Por Priscilla Placha Sá - 03/05/2015
As cenas de terror (terror, etimológica e semanticamente considerado) acontecidas no Centro Cívico na última semana de abril de 2015, em Curitiba – Paraná, particularmente no dia 29 de abril de 2015, podem e foram muito bem denominadas como o “Massacre de 29 de abril”. São exemplos do uso político da polícia e do esfacelamento das três esferas do poder público (as únicas, provavelmente) das quais é possível inferir as marcas e as diretrizes de um Estado: a educação, a saúde e a polícia. Especialmente, quando as trabalhadoras e os trabalhadores dessas categorias, especialmente as categorias de base, são propositada e deliberadamente colocados em lados opostos; mediados, entretanto, não pelo diálogo (que, embora tenha sido tentado, particularmente por agentes externos que já vislumbravam uma tragédia), mas pelo terror. O diálogo, talvez sem querer ficar, cedeu lugar a um sem fim de balas de borracha, bombas de gás lacrimogênio, sprays de pimenta, paus e pedras. O fim do caminho (diria o tom de Tom). Embora não fosse março, era abril. O saldo, embora, controverso quando dito por um ou por outro lado, mas que tem aí – ao menos – uma centena de vítimas, mesmo assim dá muitas pistas. É o “sintoma”. E nós já tivemos aqui um outro abril, quase assim. Em 2016, serão 20 anos de outro massacre. Para alguns, os fatos de agora evocavam os duros anos de chumbo da ditadura; para outros, sinal dos tempos; polarização partidária; crise financeira. Histórias. Argumentos. Fatos. Visões. Feridos. Sangue. Lágrima. Prisão.
A polícia, com a remissão direta ao texto foucaultiano, ao refazer um percurso histórico pelo Antigo Regime, lembra que a polícia tinha por objetivo trazer felicidade ao cidadão, mesmo que houvesse uma razoável miríade de atividades, que hoje não mais pertence às instituições que se chama de “polícia”. Tal a importância da polícia, que estava implicada como ciência da política, seu estudo estava centrado nas Universidades(2). A polícia era o fiel da medida do modelo de poder. Ainda é. Do transcurso do Antigo Regime, pós-Revoluções burguesas, parece que perdemos a oportunidade de fundar um modelo realmente novo de poder de polícia, quando o modelo instituído convoca a Guarda Nacional Francesa, instituição contra quem tanto se tinha lutado. O período de terror instalado por Robespierre e o terror jacobino podem ter dado vida a um mesmo poder de polícia, que aspirou a permanência e a potência que detinha no Absolutismo.
Séculos à frente, com a transição de permanências, que esse legado trouxe ao Brasil, por meio da Colônia que bebeu diretamente na fonte, transpondo-a aqui com o extermínio dos índios, a escravidão dos negros e a exploração dos imigrantes, faria nascer um dos inimigos contra o qual parece que o poder de polícia tanto tem lutado: o comunismo. Com a criação da 4a. Delegacia (cuja atribuição era a da Ordem Política e Social), na então Capital federal(3), nos idos de 1914, foram fichadas mais de 3.000 pessoas, “todas comunistas”, aquelas que iriam ameaçar a ordem posta no país. Três anos mais tarde, num prenúncio de guerra, em uma primeva “crise financeira e econômica em mundial” – tal como agora se anuncia – quando se falava (e se fala) em greve geral, elevação das taxas de desemprego e instabilidade econômica, convoca-se a 1a. Conferência Nacional de Polícia. A abertura do trabalhos por Aurelino Leal, na Chefia-Geral da Polícia, tinha um tom que “[...] se fundava no medo. Medo da cidade e do cidadão. Medo da desordem urbana e das ‘classes perigosas’. Medo do desconhecido na cidade e da cidade desconhecida. [...]”(4), dá um tom tão próximo ao da Secretaria do Estado do Paraná, que impressiona: “Manifestada que seja a greve, a intervenção da polícia deve ter lugar!”
Essa cruzada contra o comunismo transpôs décadas e permitiu ver diversos momentos de terror, do mesmo terror de que ora se fala, todos eles envolvendo a polícia política, uma polícia de governo, de um governo, de um governante. De Filinto Muller, que teria protagonizado uma das noites mais longas e violentas da história do país(5), a Sérgio Paranhos Fleury, que teria operado o regime militar e um grupo de extermínio(6), até o momento em que, por ser violento demais e pelo fato das críticas externas, especialmente do governo norte-americano e da Igreja Católica, apareceu morto em Ilhabela. O mesmo Fleury que dava aulas de tortura no Presídio de Tiradentes, aulas essas aprendidas pelas autoridades policiais civis e militares no convênio feito entre Brasil e Estados Unidos que fez nascer o SFICI - Serviço Federal de Informações e Contrainformações e a Escola Nacional de Guerra (7).
O fim da ditadura militar não foi, entretanto, o fim do militarismo. Pudera! Desde o nascimento, a nossa República, que se pretendia antagônica ao Império, na verdade nasceu de mãos militares. O poder punitivo (ardorosamente desejado) tem no militarismo suas características essenciais: verticalidade, hierarquia e disciplina. O militarismo aqui é compreendido como o modo de operar um sistema de vidas e de mortes, e não apenas o uso de uma farda ou de armas, daí que não está adstrito às instituições militares. Embora a alardeada falência das demais instituições – como se as instituições fossem o recôndito de uma vida feliz – tenha feito evocar-se recentemente o retorno da ditadura militar. O militarismo, que decorre do modelo romano, lá daquela Roma que não se sustentou e nem poderia se sustentar, pois sua hierarquia bélica, tocada pelo fio da espada que se embainha de sangue, constitui um poder que não faz questão, não constitui laço. Opera no real, matou e mata muita gente.
Contabilizam, aproximados, centenas mortos (há quem fale em milhares, inclusive, indígenas) durante os 21 anos de ditadura militar. Embora controversos os números por conta da falta de colaboração e da disponibilização de arquivos pelas Forças Armadas, estima-se uma violência letal e sistemática, operando por meio de torturas a detenções ilegais, chegando aos assassinatos e desaparecimentos forçados(8). Entretanto, entre 2009-2013, a polícia brasileira matou mais do que a polícia americana (conhecida pela sua violência, é só ver o caso de Baltimore) em 30 anos; só no ano de 2013 eram 6 pessoas por dia. Não obstante as fraturas do modelo também façam muitas vítimas policiais, em ambos os lados muito acima da média. Registre-se, todavia, que 81,8% das mortes produzidas por policiais deram-se em serviço, ao passo que 75,3% dos policiais morreram fora de serviço(9). Talvez a diferença que ainda concite tanto pensar sobre a ditadura é que a violência institucional lá voltava-se contra intelectuais, jornalistas, sindicalistas, advogados e estudantes. Talvez pela primeira vez tenham sido colocadas “garotas mal saídas do colégio nuas no pau de arara”(10). Enquanto, desde sempre, os excluídos e marginalizados, sobretudo os garotos negros dos bairros pobres e das periferias tenham sempre tido seu caminho abreviado do berço para o cemitério. Daí que nasce e se fortalece o discurso pela redução da maioridade penal, pois a capacidade letal do sistema esteve sempre a disposição de Tânatos.
O militarismo da disciplina, da obediência e da ordem é a essência do poder punitivo e da constituição de uma polícia política, uma polícia colocada a mercê dos governos. Uma polícia que fará, por seu comando, coisas como a que se viu no último dia 29 de abril.
A lição foi (re)apreendida ou replicada ao término da ditadura militar, e aqui, como lá “em França” não abrimos mão do uso da polícia como força, como polícia de governo. A transposição para a democracia não abriu mão do militarismo, nem da violência institucional e da violação de direitos. Ao se tentar um lugar para as Forças Armadas, presenteou-se um dos mais terríveis generais do Regime Militar (Gen. Nilton Cerqueira) com a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Ali ele instituiu a premiação por bravura, cujo lema poderia bem ser “atire primeiro, pergunte depois”(11). Quem sabe não vem desde aí a expressão que hoje sideriza mentes e corações ao vaticinarem que “bandido bom é bandido morto”. E que fez o Secretário de Segurança Pública do Estado do Paraná comemorar quatro mortes na semana que antecedeu o massacre de 29 de abril (12).
O uso da polícia política não parece ser, entretanto, estratégia de um determinado partido ou governante. Embora, convenha-se, seja possível notar algumas peculiaridades, especialmente nos últimos acontecimentos. Em meio ao cenário de guerra, que vitimava muita gente, particularmente professoras e professores, sob um discurso articulado e estético de que a polícia agia por conta de “baderneiros” (mesmo as dezenas de vídeos mostrarem que diante da polícia de choque, os manifestantes saíam correndo; pessoas caídas e feridas não podiam sequer ser socorridas) e os “comunistas de hoje” chamados de “black blocks”, viam-se outros atores dos mais diversos espectros políticos, criticando hoje o que se fez ontem ou o que se fará amanhã. O uso político da polícia se multiplicava diante dos olhos da população que via estarrecida – em meio a uma literal e surreal cortina de fumaça –pessoas sangrando e correndo no Centro Cívico.
A guarda municipal, que na noite anterior dava início a uma nova de abordagem chamada de “busca civil” com o intuito de higienizar o Alto de São Francisco, e algumas vielas onde o poder alega estar se alastrando a doença e a violência, agora era usada por outro segmento político para se dizer discordante do outro fazendo as vezes de uma polícia próxima da comunidade. Criticando-se o partido governista do Estado (que pode ser eximido dos atos que perpetrou) sua oposição – especialmente, no âmbito federal – a qual se valera da mesma polícia e de mais outra, para usar prender e reprimir as manifestações da Copa das Confederações e da Copa do Mundo, por meio da Lei de Segurança Nacional (aquela mesma editada em 1983, já no declínio da Ditadura militar) mostrava-se consternada com o que se via por aqui.
Mais do mesmo. Polícia política como polícia de governo, de um governo, de um governante. A coletiva de imprensa dada pelo Comando-geral da Polícia Militar, na tentativa de eximir a Secretaria de Segurança e o Governo Estadual das responsabilidades pelos atos praticados, chega a ser pueril, pois quem conhece minimamente a estrutura e a forma de agir dessas instituições tem ciência de que uma ação como essa não é adotada sem o conhecimento e o consentimento prévio das instâncias superiores; do contrário, já teria “caído”. Mesmo porque havia, segundo divulgado oficialmente, 1.500 policiais militares para proteger a votação do governo. Na mesma linha, não impressiona o pedido da cúpula partidária do governo estadual para tirar o Chefe da Secretaria de Segurança, aludindo aos excessos e aos desmandos do massacre, deixando isenta a Chefia do Executivo.
Aprovada a lei da previdência dos servidores do Paraná (a protagonista oficial do episódio), socorridas as vítimas e apuradas as responsabilidades (ou não?!), quando já tiver baixado a fumaça das bombas, o ardor do gás lacrimogênio e do spray de pimenta, os sons surdos das balas de borracha, segue a polícia de governo, fazendo a única função – também não rompida com o fim da ditadura – que o discurso externo consegue realizar com razoável adesão social, usando as balas de verdade, das armas de fogo, das pistolas .40, das armas 12 de cano longo, que atuam historicamente contra os mesmos excluídos e os desvalidos, varridos desde sempre para debaixo do tapete social. Para eles, jovens pobres, não raro, negros, dos centros urbanos, das três medidas de um Estado (educação, saúde, e polícia), a única que chega é a última.
Como dissera Michel Foucault, o direito à vida só é exercido pelo soberano porque ele detém também o direito de espada, “não é o direito de fazer morrer ou de fazer viver. Não é tampouco o direito de deixar viver e de deixar morrer. É o direito de fazer morrer ou de deixar exercer sobre o homem-espécie, de que fala Foucault, poderá colocar em choque o poder da soberania da morte e o da regulamentação da vida”(13). Só que operando por meio de um genocídio racista. Exceção? Não, a regra da regra.
Notas e Referências:
(2) FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. Curso dado no Collège de France (1977- 1978). Tradução Eduardo Brandão. Revisão Claudia Berlinger. São Paulo: Martins Fontes. 2008, p. 440.
(3) A divisão do trabalho policial e a criação das chamadas delegacias especializadas daria ensejo a um só tempo lugar (i) a um pretenso cientificismo policial, (ii) a burocratização do serviço, em particular com os fichamentos e as estatísticas e (iii) a um novo tipo de policial: o agente da delegacia especializada. Cf. BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na Cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro, 1907 – 1930. 1997, p. 74-80. Em especial, os dados acerca da atuação da 4a. Delegacia: Obra citada, p. 79.
(4) PECHMAN, Roberto Moses. Cidades estritamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro: Casa da Palavra. 2002. p. 346.
(5) ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan. 2003.
(6) BICUDO, Hélio Pereira. Meu depoimento sobre o esquadrão da morte. São Paulo: Pontifícia Comissão de Justiça e Paz de São Paulo. 1997, p. 36-44; 45; 53.
(7) FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio. 2a. ed. Rio de Janeiro: Record. 2011, p. 63-67.
(8) Relatório sobre as violações de direitos durante a ditadura militar, divulgado em 10 de Dezembro de 2014, volume I, parte III, elaborado pela Comissão Nacional da Verdade. Disponível em: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_pagina_275_a_592.pdf. Acesso em: 28 abr. 2015.
(9) Dados obtidos no 8o. Anuário do Fórum Nacional de Segurança Pública, p. 6. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/storage/download//anuario_2014_20150309.pdf. Acesso em: 03 mai. 2015. A respeito das mortes produzidas pelas instituições oficiais: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini (coord.). Trad. Sérgio Lamarão. Saraiva: São Paulo. 2012, p. 371.
(10) SANTOS, Joel Rufino dos. Quase dois irmãos. 2004, p. 28. O autor também usa a expressão “brancos-não torturáveis” para aludir ao fato de a tortura, durante a ditadura, ter recaído sobre gente que não se parecia com a clientela tradicional do direito penal, em particular da classe média, pode ter contribuído para a edição mesmo que tardia da Lei de Tortura (Cf. Direito Penal brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 2003, p. 479). Entretanto, cabe lembrar a comoção que a tortura e posterior execução de rapazes, protagonizada por policiais militares na Favela Naval de Diadema, em 31 de março de 1997, teve forte contributo para o trâmite do Projeto de Lei, que foi aprovado e sancionado poucos dias depois (em 07 de abril).
(11) GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar. Trad. de Sergio Faraco. Porto Alegre: LP&M. p. 82.
(12) “Francischini elogia policiais por quatro mortes em uma semana”: Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/caixa-zero/francischini-elogia-policiais-por-quatro-mortes-em-uma-semana/. Acesso em: 01 mai. 2015.
(13) FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 287.
Priscilla Placha Sá é Advogada Criminalista. Doutora em Direito do Estado pela UFPR. Professora Adjunta de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Vice-Chefe do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR.
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