Por Luiz Ferri de Barros - 14/07/2015
Sete e meia da manhã
Depois de tempestade a noite toda
Chove chuva fina agora
Fazendo muito fria a vida na cidade
.
Engalfinhada na porta do ônibus
Marta está à cata de moedas ali caídas
Desesperada se lança aos degraus
É quase arrastada quando o ônibus parte
.
Estupefatos transeuntes da Teodoro Sampaio
Mal contemplam maltrapilha figura que atravanca o caminho
– Que coisa de louco esta miséria!, exclama alguém
Virando o rosto, mal disfarçado o nojo em seus afazeres
.
Pela calçada naquele momento
Lucas ouve Marta lamentar-se
Decifrando a senha de mundo insuspeito
– Quanta filmagem por cinquenta centavos!
.
Sentindo-se irmão como por encanto
Dela se achega, oferece abrigo em seu guarda-chuva
Toma-lhe o braço pelo cotovelo, logo falando
– Quem tanto te filma, de quem você fala?
.
– Tão filmando desde ontem, a noite inteira
Não param nunca, tem câmara por todo o canto
Na loja, nos carros, no prédio, no ônibus
Filmam, filmam, filmam... e só me sobram moedas!
.
Seu rosto tinha feridas, chagas encardidas
Sua roupa, desgrenhada, mais camisola que vestido
Seus cabelos esfiapados, sua sacola amarrotada
Tudo molhado, frio, tiritante
.
– Venha aqui comigo por favor, disse Lucas
Eu sei o que você sente, também já me filmaram assim
Me perseguiram, me judiaram
Mas era tudo coisa só minha, porque eu estava doente
.
Confie em mim, você confia?
Você precisa de um banho e roupa quente
Quando comeu da última vez?
Você precisa de médico, tomar uns remédios
.
– Confio, eu confio. Eu vou com você aonde quiser
Aceito o banho, você tem algum aí pra me dar?
– Cigarro ou dinheiro?
– Dinheiro e cigarro, você tem?
.
– Pode ficar com o maço. Te dou umas roupas depois do banho
Caminharam os quarteirões até o ap de Lucas
Ele segurando-lhe o guarda-chuva, mais pelo gesto
Que Marta ensopada dos pés à cabeça não tinha o que se molhar
.
Quem via estranhava como coisa de louco
O pacato professor abrigando a mendiga
Solidariedade sendo há muito nome de partido político
Coisa que se pratica de forma corporativa e seletivamente
.
Marta não gozava da solidariedade de ninguém
Eis que estourava todos padrões corporativos
Sendo ainda na verdade Fumio o seu nome
Louca, mendiga, nissei e travesti
.
Que mais não seria?
Drogada, prostituída, ladra, vigarista?
De certo, apenas não se chamava Cristianne F.
Não era adolescente, não escrevera livros, tinha seus mais de trinta
.
Fora surrada durante a noite
Na disputa de abrigo entre os moradores de rua
Não gozava de prestígio a louca travesti
Nas noites severas da louca cidade
.
Ao chegar à porta do prédio
Lucas a deixou esperando de fora
Subiu ao oitavo, desceu com sanduíches e uma muda de roupas
De tênis a moleton, cueca, meia e o demais
.
Ao descer, o porteiro não a vigiara como pedido
Estava debochado a rir-se e divertir-se
De ver Marta ter largado o guarda-chuva
E debaixo dágua mirar-se e atrapalhar-se nos espelhos de carros estacionados
.
Ao chamado de Lucas, saiu de dentre os carros
Para o lado errado e enfiou-se no meio da rua
Ali quase atropelada, escapando pela brecada
Em gesto mirabolante voltou à calçada, o que fez o porteiro rir ainda mais alto
.
Na garagem, no banheiro ali existente
Banhou-se longamente nágua quente
Tirou calcinha, vestido e sutiã
Vestiu jeans e moleton, parecendo-se mais com Fumio
.
Depois arregaçou a calça, tirou o tênis do pé direito
Dentro escondeu várias notas de hum amarrotadas
E outras enfiou nas meias dos dois pés
Algumas escondeu dentro das calças, na cueca
.
Juntou suas tralhas outras numa sacola que carregava
Levando também o sabonete do banheiro e outros pequenos objetos
Com o assentimento de Lucas, mais preocupado em sair da garagem
E do prédio, antes de ter de enfrentar discussões com moradores e síndico
.
O pessoal implica com cachorrinhos poodle nos condomínios
Lucas sabe que doentes mentais delirantes, travestis e mendigos
São tidos como pior que animais e de todas as loucuras deste mundo
Uma das mais bizarras é enfrentar síndicos e vizinhos enlouquecidos
.
– Vou levá-lo ao pronto socorro psiquiátrico, tudo bem?
– Pode me levar aonde você quiser, eu vou
– Você fica uns dias lá, se alimenta, toma uns remédios
– Eu sei, eu vou, já fui internada outras vezes
.
– Você prefere que eu te chame de Marta ou de Fumio?
– Tanto faz, você pode me chamar como quiser
– Mas você é homem, não é?
– Sou, mas sou mulher também, pode me chamar como quiser
.
– Já esteve no Vila Mariana?
– Não, mas eu vou com você
– Não é muito bom, está pra fechar, vão reformar
Mas é melhor que nesta chuva, você precisa de cuidados
.
Foram, Lucas dirigindo e Fumio ao lado
Contando histórias delirantes
De seus sonhos de Cinderela e sua amizade com Roberta Close
Festas, clubes, viagens, filmes
.
– E a filmagem continua, Fumio?
– Continua, o tempo todo, mesmo quando eu estava no banho
Eles não param nunca, quero saber quando vão me pagar, nunca pagam o que prometem
Filmam, filmam, filmam... e só me sobram moedas!
.
– Vai parar com a medicação?
– Que remédio vão me dar?
– Haldol, alguma coisa assim
– Sei, já tomei, já tomei tudo quanto é remédio que existe
.
Chegando na Major Maragliano, Vila Mariana
Quem disse que havia onde estacionar?
Pelo menos Lucas não encontrou
E das soluções foi buscar a que pareceu mais racional
.
Havendo próximo um pequeno hospital de gente sã
E nele um pátio de estacionamento
Neste pátio Lucas entrou e pôs-se a buscar uma vaga
Havendo poucas, desceu do carro, foi à portaria pedir autorização
.
Veio um médico e disse que tudo bem, parasse ali
Mas o local indicado exigia impossível manobra
Ao tempo que Lucas constatou a inviabilidade da oferta, Fumio desceu do carro
E começou a fazer movimentos de balé no meio do pátio
.
Alguns funcionários observavam a situação
E de duas ambulâncias ali paradas, um dos motoristas falou rápido e ríspido:
– Tire o seu paciente daqui, vai embora, sai daqui!
– Não vou tirar porra nenhuma!, respondeu Lucas no reflexo
.
Mas de imediato, arrepiando-se com a hostilidade
Que de todos emanava, entristecida a alma
Disse a Fumio que entrasse no carro e ele, cordato, obedeceu
– Vamos embora, Fumio, essas pessoas não são amigas
.
Afinal chegaram ao Pronto Socorro
No guichê pedindo atendimento
Dali um tanto fizeram a ficha de Fumio
E mandaram esperar, o que é de regra
.
Passado um tempo, por reclamar atendimento
Indagou a atendente a Lucas o que fazia ele ali
– Estou aqui com meu amigo, que eu achei na rua
Resposta ao que parece tida como insensata
.
Que demandou mais demora burocrática
Eis que à burocracia, templo da insensatez
Tudo é insensato que não seja morno e amorfo
Uniforme, estático e previsível, mesmo na antesala do hospício
.
Na ansiedade incontida de seu estado
A espera proporcionou a Fumio a oportunidade
De precaver-se com suas economias
Refazendo várias vezes toda a operação de esconder suas notas nas meias
.
Então Lucas achou que a burocracia estava abusando
Chegou ao guichê e disse à mulher, embuindo-se de compostura
– Ouça, eu preciso ir embora, faz muito tempo que esperamos
Eu vim trazê-lo porque o PAS não tem ambulância e ele precisa de internação
.
Não basta eu socorrer um cidadão, fazendo o trabalho de vocês
Porque o sistema não funciona; sou obrigado a esperar até quando?
– O senhor pode ir, então, ele está entregue
– Nada disto, eu quero falar com o médico que vai atendê-lo e acompanhar a consulta
.
Fosse por que motivo fosse que a demora se instalara
Após essa fala, o atendimento foi imediato
Como se o psiquiatra de plantão aguardasse algum sinal para atendê-los
Chamou Fumio à sala em seqüência
.
– Bom dia, muito bem, eu sou o Dr. Roberto
Qual é o problema, Fumio?
– Eu posso falar por mim? quem é que fala por mim aqui?
– Você pode falar por você, aqui quem fala por você é você mesmo
.
Fez-se a consulta. Lucas complementou informações
Ao final, Fumio a um canto, o médico dirigiu-se a Lucas
Explicando-lhe a situação em rápidas palavras
Fumio seria internado, o prognóstico era favorável
.
Em poucos dias ele sairia do delírio, estabilizaria
Receberia alta, seria liberado
–E ele vai pra onde depois?
– Ele vai voltar para a rua e para a vida dele, que é a rua
.
Lucas explodiu em soluços, num choro convulsivo
Contido o choro, invadido pela angústia, foi questionado pelo médico
– Há algum outro problema? O senhor está com algum problema?
– Estou triste, profundamente triste
.
Sou portador de uma doença mental, também já fui drogado
Sei bem que o destino dele poderia justo ser o meu
– Eu conheço o senhor, disse o médico afinal. O senhor escreveu um livro, não foi?
Já li reportagens e entrevistas suas. Quando foi a última publicada, foi na Folha?
.
– Não. Foi este fim de semana, na Veja.
– Eu sei, eu li. O senhor está tomando contato com uma realidade
Que talvez antes não conhecesse; grande parte dos problemas da doença mental
No país não têm solução em virtude da questão social
.
E não há nada que eu ou o senhor possamos fazer quanto a isto
– Hoje, a minha parte eu fiz, eu o trouxe até aqui; o senhor que faça a sua
E cuide dele direito, não o maltrate, não deixe que batam nele, nem que roubem o dinheiro
Que ele esconde nas meias e na cueca
.
Nada mais Lucas fez por Fumio, dele não tem notícias
Salvo a sensação de tristeza a saudade, imensa saudade e tristeza
Por alguém que mal conheceu e que pressente esteja morto
Baleado, esfaqueado, atropelado, aidetizado, FHCminado
.
Na magia da sagrada memória do personagem estigmatizado
Lucas apenas se lembra de Fumio como sendo Marta, ela queria operar-se
Talvez essa indefinição de sexo no caso dela seja coisa dos anjos
Talvez Marta fosse um anjo - um aprendiz de anjo, ao menos, em rito de iniciação
.
Memórias de setembro de 1996
Originalmente publicado no Jornal da Tarde – “O Estado de São Paulo” – em 20 de junho de 1999, o texto Marta na Teodoro Sampaio, uma reportagem de rua em relato poético, foi posteriormente incluído pelo autor na coletânea Os Normalpatas, Não Matei Jesus e Outros Textos (Imago Editora, 1999).
Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.
Publica coluna semanal no Empório do Direito, às terças-feiras.
E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br
Imagem Ilustrativa do Post: The Night Explorers. // Foto de: Caden Crawford // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/cadencrawford/15035451644/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode