Hécate, feiticeira e divindade das trevas, que fazia exceção aos deuses do Olimpo. No tribunal de Zeus, as leis instituídas permitiam aos deuses, com a ajuda do oráculo, decidirem sobre o destino dos homens. Arrisco-me a dizer que Hécate não se submetia às leis de Zeus, autoridade máxima do Olimpo. Ela é a representação de uma mãe onipotente, portadora de um gozo fora da Lei. Encarna o lugar do supereu feroz que não transmite à criança o enigma que move a vida; representante de um desejo feminino. Este enigma passa a se inscrever para o bebê humano quando a mãe lhe apresenta um vazio, a partir do qual a criança terá a oportunidade não só de viver a angústia, mas criar suas próprias elaborações psíquicas. Neste intervalo, em que a mãe não comparece em sua potência, o bebê humano passa a representar e a fantasiar as experiências vividas na relação com o outro materno. Aí está o motor de sua potência criativa que lhe servirá, para o resto de seus dias, como vetor para se inserir na vida civilizada.
Em sua posição de filha, Medeia, “dona de um ‘gênio selvagem’” (EURÍPEDES, 1999, p. 13), carece deste enigma que fez de Freud,[9] o criador da Psicanálise. Ela não pôde receber de sua mãe a transmissão deste verdadeiro dom que a tornasse mulher. Este dom alinha as mulheres ao lado do inconsciente e da criação. Por serem privadas de um significante que as representem, seu ser é um vazio; a própria inconsistência que funciona como causa de desejo para um homem.
O que dizer de Medeia em seu ser de mulher?
Podemos dizer que Medeia, privada em seu ser de mulher, do dom do amor, “daquilo que ela não tem”,[10] não suporta ser amada na particularidade do enigma do feminino que desperta a fantasia e o desejo de um homem. Ela crê loucamente no amor e pretende ser, à maneira de um delírio erotômanico, a Mulher, escrita em letra maiúscula, que se encontra à margem da lei da castração.
A ausência de um desejo feminino costuma criar mães criminogênicas que encarnam o estatuto de um outro abusivo e incestuoso (LACAN, 1984, p. 265). São mães que tomam seus filhos como objeto de suas vontades. Elas são carentes em seu ser de mulher de um pai que “em sua função de Lei, escrita com letra maiúscula, pode fazer de uma mulher o objeto causa de seu desejo”[11], canalizando, ainda que parcialmente, seu gozo destrutivo para longe de um filho (LACAN, 1975, p. 37 ).
Medéia é a encarnação da metáfora da boca aberta do crocodilo[12] que tem dentro seus filhotes. Esta metáfora, proposta por Lacan, traduz o desejo materno incestuoso que, sem interdição da Lei paterna, a qualquer instante, pode devorar seus filhos.
Na peça de Eurípides, os filhos de Medéia e Jasão permanecem mudos, sem voz. São crianças que se encontram amordaçadas pelo gozo violento de uma Mãe, denunciando que a lei paterna não fez dela uma mulher. Por isso ela decide impunemente sobre a vida e a morte de seus filhos. “Ora, se a morte é inevitável, eu mesma, que lhes dei a vida, os matarei! (...) Porque são carne de minha carne” (EURÍPEDES, 1991, p. 62). São crianças que não ultrapassaram o campo das necessidades. Vale lembrar que, na peça, as crianças só se dirigem à ama para dizer que têm fome. São mortos-vivos, não passam de um resto da reprodução dos corpos, sem nenhum brilho fálico.
Sede felizes, ambos, noutro lugar, Pois vosso pai vos privou da ventura aqui. Ah! Doce abraço e tão aveludados rostos E hálito suave de meus filhos! Ide! (EURÍPEDES, 1991, p. 63)
Penso que Medeia não teve outra saída a não ser passar ao ato criminoso. Privada de uma lei que interdita sua onipotência e funda nela a mulher, seu ato (ético?) foi a única saída para instaurar um corte separador ao gozo incestuoso presente no casal. Porque só há amor entre um homem e uma mulher se houver entre eles a lei da castração. Lei que introduz um desacordo experimentado no leito conjugal, através do enigma de uma mulher.
Jasão: A outra face da moeda.
Ao ler a tragédia, não consigo encontrar em Jasão as características de um herói trágico – aquele que segue a via de seu desejo e sustenta, às últimas consequências, sua posição de experimentar o sofrimento, seu phatos, sem recuar frente às leis da cidade e dos deuses. Nas tragédias clássicas, o herói é sempre convocado a se posicionar sobre seus atos frente ao questionamento presente na dialética destas leis[13]. O herói não se satisfaz, através de soluções que podem ser alcançadas na acomodação e levam a um bem-estar que é sempre temporário.
Quem não se lembra de “Édipo Rei”, herói trágico que não se acomoda com soluções passageiras frente à peste que acomete a cidade de Tebas? Ela se espalhou em seu reino como castigo dos deuses. Édipo governava Tebas sem saber que era ele o assassino de seu pai, o rei Laio, e que havia se casado com sua própria mãe, a rainha Jocasta. Ele não recua frente aos desígnios de seu destino. O ato trágico tem seu desfecho final quando Édipo descobre que o parricídio e o incesto que cometera eram a causa da peste em Tebas. Édipo fere os próprios olhos e abandona o trono, sendo banido para cidade de Colona.
No entanto, Jasão é indeciso e frágil, precisa da feitiçaria de sua esposa para cumprir todos os feitos e recuperar o trono de Iolco, herança de seu pai (EURÍPEDES, 1991). Ele é o marido humano, “demasiadamente humano” (LOUROX, 1986, p. 18). Pressentiu que Medeia poderia assassinar os filhos, contudo sua inibição e impotência, neurose da vida cotidiana presente no homem comum, impedem-no de se antecipar frente ao ato criminoso e livrar seus filhos do gozo violento de Medeia.
Na peça, o coro adverte Jasão sobre o perigo que seus filhos correm nas mãos de uma mulher violenta. Diz o Coro (EURÍPEDES, 1991, p.60):
[...] não temos esperanças quanto à vida dessas crianças; elas se encaminham agora para a morte. [...] Choramos por teu sofrimento enorme, Desventurada mãe dessas crianças, Pois vai matá-las por causa do amor Que seu esposo perjurou.
Ao deparar-se com seus filhos mortos, há um diálogo interessante entre Jasão e Medeia, no desfecho final da tragédia em que Medeia denuncia a impotência paterna de Jasão.
Medeia:
Não deverias esperar, após o ultraje, contra meu leito conjugal
Que fosses passar a vida impune rindo de mim.
Jasão:
[...] mas também sofres. Nossas dores são as mesmas.
Medeia:
É claro, porém sofro menos se não ris.
Jasão:
Minhas crianças! que mãe perversa tivestes!
Medeia:
Matou-vos a perfídia deste pai, meus filhos!
Jasão:
O leito abandonado justifica o crime?
Medeia:
Esta injúria é pequena para uma mulher?
Medeia: (apontando para as crianças mortas)
Elas já não existem. Sofrerás por isso.
Jasão:
Existem para atormenta-te em teu remorso.
Medeia:
Os deuses sabem a quem cabe a culpa.
Jasão:
Ah! Lábios adoráveis de meus filhos tão infelizes! Quero acariciá-los!
Medeia:
Hoje lhes falas, quero afagá-los; até a pouco nem os procuravas (EURÍPEDES, 1991, p. 75-76, grifo do autor).
Diz o mito que Jasão, antes de chegar a Cólquida[14] e conhecer Medeia, já havia passado pelo reino de Lemnnos (BRANDÃO, 1986, p. 183), onde seduziu, engravidou e depois abandonou a rainha. Embora tenha prometido voltar ao reino e assumir seus filhos, a rainha de Lemnmos não acreditou loucamente nas promessas de Jasão; sabia que ele era volúvel e indeciso, logo não cumpriria o compromisso assumido. Por isso, através da feitiçaria, ela lançou-lhe a maldição que ao final de sua trajetória o condenaria a uma morte nada heróica[15]: ganhar o amor de uma mulher sem a legitimação de um desejo.
Jasão se assemelha àqueles pais que se amontoam nos corredores das varas de família. Aqueles que sequer visitam seus filhos quando o laço conjugal se rompe e se desobrigam do compromisso com o sustento e com a responsabilidade de criá-los. Muitas vezes, estes pais abandonam os filhos consanguíneos e tomam os de outra mulher, com quem passaram a se relacionar, como seus próprios filhos – pelo menos enquanto durar a relação. Isso atesta a ausência de enlace de um desejo entre um casal. Certamente, esses filhos terão graves dificuldades em serem passadores dos ideais, dos sonhos e também das referências de um casal.
Jasão, em seu “semblante”[16] de homem, esconde a impotência de um menino. Ele está bem longe de encarnar, em sua posição de homem, a função da lei paterna que faz de uma Mãe a mulher. Se alguém, em posição masculina, não sustentar encarnar a lei que interdita o gozo de uma Mãe, arrancando parcialmente a criança da “boca do crocodilo”, poderá até ser um excelente reprodutor, mas, ocupar minimamente a função pai, tenho lá as minhas dúvidas. Um pai, não importa de onde ou de que maneira venha, precisa comparecer para se fazer passar às futuras gerações através de um filho; e, assim, manter vivos seus valores, suas crenças, suas referências simbólicas.
Com o intuito de ilustrar essa loucura que pode estar presente no laço conjugal entre o casal, recorro à tragédia carioca Gota D’água. Esta peça, obra-prima do teatro brasileiro, trata-se da releitura feita por Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes (1975) do texto imortal de Eurípides de que tratamos neste artigo.
Em “Gota d’Água”, Jasão compõe um samba-canção para Joana, personagem que representa Medeia. A música denuncia a voz que nele se cala, deixa-o impotente frente ao ódio de sua mulher, que, ao final da peça, também assassina os filhos. A melodia e a letra ilustram a entrega louca de uma mulher, a personagem Corina, ao amor de um homem. Uma paixão louca, sem margem de liberdade para o desejo de cada um dos parceiros.
Já lhe dei meu corpo Minha alegria Já estanquei meu sangue Quando fervia Olha a voz que me resta, olha o veio que salta, olha a gota que falta Pro desfecho da festa. Deixa em paz meu coração. Que ele é um pote até aqui de mágoas E qualquer desatenção, faça não, Pode ser a gota D’agua (p. 75).
No momento em que isso acontece na vida de um casal, a morte psíquica se instala do lado de seus filhos. Estes acabam como crianças inibidas, sem palavras, encarnando a verdade de um casamento no qual a mulher funciona muito mais como uma Mãe para o parceiro amoroso, deixando de fora o imprescindível enigma que a mulher precisa encarnar a fim de acender o desejo de um homem. Quando isto acontece, a criança perde sua liberdade criativa de pensar e dizer o que pensa; o que se expressa através de sua inibição no discurso, uma vez que sua existência apenas justifica o enlace de um casal. Isto é retratado com clareza tanto em Medeia, de Eurípides, quanto em Gota d”Água, de Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes (1975). Nas duas narrativas trágicas em questão, as crianças são personagens sem nome e sem o diálogo que expresse sua subjetividade. Ao longo da peça elas apenas demandam serem alimentadas.
Filho1- “[...] Queria comer.”
Filho2- “[...] Tou com fome?...Tem?” (p.166, grifo do autor).
As “várias” Medeias de nossa vida cotidiana são possuídas por um gozo solidário à pulsão de morte. São mães que, tomando seus filhos como objetos de seus caprichos, passam por cima das decisões legais e impedem a convivência destes filhos com seus pais; é quando os restos odientos do amor conjugal comparecem nas varas de família. Neste momento um juiz deve exercer, em sua função de autoridade na esfera social, a função da lei paterna – barrando a onipotência de uma Mãe.
Também as reconheço, abandonadas por aí, nas meninas que engravidam cada vez mais precocemente, jogando seus bebês nas latas de lixo. Para elas é impossível dirigirem aos seus rebentos um desejo nomeado por um homem. Na maioria das vezes, elas nem sabem com quem se deitaram. Estas jovens meninas adiam, cada vez mais, o encontro com a sexualidade através de uma gravidez precoce, evidenciando a precariedade de seu erotismo em seu ser de mulher. É entre um pai e uma filha que se constrói, na relação amorosa, com certa dose de erotismo, as primeiras experiências que lhe servirá à construção de sua sexualidade feminina a ser vivida com um homem. Na maioria das vezes estas adolescentes privadas de um erotismo só encontram reconhecimento no imaginário social, como mulheres, através de uma gravidez que lhe oferece um semblante de maternidade. Elas costumam produzir os meninos e meninas que perambulam pelas ruas nos assombrando com a violência. Daí um motivo pelo qual jovens interditados da lei do desejo, descrentes de sua autoridade simbólica, tem partilhado cada vez mais a cena do mundo, agindo impulsionados por uma violência sem freios.
Uma mulher, em sua função, “também precisa ser reconhecida por este homem, que não deve ser anônimo para que ele lhe faça filhos, e que destes querendo ou não ele cuide paternalmente” (SOLER, 2000, p. 134). Portanto, é necessário que um pai em sua função seja localizado no desejo da mãe; tenha um endereço, seja lá onde for ou quem for; afinal, uma criança precisa localizar de onde vem este amor que lhe é dirigido e emoldura em seu corpo as pulsões mais primitivas e destrutivas, separando-a, desta forma, de sua própria violência.
É importante lembrar que pai, homem, mãe, mulher e criança, para o campo da Psicanálise, desde Jacques Lacan, funcionam como funções lógicas, definindo lugares a serem ocupados no discurso. A articulação lógica destes “lugares” resulta em combinatórias significantes que orientam para cada sujeito em particular seu erotismo – tanto no que diz respeito ao gozo solitário do corpo, quanto em sua expressão de linguagem no laço social.
Um pai é o representante da lei que, num só ato, interdita o gozo materno e abre para uma criança a possibilidade de criação. Este pai, em sua função, traduz e nomeia para uma criança o enigma do desejo de uma mulher presente em uma mãe. O encontro entre um homem e uma mulher, independentemente da marcação anatômica dos sexos, deixa um resto (objeto a) representado pela criança que será o elemento a ser transmitido, organizando a cadeia geracional de uma dada família. Estes elementos de estrutura permitem a verificação e o funcionamento destes lugares nos mais diversificados arranjos familiares. São ferramentas lógicas propícias para pensarmos a respeito da realidade de nosso tempo, em que o patriarcado não ocupa mais um lugar central na sustentação das relações familiares e das instituições que compõem o laço social.
Para concluir, quero ressaltar que existirá sempre um infantil a morrer em nós diante da lei da castração transmitida pela função pai. Pode ser a morte de uma criança maravilhosa que encantou seus pais, ou da criança abandonada, perdida nos limbos de uma origem, onde a palavra dos pais não chegou. Quem não cumpre e refaz continuamente o luto de sua posição infantil, “permanece na claridade leitosa de uma espera interminável sem sombra e sem esperança” (LECLAIRE, 1982, p. 75).
É a Lei operada pela função pai - que, nos dias de hoje precisa ser reinventada no mais além do patriarcado - que permitirá barrar o gozo mortífero, cada vez mais feroz e desgovernado em nossa contemporaneidade. Afinal um pai, em sua função, necessita ter a face de um saber que possibilite (re)inventar a vida, localizando o sujeito que estava à deriva da pulsão de morte nas tramas do discurso. Penso que a lei do pai pode funcionar como a elaboração de um saber que venha do próprio sujeito. Um saber que se alcança de maneira solitária, mas que necessita do empenho de alguém que se autorize a funcionar como referência paterna.
Um pai pode ser, por exemplo, um juiz que se empenha em tomar um jovem adolescente infrator não apenas como mais um número de um processo. Por que não apostar que, ali, nos autos de um processo, pode ser construída e contada a um juiz a história de um sujeito? Toda elaboração simbólica deve encarnar a expressão dos atos de um sujeito. É isto que pode restaurar para os seres humanos a via singular de compromisso com seu próprio desejo, dando àqueles que estavam mortos do ponto de vista psíquico um nome e um lugar no laço social.
Notas e Referências:
[1] Texto apresentado no Congresso de Psicanálise e Direito “O sujeito, a Lei e o gozo. Paradoxos e Descaminhos das Transgressões na Contemporaneidade”, organizado pela Escola Lacaniana de Psicanálise de Brasília em setembro de 2009 e no Espaço Diálogos e Escritos na Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória em abril de 2010.
[2] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17, De um Discurso que não seria do Semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 23.
[3] O inconsciente pressupõe uma outra cena determinante de um agir que escapa aos domínios da razão. Com a fundação do inconsciente, Freud subverte a lógica cartesiana em que o ser consiste pelo fato de pensar. A psicanálise vem mostrar que o homem existe onde não pensa.
[4] Palavra latina que significa divisão. O significante da castração introduz na copulação do casal uma divisão que inscreve uma perda,gerando uma (des)harmonia estrutural no casal, e tem como resultado da operação a criança como um resto (Ver: LACAN, Jacques. Seminário Lógica do Fantasma, Aula do dia 22 de março de 1967).
[5] O campo do Outro, na teoria lacaniana, pressupõe a alteridade simbólica dos seres de linguagem. O bebê humano, em sua origem, toma emprestado deste campo os significantes de que necessita para partilhar com o semelhante da palavra. Vale lembrar que aquele que se ocupa de receber a criança que chega ao mundo, na maioria das vezes função desempenhada pelos pais, encarna o lugar do Outro.
[6] A narrativa trágica não nos oferece uma solução satisfatória em seu desfecho final. Como nos diz A Didier Weill: “A tragédia sempre termina com um longo grito; ritual sobre aquilo que é inarticulável” (WEILL, 1986, p. 59).
[7] Lacan afirma em diversos momentos de sua obra que “Amar é dar o que não se tem”. Significa dizer que quando amamos transmitimos aquilo que desconhecemos em nós. Esta vertente do amor, mais livre das paixões permite manter vivo o enigma do desejo que serve de potência criativa.
[8] Lacan nos diz que a injúria e a degradação presentes no melancólico funcionam como o último recurso do sujeito em se ver inscrito nas malhas do discurso. “É a primeira e última palavra estabelecida no diálogo com o Outro simbólico; experiência que beira o inefável” (LACAN, 2003, p. 632).
[9] As pacientes histéricas, que Freud tomou em análise funcionaram para ele, como passadoras do enigma do feminino, sendo elas causa de desejo para Freud, que inventou a Psicanálise.
[10] Lacan diz que o verdadeiro dom do amor “é dar o que não se tem.” Transmitindo ao parceiro amoroso o enigma do desejo. Ver: LACAN, Jacques. Variantes do Tratamento Padrão. In: _____. Escritos Técnicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1984, p. 265.
[11] LACAN,Jacques. RSI. Aula do dia 21 de janeiro de 1975. Tradução não autorizada. p37
[12] Ver: LACAN, Jacques. O Seminário, livro18, O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 94.
[13] Ver: VESCOVI, Renata. A Origem Simbólica da Lei. In: _____. A Lei em tempos sombrios. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2009, p. 365.
[14] Cólquida: Cidade de origem de Medeia.
[15] A viagem dos Argonautas tem em seu desfecho final a morte nada heróica de Jasão. Ao adormecer, o mastro, da nau que Jasão conduzia, partiu-se caindo sobre sua cabeça.
[16] O encontro sexual entre um homem e uma mulher é determinado pela posição sexual infantil, inconsciente, de menino e menina que sustentamos para o Outro parental. Lacan afirma que a identificação sexual, não consiste em alguém se crer homem ou mulher; “mas levar em conta que existem semblantes de homem para uma menina e semblante de mulheres para um menino” (LACAN Jacques. O Seminário, livro 18, De um Discurso que não seria do semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 33).
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. . Renata Conde Vescovi é Psicanalista membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória.. . .
Imagem Ilustrativa do Post: Medea despidiéndose de sus vástagos // Foto de: Arturo And The Machine // Sem alterações
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